CAN-2025: Exclusivo com Sheddy Barglan, o internacional pelo Sudão que nunca visitou o país

Sheddy Barglan, do Sudão, a defender as cores do FC Den Bosch
Sheddy Barglan, do Sudão, a defender as cores do FC Den BoschČTK / imago sportfotodienst / IMAGO

Aos 23 anos, Sheddy Barglan está a disputar a sua primeira Taça das Nações Africanas pelo Sudão – um país que nunca chegou a visitar.

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O médio do FC Den Bosch, que atua na segunda divisão dos Países Baixos e nasceu e cresceu nos Países Baixos, integra uma seleção sudanesa em exílio, obrigada a disputar os seus jogos na condição de visitado longe do seu território devido a uma guerra civil que já dura há dois anos e meio.

Em Marrocos, os sudaneses vão jogar por muito mais do que futebol, com a esperança de levar sorrisos a uma nação dilacerada por uma das piores crises humanitárias da história (12 milhões de deslocados, 25 milhões a sofrer de fome, mais de 150 mil mortos).

- Chegou a Marrocos há três dias. Quais são as suas primeiras impressões sobre a organização e o ambiente?

- Até agora, está tudo a correr bem. O relvado de treino tem boa qualidade e o hotel está muito bem organizado. O único ponto negativo é o tempo – está a chover e faz bastante frio. Pessoalmente, estou habituado a este clima, vindo dos Países Baixos, mas para os meus colegas é mais difícil; estão a ter dificuldades com o frio.

- Esta é a sua primeira Taça das Nações Africanas pelo Sudão. Como é que se sente por estar aqui?

- É um momento enorme para mim. As qualificações foram há um ano e, desde então, estive sempre à espera deste momento. Os últimos meses foram stressantes porque estive lesionado durante quatro meses. Só estou totalmente recuperado há cerca de seis semanas. Tive receio de falhar o torneio, mas felizmente recuperei a tempo.

- Participou na campanha de qualificação, especialmente naquela vitória memorável frente ao Gana. O que recorda desse momento?

- Foi incrível e histórico para nós. Estávamos num grupo muito difícil e toda a gente pensava que o Gana ia passar e o Sudão seria eliminado. Mas conseguimos e todos ficaram radiantes. Apesar de não ter jogado nesses jogos, estive presente em todas as concentrações da equipa. O treinador também ficou muito feliz por vencer o Gana – apesar de ser ganês, agora está com o Sudão e sentiu orgulho por termos conseguido vencer o seu país de origem.

"No Sudão, o futebol é uma das poucas fontes de felicidade que restam"

- O que significa para si, pessoalmente, vestir a camisola do Sudão?

- É um sonho de criança tornado realidade. Desde os sete anos que dizia aos meus amigos que, se algum dia tivesse a oportunidade de jogar pelo Sudão, não hesitaria nem um segundo. Os meus pais ficaram muito orgulhosos, especialmente o meu pai, que é sudanês de origem; a minha mãe é meio sudanesa. Jogar na CAN é o auge para qualquer jogador africano.

- O Sudão atravessa um período muito difícil. Sente que este torneio é mais do que apenas futebol?

- Sem dúvida. A guerra já dura há dois anos e meio. Para o povo, o futebol é uma das poucas fontes de felicidade que ainda existem. Sabemos que podemos dar-lhes um pouco de alegria e é isso que nos motiva a dar o nosso melhor. Sentimos uma enorme responsabilidade – cabe-nos a nós fazê-los felizes. Joguemos ou não, treinamos e preparamo-nos juntos. Estes 90 minutos significam muito para nós e para o Sudão.

- Sente isso também, mesmo não tendo nascido lá?

- Sim, é um pouco diferente, mas sinto-o porque os meus pais são de lá. Tento ver as coisas pela perspetiva deles. Grande parte da minha família vive lá. Agora já saíram do país, mas claro que penso neles. É muito triste ver o que está a acontecer. Falo sobre isso com o meu pai e pergunto-lhe muitas vezes como estão as coisas. Não há muita cobertura na imprensa europeia. No início, o meu pai estava muito ansioso, mas desde que a família saiu do país, tem estado melhor.

