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Exclusivo com Pérez Burrull: "Ele e o Barça têm de explicar o caso Negreira"

Pérez Burrull na véspera de um jogo Barça-Atlético de Madrid
Pérez Burrull na véspera de um jogo Barça-Atlético de Madrid Urbanandsport / NurPhoto / NurPhoto via AFP
Alfonso Pérez Burrull é uma das grandes figuras da arbitragem espanhola. Alcançou grande notoriedade na primeira década deste século e teve uma conversa com o Flashscore, na qual passou em revista vários aspetos da sua carreira e questões atuais.

- O que pensa da declaração do coletivo de árbitros sobre as declarações de Mateu Lahoz? 

- Penso que foram declarações muito infelizes. Eu, tal como o Toño, um antigo árbitro, que está nos meios de comunicação social, penso que o trabalho tem de ser feito de outra forma. Uma coisa é darmos a nossa opinião sobre as jogadas, se é penálti ou não, etc. Mas depois há que fazer um esforço, sobretudo nos tempos que correm, para ter a possibilidade de transmitir a arbitragem, para dizer às pessoas como nós, árbitros, somos, como pensamos, em suma, para aproximar um pouco a arbitragem das pessoas e vice-versa. Descobri como os árbitros nos vêem a nós, árbitros, de um outro ponto de vista. A partir daí, não gosto que pareça que quando terminamos não estamos agradecidos, acho que temos de estar agradecidos sempre. Chegam 20 árbitros à primeira divisão, há milhares de árbitros, e quando se tem a sorte, a capacidade, ou porque se trabalhou muito durante muitos anos na primeira divisão, chega uma altura em que, aos 45 anos, que é idade suficiente, temos de ir para casa com um sorriso na cara e estar gratos. E não, parece que estamos sempre na posição de ex-árbitros, sempre a falar negativamente. Para mim, sobretudo, que um árbitro que está lá há tantos anos misture a palavra Negreira com os seus colegas, parece-me que não tem nada a ver com a arbitragem, tem a ver com as pessoas... Não sei, não me ocorre a palavra, mas temos de falar de outra maneira. Não me agradou nada.

- Falou em aproximar a arbitragem dos adeptos. Lembro-me de Xavi Hernández ter pedido mais do que uma vez que talvez os árbitros devessem dar uma conferência de imprensa, explicar os seus pontos de vista. Acha que isso também ajudaria a aproximar a arbitragem das pessoas, a fazer-se entender e a reduzir as tensões? 

- Vejamos, penso que tudo o que implica comunicar é bom. Sinto falta de uma parte didática de explicação das jogadas. Refiro-me ao fim de semana passado, houve uma jogada no jogo Maiorca-Espanhol, por exemplo, em que foi repetido um penálti. São lances que vejo e que as pessoas têm dificuldade em perceber porquê. Sinto falta dessa parte. O que é que se passa? Para que isso aconteça, o mundo do futebol também tem de fazer a sua parte. Quero dizer, tu, respeita-me, não voltes a falar de manipulação, de corrupção ou de tudo o que querem atirar para cima dos árbitros. E quando forem capazes de o fazer e se comprometerem, eu explico-vos qualquer jogada. Mas se, seja qual for a explicação que eu vos der, só a quiserem ouvir para a levar para o campo da suspeita ou da teoria da conspiração, então não estamos equilibrados. Penso que o trabalho tem de ser de todos.

A relação de Enríquez Negreira com o Barcelona

- O tema Negreira já foi abordado, mas também queria perguntar-lhe. Foi árbitro durante alguns dos anos em que aparentemente se efetuaram esses pagamentos, viu alguma coisa suspeita? Recebeu alguma mensagem para favorecer alguém? Ou acha que talvez fosse para tentar influenciar as despromoções? Não sei se viu alguma coisa.

- Felizmente, está nos tribunais e quando algo está nos tribunais é bom. Porque, por um lado, as responsabilidades vão ser apuradas, mas, por outro lado, vai-se fazer luz sobre tudo. E que, tal como pode acontecer com os árbitros, se retirem quaisquer dúvidas ou suspeitas. A questão de Negreira tem um percurso muito mais simples, que ele e o Barça têm de explicar, pois são as duas pessoas ou clubes envolvidos num circuito de dinheiro entre si. E é só isso, não há mais nada a dizer. Toda a gente pode estar tranquila, porque isto nunca lhe aconteceu, nem ao coletivo, nem aos árbitros, nem à comissão, nem a ninguém. Entre outras coisas, porque nós não o teríamos permitido. E aqui posso dizer-vos que o teríamos atropelado, uso sempre esta expressão. E as únicas pessoas que têm de o explicar são as que estão envolvidas.

