Macedónia com Miguel Pires: "As pessoas reconhecem-nos na rua, tratam-nos com carinho e respeito"

Miguel Pires joga no estrangeiro desde 2021
Miguel Pires joga no estrangeiro desde 2021Arquivo Pessoal, Flashscore

O Flash pelo Mundo está de regresso ao Flashscore. Neste espaço, traremos entrevistas exclusivas com portugueses que elevam bem alto a bandeira nacional além-fronteiras. O nosso 12.º convidado é Miguel Pires, médio do Sileks FC, da Macedónia do Norte.

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Miguel Pires teve a sua primeira experiência no estrangeiro na Lituânia, mas não correu de feição. Essa passagem acabou por mudar também um pouco o rumo da sua carreira em Portugal.

De um contrato que nunca chegou a concretizar-se no Cova da Piedade, passou por três épocas no Campeonato de Portugal, entre o Montijo e o Pinhal Novo, até que, aos 24 anos, sentiu que o caminho “estava muito fechado” em solo nacional.

Seguiram-se inúmeras histórias e peripécias em Chipre, onde jogou durante quatro temporadas, até que, em 2025, surgiu o convite da Macedónia do Norte, país onde tem sido uma das figuras do Sileks FC.

Miguel Pires passou por Lituânia e Chipre antes de jogar na Macedónia
Miguel Pires passou por Lituânia e Chipre antes de jogar na MacedóniaArquivo Pessoal

"Não tinha noção da realidade na Macedónia"

- Como é que surge esta possibilidade de ir jogar para a Macedónia?

Esta oportunidade surgiu no ano passado, quando estava no Digenis. Tinha mudado de equipa em janeiro, vindo do Doxa, e o meu treinador era sérvio. Ele conhece bem os países dos Balcãs e tem muitos contactos no futebol por aqui.

Perto do fim da época, perguntou-me como estava a minha situação, se já tinha algo no Chipre, e fomos falando sobre isso. Disse-lhe que ainda não tinha nada certo, apenas algumas conversas. Ele então comentou que conhecia um agente que costumava colocar jogadores na Bósnia, Sérvia e Eslováquia.

Como esse agente procurava alguém com o meu perfil - um médio que também pudesse jogar como dez ou extremo por dentro - o treinador deu-lhe o meu nome. Entrámos em contacto, falámos, e coincidiu que o treinador do Sileks procurava exatamente um jogador com essas características. Assim surgiu o convite, e acabei por vir para aqui.

- Qual foi a sua maior preocupação quando lhe falaram sobre esse projeto?

A minha principal preocupação foi logo a parte dos salários. Eu não tinha qualquer noção da realidade na Macedónia. Só conhecia um amigo brasileiro que tinha jogado cá, no Vardar, mas nunca cheguei a perguntar-lhe como era o país ou o campeonato.

Por isso, a primeira coisa que quis saber foi se os clubes pagavam a tempo, se eram cumpridores com os bónus e essas coisas. Acho que é o que mais pesa quando se vai para fora... Sejamos sinceros, o que nos move muitas vezes não é o futebol ou a boa vida, é o dinheiro.

- E qual foi o impacto ao chegar à Macedónia? Quais foram as maiores diferenças em relação ao que estava habituado, sobretudo no Chipre?

Acho que a principal diferença foi o nível de profissionalismo do clube. No Chipre jogava na segunda divisão, e aqui é primeira, por isso nota-se logo outro cuidado.

Este ano também entrou o VAR na liga da Macedónia, e isso trouxe um impacto positivo. As equipas começaram a preocupar-se mais com os relvados, as bancadas, a estrutura dos estádios. Tudo passou a ser tratado com mais atenção.

Também começámos a pré-época muito cedo, em junho, por causa da Liga Conferência, o que não é comum, mas mostra a forma como o clube encara a competição. Apesar de sermos uma equipa jovem e com pouca experiência europeia, tudo à volta foi preparado para que conseguíssemos ser competitivos. No geral, encontrei aqui uma realidade mais profissional e bem organizada do que no Chipre.

