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Entrevista com Márcio Sampaio, antigo preparador de JJ: "O currículo parece que não conta muito"

Márcio Sampaio fez a dobradinha no Al Hilal
Márcio Sampaio fez a dobradinha no Al HilalArquivo Pessoal
Márcio Sampaio foi, durante muitos anos, preparador físico na equipa técnica de Jorge Jesus, num trajeto que começou no Algarve, ainda sem o emblemático treinador, e que chegou ao fim em 2023/24 quando, por questões familiares, decidiu abandonar o Al Hilal e a Arábia Saudita. À espera do próximo desafio, o preparador natural de Almeirim, de 45 anos, falou ao Flashscore sobre a carreira e o papel de um preparador físico num futebol com calendários cada vez mais apertados.

- Márcio Sampaio, preparador físico que nos últimos anos trabalhou com Jorge Jesus, José Alves, Manuel Cajuda. É difícil encontrar pessoas no futebol que trabalharam com todos estes treinadores, grandes referências do treino em Portugal.

- É verdade. Às vezes, penso que concretizei um sonho por ter trabalhado com treinadores com carreira e marca tão grande no futebol português, mas, por vezes, dou por mim a pensar que no futebol, principalmente em Portugal, essas coisas são um bocado desvalorizadas. Parece até que as coisas passam um bocado em vão. O currículo das pessoas, às vezes, parece que não conta muito, mas é verdade que trabalhei com todos esses grandes nomes. É um orgulho ter trabalhado com eles, aprendi com todos.

- De toda esta carreira, provavelmente será difícil identificar o momento. Neste percurso, qual foi esse dia? É possível identificá-lo?

- Claro, é difícil identificar e ainda bem. Foram muitos bons momentos. Todos são diferentes, principalmente as conquistas. A Libertadores, no Brasil, talvez tenha sido o momento mais inesquecível pelo contexto em si.

- O que faz um preparador físico numa equipa técnica de um clube de futebol?

- Em primeiro lugar, há que dizer que fui tendo algumas mutações ao longo dos anos relativamente às minhas funções nas equipas técnicas. Um preparador físico abrange muito o que tem a ver com questões de treino. Nos últimos anos, já era mais um adjunto. Considero que um preparador físico acaba por ser um treinador porque treina as capacidades motoras dos atletas. A minha função numa equipa técnica, como nos últimos anos com o mister Jorge Jesus, é muito abrangente. Basicamente, liderava um departamento completo. Um conjunto de pessoas que tinham a tarefa de auxiliar a equipa, quer do ponto de vista de fisiologia, quer departamento médico, nutrição, o momento em que o jogador está clinicamente apto e desportivamente bom, que é aquela fase em que o jogador sai de lesão. Eu era o responsável por essa ligação ao departamento médico, nutrição e fisiologia.

Márcio Sampaio trabalhou com Neymar
Márcio Sampaio trabalhou com NeymarArquivo Pessoal

- Com toda esta carga de todos, este departamento é cada vez mais essencial numa equipa técnica e num clube?

- Sim, óbvio que sim porque hoje em dia os jogadores têm uma densidade competitiva muito grande e é necessário um conjunto de departamentos que ajude a que um atleta esteja apto para o treino e para o jogo e que possa fazer uma recuperação cada vez melhor. O segredo é conseguir que os atletas estejam recuperados para jogar no pouco tempo que existe. Todos estes departamentos são departamentos que a maioria dos clubes já tem, mas que tem de ser filtrado com alguém que faça essa ponte para que o treinador tenha acesso a tudo o que está a acontecer com os jogadores. Hoje, cada vez mais, justamente por essa densidade competitiva, é necessário estas equipas para ajudarem porque não dominamos tudo e a ciência está muito imposta no futebol. Às vezes é para complicar, mas quando sabemos utilizá-la bem ajuda-nos a otimizar o que pretendemos.

- Um dos grandes desafios é preparar novos exercícios e treinos para os jogadores no próprio treino?