Porque é que um clube de futebol que tem os melhores jogadores do mundo paga dinheiro? Porque não consigo imaginar o Messi, o Iniesta, o Xavi a ler estes relatórios. Não consigo imaginá-los. E que eles expliquem e que se saiba que tudo começa e acaba com Negreira e com o Barcelona.

- Falando de temas talvez um pouco mais leves e que também aproximam a arbitragem dos adeptos, é verdade que todos os árbitros, ou quase todos, são grandes adeptos de futebol e têm equipas preferidas? Há essas conversas no CTA ou quando há reuniões de árbitros? 

- Sim, claro que sim. Se quiser, dou-lhe o meu exemplo. Eu não jogava futebol muito bem, mas gostava de futebol. Quando tinha 10-12 anos, era membro de um clube de adeptos do Racing. Via o Racing, via os treinos. O típico miúdo que depois pedia um autógrafo, vive-se o futebol. Até que tive a oportunidade de arbitrar quando tinha 15-16 anos. Porque ainda estava ligado ao futebol e gostava muito da atividade, que me permitia estar no futebol. O que significa isto? Que certamente, se eu não tivesse sido futebolista, vindo de uma família de futebolistas e do Racing, não teria sido árbitro. Mas a partir daí, no momento em que se veste a camisola de árbitro, é óbvio que é a primeira camisola. Estas coisas não têm nada a ver umas com as outras. Aliás, o que é que sempre me incomodou mais? Bem, não é incomodar, porque no fundo não me incomoda nada, mas às vezes deixava-me tenso no mundo do futebol, quando se estava na primeira divisão, é que parecia que tinham sempre de o procurar como adepto do Barça ou do Real Madrid. E eu não percebia porquê. E a ideia é essa. Tenho a minha equipa, que é a minha equipa de origem, que é o Racing, e antes de mais sou árbitro.

- Que características considera que um árbitro de alto nível deve ter?

- Olha, é preciso ter muitos componentes. Quero dizer, a parte de como a arbitragem nos traz a nível pessoal, a nível de valores e a nível pessoal, penso que é provavelmente a atividade que mais nos traz. Porque, antes de mais, ninguém deve esquecer que se trata de um desporto em que se passa 90 minutos a correr. Por outras palavras, são 90 minutos de trabalho árduo. São 90 minutos em que temos de conciliar 22 jogadores e em que temos de tomar decisões. E, no fim de contas, é essa a coisa mais bonita da arbitragem. É uma parte do trabalho. Por isso, é preciso ser uma pessoa coerente e sempre corajosa. Não quero dizer corajoso de uma forma heróica, mas há uma coisa que temos de ser sempre desde que somos árbitros, que é a honestidade acima de tudo. Porque é isso que nos dá força. Quer dizer, vou para um campo e vou tomar todas as decisões com base nos meus critérios e na minha visão. E depois é preciso ter muita habilidade com as pessoas e uma mão esquerda. Em suma, há muitas variáveis que se aplicam a ti. É preciso pedir as coisas por favor, mas de vez em quando também é preciso ignorar tudo o que mexe. E, acima de tudo, tem de se divertir e criar à sua volta um ambiente o mais desportivo possível entre os jogadores.

- Referiu-se ao esforço do árbitro, que obviamente também tem de correr durante 90 minutos. Que tipo de treino físico é necessário para um árbitro e que tipo de requisitos tem de cumprir? Que nível tem de ultrapassar também a nível físico? 

- Bem, vejamos, há testes físicos. As exigências são muito elevadas, sobretudo porque estamos a falar de desportistas que têm normalmente entre 35 e 45 anos, quando estão no seu auge. Não têm 22 anos, pelo que tem de ser um programa de formação a longo prazo. O trabalho de que um árbitro mais precisa é a velocidade e a resistência. A capacidade que se tem num campo de futebol para ir de uma zona para outra duas ou três vezes seguidas e tomar decisões sem se cansar. Essa é a principal capacidade, porque o árbitro tem certas faixas para se deslocar, porque o mais importante na arbitragem é o posicionamento, estar no sítio certo para ver o jogo. E isso exige muito esforço. Não é um treino semelhante ao de outros desportos, porque se misturam muitos desportos. Insisto, é preciso ter velocidade, mas também é preciso ter resistência. Tens de fazer séries de 800m, mas também tens de fazer velocidade, tens de fazer ginástica e força, também tens de ter um bom tempo de 800m, por exemplo. É muito completo. E há que ter muito cuidado com o peso. À medida que se envelhece, menos peso. E, se me permitem, acho que o nível físico dos árbitros de hoje é espetacular.