Miguel Pires cumpre primeira temporada na Macedónia do Norte
Miguel Pires cumpre primeira temporada na Macedónia do NorteOpta by Stats Perform, Sileks FC

- Como é que você descreveria o clube a nível de infraestruturas, relvado e apoio à equipa?

Fiquei surpreendido quando entrei no clube, porque as infraestruturas são praticamente novas. É tudo concentrado num edifício pequeno, mas bem organizado, com ginásio, balneários e todas as condições necessárias.

O relvado é aquilo que muitas vezes chamamos de ervado. No início estava em boas condições, mas com o tempo e a chuva tornou-se mais pesado - aquilo por fora parece o estado do relvado do Real Madrid, mas passados dez minutos vira um campo de lama (risos). Ainda assim, dentro da realidade do país, é um bom relvado.

Sabia que não vinha para uma potência da Macedónia, mas para um clube que está a crescer e a tentar afirmar-se entre os primeiros. E nota-se esse esforço em criar melhores condições.

- Como é que você descreveria o jogador macedónio? Que características destacaria mais rapidamente?

Tanto os jogadores como as pessoas em geral são muito reservados, frios até. Nós, portugueses, mesmo quando estamos chateados, ainda respondemos a um “bom dia” com simpatia. Aqui não são mal-educados, mas são mais fechados. Acho que é algo típico dos países dos Balcãs, não gostam muito de mostrar sentimentos.

No Chipre, por exemplo, as pessoas eram mais calorosas, recebiam-te sempre com um sorriso. Aqui é diferente: cumprimentam, dão-te a mão, e fica por aí. Se não puxares conversa, passas o dia quase sem falar.

Outra diferença é a língua. No Chipre todos falavam inglês, aqui é mais complicado. Nem todos no balneário falam, e como sou o único estrangeiro fora da região - eles têm bósnios, mas falam todos a mesma língua - muitas vezes fico sem perceber nada do que se diz. No início foi estranho, mas acabei por me habituar.

Os números de Miguel Pires
Os números de Miguel PiresFlashscore

- E como é que foi a sua inclusão na equipa?

Nem tudo foi um mar de rosas. Agora as coisas estão a correr bem, tanto individualmente como em equipa, mas no início foi complicado. É um país novo, uma língua nova, e a integração custou um pouco.

Sou uma pessoa tranquila - treino, vou para casa e foco-me no meu trabalho - mas a barreira da língua dificultou bastante, até dentro de campo. No início foi duro. Durante toda a pré-época não marquei um único golo e comecei a duvidar: “Isto vai ser complicado”. Vinha de épocas no Chipre em que fazia sempre cinco ou seis golos, e aqui parecia que nada saía bem.

Depois também percebi que eles têm uma forma muito própria de jogar - jogam muito entre eles, conhecem-se há anos e têm uma ligação forte. Não é que me deixem de fora, nada disso, mas nota-se essa união entre os locais. Aos poucos fui ganhando o meu espaço e agora sinto-me mais dentro do grupo. É mesmo questão de adaptação.

- Sente que já conquistou o respeito deles? Ou ainda o olham um pouco de lado?

Ainda um bocadinho, sim. Num dos últimos jogos até tive de chamar a atenção de dois ou três colegas no balneário. Senti que a forma como me falam quando cometo um erro - um passe falhado ou uma má receção - é diferente da maneira como falam entre eles.

Percebo que é o jeito deles, mas como não estou habituado, às vezes levo para o lado pessoal. Agora já lido melhor com isso. Também sinto que, como as coisas me estão a correr bem, mereço o mesmo respeito que dou aos outros.

Eu sou assim: gosto de tratar toda a gente com um sorriso, e quando alguém erra, não faz mal, há sempre uma próxima jogada. Acho que esse respeito mútuo está a crescer e, comparando com o início, a diferença é enorme.