- Hoje em dia, em relação a 15 anos, uma das vertentes de evolução do futebol tem a ver com a capacidade que os clubes têm de ter acesso a como está o jogador, qual a prontidão para treinar e jogar. Isso facilita um bocado porque podem gerir-se as cargas de treino consoante o feedback do jogador. Deixa de ser ao olhómetro. Os clubes têm informação retirada de análises diárias do que acontece com o jogador e temos a clara perceção de como é que o jogador se encontra naquele dia para efetuar o treino. Isso faz com que o treinador possa planear o treino tendo em conta a prontidão do jogador. Existe cada vez menos tempo para treinar, mas ainda existe e acaba por ser estratégico o que se faz com os jogadores para que possam estar em condições para o dia seguinte. Questiona-se muito a situação de haver pouco tempo para treinar porque os treinadores gostavam de preparar melhor as equipas para a estratégia a adotar para o jogo seguinte, mas cada vez têm menos tempo. Num dia, estão a recuperar os jogadores que jogaram, a equipa junta-se no dia do jogo e trabalham algo tático tendo em conta o que vai acontecer no jogo, mas nunca poderá ser um treino de intensidade tática para que não acumule fadiga que já vem de jogos anteriores.

- Trabalhou no Sporting, Benfica, Al Hilal, Flamengo, Fenerbahçe. E agora, qual é o próximo grande desafio na carreira?

- É esperar o que o mercado possa oferecer para que eu possa trabalhar numa equipa técnica ou diretamente num clube. Agora, o meu próximo passo é ter três/quatro meses até ao início da temporada e tentar ver as oportunidades que apareçam para começar já a trabalhar, entrando numa equipa técnica ou num clube.

Márcio Sampaio fez parte da conquista da Libertadores
Márcio Sampaio fez parte da conquista da LibertadoresArquivo Pessoal

- Já existiram abordagens nesse sentido?

- Já existiram bastantes abordagens. Neste momento, tinha como principal fator a estabilidade da minha família, por isso é que vim da Arábia Saudita. As abordagens que apareceram foram para o continente asiático, lugares onde, para já, não queria embarcar. Saí do melhor clube da Ásia, não fazia sentido estar a regressar.

- Temos muitos portugueses em grandes desafios, em grandes clubes. Qual o segredo das equipas técnicas portuguesas para ter todo este sucesso lá fora?

- Acima de tudo, é uma questão genética e cultural. Isto tem a ver com os nossos antepassados. O treinador português tem uma grande capacidade de adaptação, depois tem um conhecimento muito vasto do futebol em termos táticos, os cursos em Portugal são bem administrados e o treinador português é bem preparado, também é autodidata, absorbe de outros treinadores o que de bom se faz. É uma característica tipicamente portuguesa.

Márcio Sampaio está sem clube
Márcio Sampaio está sem clubeArquivo Pessoal

- Almeirinense de gema, envolve-se também no universo dos vinhos. De onde surgiu essa paixão e porque é que investe também na produção de uma marca própria de um vinho, o "Em Campo".

- É um projeto que tenho desde a altura da pandemia. Sendo eu um investidor de vinhos raros, através de uma empresa no estrangeiro, proporcionou-se a possibilidade de fazer esta ligação entre o futebol e o vinho, que são duas áreas que eu gosto. Não podia ser de outra maneira que o nome estivesse associado um pouco ao que eu faço.

- Trabalhou no Sporting, no Benfica. Viemos de uma final da Taça da Liga em que as equipas estiveram frente a frente e que termina com um raro ambiente de fair play no futebol português. Estas imagens podem ser o clique que faltava para termos um ambiente com maior fair play no futebol português?

- Desejava que sim, mas não acredito que aconteça porque o futebol é uma questão de amor e ódio, é de paixão. Fica bem, dá uma outra imagem ao futebol português, mas basta acender o rastilho de alguma coisa e as coisas vão para outro patamar. Nos últimos anos no futebol português, temos visto que tudo o que gera mau ambiente no futebol e que passa para dentro das quatro linhas é provocado por pessoas que não são os intervientes nas quatro linhas. Isso acaba por ir para dentro do campo e as coisas correm da maneira que temos visto nos últimos anos. Esta situação que acabou por acontecer é benéfica, dá uma boa imagem do futebol português, mas se acredito que vai durar para sempre? Não acredito. Era bom, mas não acredito porque temos visto ao longo dos anos coisas do género. Uma vez está bom, outra vez não está tão bem e não podemos esquecer que é um dérbi e dérbis são dérbis e as coisas atingem proporções completamente diferentes.