A campanha do Real Madrid contra os árbitros espanhóis

- Qual foi a sua opinião quando o comunicado do Real Madrid foi publicado após o jogo com o Espanhol e se havia razões de queixa ou para falar sobre as questões que foram discutidas, corrupção, etc.? 

- Não, não, nenhuma. Ninguém tem o direito de falar assim de ninguém. Essa é a primeira coisa. Pareceu-me que a linguagem era excessiva. Penso que a linguagem é mais uma linguagem jurídico-processual. Havia demasiados sublinhados, demasiados negritos. Era demasiado. Porque está a dizer, não apenas que o árbitro é o mau da fita, mas que todo o sistema foi concebido para prejudicar uma equipa. E nada poderia estar mais longe da verdade. É um pouco como o que eu estava a dizer antes, temos de o entender de uma forma diferente. Qualquer equipa tem o direito de se queixar de um árbitro, de dizer "que jogo nos proporcionou hoje, prejudicou-nos hoje", etc. Mas não de se sub-rogarem na capacidade de decidir que há um coletivo que é corrupto. Penso que tanto o Real Madrid como o Barça, porque no ano passado foi o Barça que disse que o campeonato estava viciado, deviam ser os líderes no respeito pelos árbitros.

- E por falar nesse assunto, como é que os vídeos periódicos da Real Madrid TV afetam os árbitros e o coletivo? 

- Nada, não afeta nada. Se alguém o faz para afetar, nada. Entendo-o como parte do mundo do espetáculo. Tens uma televisão que tem um horário e decides que parte do teu conteúdo deve ser aquilo. Bem, isso é ótimo, é respeitável. Mas se alguém pensa que isso o afeta, então não o afeta. Olhando de fora, o que me pergunto sempre é: porque é que um clube de topo, que tem os melhores jogadores, que tem uma grande massa social, que tem adeptos, que tem tudo o que é preciso para falar de futebol e de um jogo, porque é que precisa de falar do árbitro antes de um jogo? Será que não tem o suficiente para fazer? Não percebo.

"O VAR está a aumentar a pressão sobre os árbitros"

- Falemos do VAR. Considera que a sua chegada foi positiva para a arbitragem?

- Sim, sim, foi muito positiva. Gostaria de ter tido VAR noutro jogo mítico (risos). Teria gostado. Tem muitos aspetos positivos, mas o problema é saber até que ponto levámos o VAR. Penso que o VAR está a fazer com que olhemos demasiado para as fotografias e nos esqueçamos de muitas das variáveis que o jogo tem, que são a intensidade, que é um impacto no jogo ofensivo, que é deliberado, e uma fotografia não nos dá isso. Por isso, penso que temos de repensar a questão, porque o VAR também se tornou o primeiro nível de protesto. Se olharmos para o jogo em si, qualquer coisa que pareça um penálti na área, toda a gente o reclama e até vemos muitos jogadores que, em vez de se levantarem e continuarem a correr, mesmo que isso lhes doa um pouco, o que fazem é levantar-se e ficar no chão para que o lance seja revisto. Não acho que o VAR não esteja aqui para intervir nos penálti, a maior parte dos quais são discutíveis, quer participem ou não, e acho que está aqui para outras coisas. Por exemplo, o VAR está muito bem no fora de jogo.

- Está a aumentar ou a diminuir a pressão sobre os árbitros?

- Penso que está a aumentar a pressão. Refiro-me às palavras. Penso que a era do VAR é a era em que mais se fala dos árbitros. Eu não tinha VAR, mas também não ficámos tão confusos. Acho que o VAR está a tornar o árbitro demasiado tecnocrático, há alturas em que o árbitro vê demasiadas fotografias e olha demasiado para o ponto de contacto e não para a jogada em si. Isso, por um lado. E do lado das equipas, como dizia, penso que o VAR se está a tornar um pouco como o que é meu na área do adversário, reclamando mais do que o necessário e depois utilizando essa fotografia em seu próprio benefício. É aí que eu acho que precisa de ser repensado. Tanto ao nível do árbitro como ao nível do futebol, temos de dar ao árbitro em campo muito mais poder de decisão.