Miguel emigrou pela última vez em 2021
Miguel emigrou pela última vez em 2021Arquivo Pessoal

"Somos um pouco como o SC Braga e o Vitória SC"

- Como é a vida em Kratovo?

É uma vilazinha muito pequena. Quando cheguei, já sabia mais ou menos para o que vinha, mas nas imagens não parecia tão pequena. Há dois ou três supermercados, mais no estilo de mercearias, e três ou quatro cafés, pois eles passam muito tempo nos cafés, é quase um ponto de encontro diário.

Sou uma pessoa muito caseira, e no início passava bastante tempo sozinho. Tínhamos treinos cedo, por volta das sete ou oito da manhã, depois almoçávamos no restaurante do clube e eles iam logo para o café até ao treino da tarde. Eu pensava: “Mas estes gajos não descansam?” (risos). Eu, pelo contrário, preferia ir para casa descansar.

De vez em quando vinha cá um ou outro colega, víamos um jogo, jogávamos FIFA, mas no geral estava mais por casa. Agora é diferente, porque tenho cá a minha namorada e o dia a dia mudou completamente.

Apetece-me mais sair, aproveitar o tempo. Às vezes vamos até Escópia (capital da Macedónia) - é cerca de uma hora, ou uma hora e meia com trânsito - e dá para passear um bocado, ir ao centro comercial. Quando estava sozinho, ficava mais por casa a relaxar. Agora é outra dinâmica.

- E como é que os locais vivem o futebol?

Há duas realidades muito diferentes. Equipas como o Shkëndija ou o Vardar têm adeptos a sério, claques, estádios bem compostos.

No nosso caso é diferente. Kratovo é uma vila pequena e com uma população mais idosa, por isso não há muita gente jovem nas bancadas. Se tivermos cem pessoas no estádio, já é bom. Há um grupo de vinte ou trinta adeptos que fazem o papel de claque e tentam animar, mas é tudo muito familiar.

Já vi vídeos do Sileks nos anos 90 e o estádio estava cheio. Até perguntei ao fisioterapeuta o que é que aconteceu, e ele disse-me que muita daquela geração agora tem 70 ou 80 anos e já não vai ao estádio.

O apoio hoje é mais discreto, mas as pessoas reconhecem-nos na rua, tratam-nos com carinho e respeito. Sentem orgulho no clube, mesmo que não apareçam em massa nos jogos. Fora de casa, então, é quase ninguém - às vezes vai uma namorada, um pai ou uma mãe, e é isso.

A forma recente do Sileks
A forma recente do SileksFlashscore

- Como é que você descreveria o campeonato da Macedónia?

Sinceramente, acho que é um campeonato equilibrado, mas com diferenças claras entre equipas. Eu costumo comparar um pouco com o Chipre, onde vivi uma realidade mais profissional.

Aqui é parecido com o que acontece em muitos países: há duas ou três equipas que estão num nível acima, como o Shkëndija, o Struga ou o Vardar, e depois há um grupo intermédio, onde estamos nós, o Sileks, a tentar manter-nos competitivos.

O ano passado ainda havia outra equipa forte, mas acabou por ter problemas financeiros e este ano está em baixo. No fundo, é um campeonato com boas equipas no topo e outras que lutam mais pela estabilidade. Mas é competitivo, e qualquer jogo pode ser complicado, especialmente fora de casa.

- Portanto, fazendo o ponto de comparação com Portugal, o Sileks seria um SC Braga ou um Vitória SC, certo?

É tal e qual! Nós e o Struga somos um pouco como o SC Braga e o Vitória SC, e depois há os “grandes”, o Shkëndija e o Vardar, que são o Sporting e o Benfica daqui. Mesmo em termos de orçamento e salários, a diferença é enorme.

Miguel passou várias épocas em Chipre
Miguel passou várias épocas em ChipreArquivo Pessoal

As histórias da Lituânia ao Chipre: "Foi um tiro nos pés"

- O que motivou o Miguel a sair pela primeira vez para o estrangeiro?

Na altura, estava na equipa B do Cova da Piedade e tudo corria bem, tanto para mim como para o grupo. Fiz uma boa época e fui chamado para treinar com a equipa principal. Recordo-me bem do míster Eurico Gomes, que me disse logo nos primeiros treinos: “Miúdo, quem é o teu ídolo?". Eu respondi que gostava do Adrien e ele: "Esquece o Adrien, tu tens o andamento do Bruno Fernandes, eu vou fazer de ti jogador.” Para um miúdo da equipa B, ouvir isso era como um sonho. Senti que estava prestes a dar o salto e até se falava em assinar o meu primeiro contrato profissional.

Mas foi aí que surgiu o convite do Mariano Barreto, que era diretor no Cova e treinador do Stumbras, na Lituânia. Disse-me que podia ir emprestado, jogar a primeira divisão e até disputar as competições europeias. A ideia pareceu-me perfeita - ganhar experiência, competir noutro contexto e depois regressar mais forte. O problema é que, ao aceitar, acabei por não assinar o contrato profissional que o Cova me tinha proposto, algo que hoje vejo como um erro enorme.

Quando cheguei à Lituânia, percebi logo que a realidade era bem diferente do que me tinham pintado. Nem fui inscrito a tempo de jogar na Liga Europa e acabei por ter poucos minutos no campeonato. O ambiente era difícil, não me adaptei ao país, ao frio, nem ao grupo. Cheguei a detestar estar lá. O Mariano acabou por sair do Cova antes do fim da época e, quando regressei a Portugal, o clube já tinha mudado tudo - direção, treinador, estrutura - e eu deixei de ter espaço.

Voltei à equipa sub-23, que ainda estava a começar, e senti que tudo o que tinha construído se tinha desmoronado. Passei de treinar com jogadores como o Miguel Rosa e o Hugo Firmino a treinar num sintético fraco, sem condições e sem contrato. As negociações com o clube foram um pesadelo: num dia diziam-me um valor, no outro já ofereciam menos. Percebi que estava a lutar sozinho, sem agente, sem apoio e sem quem me defendesse.

Hoje vejo com clareza: ir para o estrangeiro naquela altura foi o meu tiro nos pés. Fui com a ilusão de crescer e acabei por dar dois passos atrás. Se tivesse alguém mais experiente a aconselhar-me, tinha ficado, assinado o contrato e seguido o meu caminho de outra forma no Cova. Mas cheguei a um momento que senti que não valia a pena e disse ao empresário para transmitir ao clube que já não queria mais nada com eles.

- Segue para o Olímpico do Montijo.

Estava ainda nos sub-23 do Cova da Piedade quando, no fim de novembro, fizemos um jogo de treino contra o Pinhalnovense. No final, o Sandro Giovetti, que era diretor e conhecia bem o meu irmão, veio falar comigo. Disse que já tinha ouvido falar de mim, da minha história na Lituânia e quis saber como estava a minha situação. Eu expliquei que estava à espera de ver o que acontecia em janeiro, mas deixei a porta entreaberta.

Pouco tempo depois, o Sandro disse-me que, se as coisas não se resolvessem no Cova, eu podia contar com ele. “Tens qualidade, vens ajudar o grupo”, disse-me. Quando percebi que no Piedade não havia entendimento, falei com o meu agente e decidimos avançar.

Entretanto, o Sandro saiu do Pinhalnovense e foi para o Olímpico do Montijo, que tinha os mesmos investidores. Ele manteve o convite e acabou por me levar para lá. Foi também importante o treinador, o mister David Martins, que já me tinha tentado levar para o Amora, anos antes, quando ainda jogava no Almada. Ele conhecia-me bem, acreditava em mim e abriu-me as portas do Montijo. Foi assim que começou uma nova etapa na minha carreira.