Acha que, com a chegada do VAR, o árbitro principal tem um pouco mais de medo de correr riscos?

- Não, não, não acho que ele tenha medo, porque, pelo contrário, sabe que tem sempre a possibilidade de ver a jogada revista, o que é mais uma razão para não ter medo quando se trata de tomar decisões. Quer dizer, eu nunca teria medo de cometer um erro e que o VAR o revisse. Pelo contrário, muito obrigado, é para isso que ele existe, não é? Porque tenho consciência de que os meus dois olhinhos e as minhas duas pernas não me dão para ver tudo. E é assim que o VAR tem de ser lido, não no sentido de o árbitro não tomar a decisão porque quer. Não, não, temos de ser claros quanto a isso e aceitá-lo.

Outra coisa é que o princípio que o protocolo VAR mais repete é o erro óbvio, claro e manifesto. Como é que se aplica um erro óbvio, claro e manifesto aos penáltis, que na maioria dos casos é "para ti sim e para mim não"? Esta é a chave, penso eu, do VAR.

O penálti de Julián Álvarez

- Recentemente, no polémico penálti de Julián Álvarez, Courtois afirmou que tinha sido ele a avisar o árbitro. O VAR pode entrar por sugestão dos jogadores ou dos treinadores?

- Não, porque uma coisa é o árbitro ir ao ecrã para ver, e outra coisa é que a partir da sala do VAR está tudo a ser revisto. Por outras palavras, as pessoas têm de ter a noção clara de que tudo está a ser revisto. É por isso que, quer se queixem ou não, já há duas pessoas que estão a rever todas as jogadas. A jogada de Julián é igual à do fora de jogo semi-automático, pois vimos fora de jogo que por um centímetro a tecnologia é capaz de perceber esse centímetro e que é fora de jogo. Pois bem, no outro dia a tecnologia é capaz de perceber que, entre a batida de uma perna e o contacto com a outra perna, não passa sequer um segundo e é um contacto que passa despercebido ao olho humano. Mas é óbvio que o VAR sabe que, quando um jogador escorrega, não precisa de verificar. E se o VAR o revê e tem a tecnologia mais recente, então aí está o resultado.

- Qual é a sua opinião sobre o penálti de Julián?

- Para mim, a questão do penálti não tem muito a ver com isso. É simplesmente o que a tecnologia mede e a precisão do fora de jogo semi-automático, que é capaz de filtrar centímetros e, neste caso, detetar que a bola lhe bate num pé e depois no outro, mesmo que seja só ligeiramente. Se não houvesse tecnologia, seria indetetável, essa é a nuance, e o resto cabe a cada um decidir.

- Qual é a melhor recordação que tem como árbitro?

- Bem, tenho duas. Uma, a final da Taça do Rei. Porque quando se apita a final da Taça do Rei, é quando se realiza o sonho, porque é a única final que um árbitro pode apitar em Espanha. E depois tenho outra boa, que é um pouco mais exótica, que é a final da Taça do Egito. Porque é um daqueles momentos da nossa vida, para além da arbitragem, que nos leva a um país lindo, que de manhã vamos ver as pirâmides, vamos ver a Esfinge, e à tarde vamos arbitrar, e de manhã vamos passear ao longo do Nilo, e à tarde ou à noite vamos arbitrar. E equilibrar tudo isso no mesmo dia parece-me uma sensação maravilhosa.

- O que é que faz em 2025?

- Bem, tenho uma empresa de equipamento hoteleiro. Vendo sobretudo camas. Descanso. Quando estava no ativo, como nunca fomos profissionais a 100%, mantive sempre a empresa, ou seja, dei-lhe alguns problemas com alguns castigos, mas depois fiz com que as pessoas dormissem bem e descansassem. Era isso que eu pensava. E foi assim que continuámos. Metade do tempo trabalhei como consultor para a Radio Marca e a outra metade trabalhei numa empresa na Cantábria, onde trabalhamos principalmente no turismo rural, fornecendo equipamento turístico a hotéis. De facto, hoje apanham-me na região de Liébana, em Potes.