- E do Montijo segue para o Pinhalnovense.

Sim, acabei por ficar duas épocas no Montijo. Correu bem, mas depois os investidores saíram e a estrutura do clube mudou completamente. Nessa altura, o mister Marco Bicho, que já me conhecia bem, ligou-me. Tinha estado pouco tempo no Montijo, apenas uns jogos na pré-época, e estava agora no Pinhalnovense.

Disse-me que gostava do meu futebol e que queria contar comigo. Já nos tínhamos defrontado antes e havia respeito mútuo. Quando me convidou, não hesitei, pois sabia que era alguém que confiava em mim e que me podia ajudar a crescer.

- Após esses anos entre Montijo e Pinhal Novo, o Miguel acaba por abrir de novo a porta do estrangeiro. Não teve receio de voltar a acontecer o que lhe tinha acontecido na Lituânia?

Mesmo com o que vivi na Lituânia, nunca deixei de acreditar em jogar fora. Sabia que o problema, naquela altura, não tinha sido o sonho em si, mas o timing e a falta de acompanhamento. Era muito novo, fui sozinho e sem ninguém que me orientasse. Faltava-me alguém que me ligasse depois dos jogos, que me ajudasse a perceber o que podia melhorar.

Era um miúdo e quando vou para o Chipre já era outra pessoa. Tinha crescido, vivia com a minha namorada, tinha mais maturidade e percebia melhor o futebol. Aos 24 anos, sentia que em Portugal o caminho estava muito fechado. Mesmo depois de uma boa época, não apareceu nada de concreto na Segunda Liga, e percebi que era altura de procurar novas oportunidades e também algum retorno financeiro.

Foi então que o Evandro Roncato, que tinha sido meu colega no Pinhalnovense e entretanto passara a diretor, me falou de possibilidades em Chipre. Cheguei a ser contactado por empresários para ir fazer testes à Polónia, na terceira divisão. Parecia interessante, mas havia riscos: tinha de pagar a viagem e não havia garantias.

E quando tinha tudo quase pronto para ir para a Polónia, o Roncato voltou a ligar-me e disse: “Tenho um contacto no Chipre, um diretor que conheço bem. Estás interessado?” Para mim, foi quase imediato. O futebol cipriota sempre me despertou curiosidade, conhecia jogadores portugueses que tinham passado por lá e falavam bem do país e do nível competitivo. Além disso, desta vez havia contrato garantido, e isso fez toda a diferença.

As coisas aconteceram depressa: trocámos alguns telefonemas, mandaram-me o contrato e aceitei. Avisei a equipa polaca, que compreendeu a minha decisão. E assim, quase sem tempo para pensar muito, fui para o Chipre, com mais maturidade, mas com o mesmo sonho de sempre: crescer como jogador.

- Qual o balanço que faz desses quatro anos em Chipre?

O primeiro ano no Chipre não podia ter corrido melhor. Estávamos seis portugueses na equipa, criámos uma família. Sentia-me em casa e o rendimento refletia isso - nos primeiros quatro jogos em casa marquei quatro golos e cheguei a estar incluído no melhor onze do campeonato até janeiro. Mas, como acontece em equipas pequenas, a meio da época começaram os problemas: resultados que serviam os interesses da equipa, salários em atraso e dirigentes a sair. O meu agente, que também era diretor, acabou por abandonar o clube, e com ele caiu por terra uma possível transferência para o Salamis, que ia subir à Primeira Divisão.

Na segunda época, decidi ficar no Anagennisi Deryneia (fusão entre o clube em que estava e outro), porque o projeto parecia sério e ambicioso. Fiz uma boa pré-época, ganhámos jogos a equipas da Primeira Liga e tudo apontava para um ano de sucesso. Mas bastou um mau jogo de preparação para o treinador mudar completamente de postura. De um momento para o outro, deixou de contar comigo, sem explicações, apesar de dizer que eu não era jogador de segunda liga, e acabei dispensado. 

Acabei por assinar pelo Ayia Napa, já perto do fecho do mercado. Era um clube histórico, com excelentes infraestruturas, e senti-me valorizado. No primeiro ano, lutámos até ao fim para evitar a descida e consegui ajudar com cinco golos, até marquei o golo decisivo na última jornada, de penálti, que nos salvou. No final, renovei. O segundo ano foi o meu melhor no Chipre: fiz dez golos e levámos o Ayia Napa ao top 8 da Segunda Liga.

A equipa estava forte, mas as ambições não eram as mesmas para todos. Enquanto nós, estrangeiros, queríamos lutar pela subida, o clube parecia mais interessado em manter-se onde estava. Mesmo assim, joguei bem e cheguei a ter uma proposta do Omonia Aradippou, do mister Hugo Martins. Tínhamos tudo acordado, mas o Ayia Napa devia-me dois meses de salário e um bónus - mais de sete mil euros - e recusou-se a pagar. Não podia abdicar de tanto dinheiro. Acabei por não ir, o treinador ficou desiludido, e o meu agente na altura também não ajudou. Foi um momento muito difícil.

Continuei no Ayia Napa até ao fim da época, sempre a lutar contra tudo - adversários, dirigentes e até alguns colegas. Depois tive contactos do Omonia 29 e do Paralimni, mas nenhum se concretizou: mudanças de treinadores, de investidores, de presidentes… tudo mudava de repente. Acabei por assinar com o Doxa Katokopias, um clube histórico que tinha descido da Primeira Liga. Parecia uma oportunidade sólida, mas acabou por ser mais um golpe: salários em atraso, treinador despedido à terceira jornada e o presidente a abandonar o clube.

A meio da época rescindi e fui para o Digenis Ypsona, que lutava pela subida. O treinador era o mesmo sérvio que já me tinha tentado levar antes, e pensei que seria a oportunidade certa. Entrei numa equipa que estava em segundo lugar, jogámos bem, mas nos últimos jogos faltou força, dentro e fora de campo. Ficámos à porta da subida, e percebi que, no Chipre, nem sempre é o mérito que conta. 

Miguel Pires cumpre primeira época na Macedónia do Norte
Miguel Pires cumpre primeira época na Macedónia do NorteArquivo Pessoal

"Cheguei a ter interesse do Mafra, mas as condições não faziam sentido"

- Durante todo este tempo, nunca houva a oportunidade para regressar a Portugal?

Recebi uma chamada de um agente, na altura do meu primeiro ano no Ayia Napa, a dizer que o Mafra precisava de um médio. Era em janeiro, e o meu nome surgiu como hipótese. Fiquei logo entusiasmado. Voltar a Portugal, jogar na Segunda Liga, era algo que sempre desejei. 

Explicaram-me que seria para “preencher uma lacuna no plantel”, algo normal. Falou-me num ordenado de 1.500 euros, e eu aceitei logo a ideia - o dinheiro não era o mais importante. Perguntei apenas se havia casa incluída, e ele disse que teria de ir todos os dias da Margem Sul até Mafra. Fiz as contas e percebi que não fazia sentido: era muito longe, teria custos grandes e não compensava. Disse-lhe isso com alguma ironia até: “Sabe que Margem Sul e Mafra não são vinte quilómetros, certo?”

Na altura, eu vivia bem no Chipre. Ganhava um pouco mais, tinha estabilidade, uma boa casa e uma vida organizada com a minha namorada. Por isso, preferi manter-me onde estava. Pensei: “Já que me sacrifiquei tanto para construir isto aqui, mais vale continuar e tentar crescer noutro patamar.”

Depois disso, tive interesses da Liga 3 - vários clubes mostraram curiosidade -, mas nunca senti vontade de voltar nesse contexto. O nível é bom, sem dúvida, e admiro muito o projeto. É uma liga bem organizada, com visibilidade, jogos transmitidos, MVP's e reconhecimento para os jogadores. Mas é, sobretudo, um campeonato ideal para jogadores mais jovens, que precisam de se mostrar.

Comparando com o que tenho vivido fora, por exemplo no Chipre ou agora na Macedónia, percebo que o profissionalismo em Portugal é superior, mas também que os salários não chegam nem perto do que se pratica lá fora. Por isso, uma mudança só faria sentido se fosse para uma Segunda Liga ou algo estável a longo prazo.

Hoje, com a experiência que tenho acumulado no estrangeiro, não quero dar passos atrás. Quero continuar a crescer, jogar em ligas competitivas e, se possível, atingir aquele patamar que sempre desejei - seja em Portugal ou fora. Mas, honestamente, sinto que esse momento está mais perto do que nunca.

- Em relação ao futuro, qual é a perspetiva do Miguel?

Neste momento, tudo depende do clube e também do meu agente. As coisas estão a correr bem, mas o contrato que assinei foi apenas de um ano. A filosofia aqui é trabalhar com jogadores jovens para depois os vender, e eu, com 29 anos, já não entro bem nesse perfil. Ainda assim, o treinador quis contar comigo e a direção gostou do meu trabalho. Agora, resta saber o que querem fazer - se me deixam sair ou se tentam renovar.

Sinceramente, acredito que possam surgir boas oportunidades, talvez já em janeiro. No futebol, o tempo é tudo e quando se está num bom momento, é preciso saber aproveitá-lo. Tenho seis golos, estou confiante e sei que este pode ser o momento certo para dar um passo em frente, seja aqui na Macedónia, para uma equipa mais forte, seja noutro país.

O objetivo é claro: continuar a crescer e lutar por títulos. Aqui temos uma boa equipa, mas se aparecer uma oportunidade para ganhar mais e competir num patamar mais alto, é natural querer agarrá-la. O futebol também é carreira, é sustento, e é importante pensar nisso.

Se vou continuar por aqui ou seguir outro caminho, ainda não sei. Pode ser só uma passagem, como pode ser o início de algo maior. O importante é que me sinto bem, motivado e com vontade de continuar a provar o meu valor.

Os próximos jogos do Sileks
Os próximos jogos do SileksFlashscore

- E quando decidir colocar um ponto final na sua carreira, como gostaria de ser lembrado?

O que eu mais quero é que, quando terminar a carreira, as pessoas olhem para mim e digam que fui um jogador sério, que deu sempre tudo. Isso é o que mais prezo. Ao longo dos anos, já joguei em várias posições - sou médio de origem, mas também tenho feito de dez ou até extremo - e nunca disse que não a nada. Se o treinador precisar que jogue a lateral, eu jogo. O importante é ajudar a equipa.

Sempre coloquei o grupo à frente do ego. Mesmo sendo o melhor marcador, já deixei companheiros marcar porque precisavam de confiança. Gosto de ver todos bem, de manter o balneário unido. Acho que o futebol é muito mais do que números ou golos: é respeito, entrega e espírito coletivo.

Em todos os clubes por onde passei, deixei portas abertas. Tenho boa relação com presidentes, diretores e colegas e isso, para mim, é uma das maiores vitórias. Quando marco um golo e recebo mensagens de antigos dirigentes, sei que algo ficou. São pequenas provas de que o caráter também deixa marca.

Mais do que ser lembrado como “bom jogador”, quero que digam: “O Pires era um tipo sério, de bom caráter.” Sempre fui profissional, mesmo quando tive salários em atraso, e nunca deixei de treinar ou jogar. Só peço seriedade. Se há respeito mútuo, eu cumpro sempre a minha parte.

No fim, o que me vai importar é olhar para trás e sentir que dei tudo. Que fui justo, que mantive os meus valores e que deixei boas memórias nas pessoas com quem cruzei. Porque o jogador passa, mas o caráter fica.

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