"Nunca estive no Sudão"

- Acredita que jogar esta CAN pelo Sudão pode ajudar a trazer paz ao seu país?

- Acho que quando nos qualificámos, houve um breve momento de paz. Espero que, se fizermos uma boa campanha, a guerra acabe. Mas claro, não depende só de nós. É muito mais complicado do que isso.

- Como não jogam em casa há três anos, sente que as pessoas vos apoiam verdadeiramente?

- Vejo isso nas redes sociais – apoiam-nos mesmo. Nunca estive no Sudão, por isso para mim é uma sensação um pouco diferente, mas consigo imaginar que, para os meus colegas que vivem lá, é algo muito importante.

- Nunca esteve no Sudão, nem antes da guerra. Como vive esta ligação com os adeptos?

- É um sentimento especial, é verdade. Os meus colegas que viveram lá contam-me como o país é bonito e o quanto as pessoas amam o futebol. Hoje, devido à insegurança, é impossível ir lá, talvez só a Porto Sudão, perto da fronteira. Sempre quis visitar o Sudão em criança, mas a minha mãe não tinha passaporte na altura e não queria que eu fosse sozinho com o meu pai. Sempre achou que não era seguro viajar para lá.

- A situação no país é um tema frequente no balneário?

- Curiosamente, nem por isso. Claro que os jogadores ligam às famílias, mas não falamos necessariamente sobre isso em grupo. É um tema doloroso, quase tabu por respeito. Só perguntei a um amigo há uns dias – ele é de uma região onde a guerra começou – mas ninguém fala muito sobre isso. Se estivesse no lugar deles, acho que faria o mesmo.

Mas é uma enorme motivação. Lutamos pelas nossas famílias e por todos os que nos apoiam em todo o lado. Em todos os países por onde passei, há muitos sudaneses. Por todo o mundo – Líbia, Catar, Arábia Saudita – estão em todo o lado.

"Tenho sorte por ter nascido nos Países Baixos"

- O facto de terem de jogar longe de casa afeta-o?

- Para ser sincero, sinto-me mais tranquilo aqui porque estou um pouco afastado de tudo o que se passa lá. Normalmente não ficamos muito tempo, duas semanas no máximo. O único inconveniente é mesmo a viagem, que é longa, já que venho dos Países Baixos e tenho de ir até África ou Ásia. Costumamos jogar na Líbia ou fazer estágios na Arábia Saudita. O meu primeiro estágio, em 2022, foi na Arábia Saudita.

- Como é integrar-se numa equipa com jogadores de origens tão diferentes (Austrália, Tailândia, Europa)?

- A barreira linguística é o meu maior desafio. Falo árabe libanês, enquanto eles falam o dialeto sudanês. Por isso, comunico sobretudo em inglês com alguns deles, e o colega da Austrália ajuda-me muito com as traduções. O treinador, que é ganês e fala inglês, também me ajuda bastante. Apesar disso, somos como uma grande família, com os mais velhos a apoiar os mais novos.

- Sente diferença em relação aos outros jogadores do plantel, a maioria dos quais nasceu e cresceu no Sudão?

- Consigo comparar as vidas deles à dos meus pais, que também tiveram de sair do país por causa da guerra. Tenho sorte por ter nascido nos Países Baixos.

Sheddy Barglan celebra um golo nos play-offs de promoção neerlandeses frente ao Cambuur
Sheddy Barglan celebra um golo nos play-offs de promoção neerlandeses frente ao CambuurČTK / imago sportfotodienst / IMAGO

- O facto de os dois maiores clubes do Sudão jogarem agora no Ruanda afeta a seleção?

- Não, acho que é uma boa oportunidade para eles jogarem numa Liga. É sempre melhor do que não jogar. Estão contentes por poder competir, mesmo que não seja no Sudão.

"Dar-lhes a oportunidade de esquecer a guerra durante 90 minutos"

- Desportivamente, estão num grupo muito difícil com o Burquina Faso, Argélia e Guiné Equatorial...

Sim, é um grupo complicado, mas temos hipóteses. No futebol, tudo pode acontecer.

- O vosso treinador disse que quer vencer a CAN. Partilha essa ambição?

- Isso seria incrível. A última vitória do Sudão foi em 1970. Estamos a encarar cada jogo como uma final, sem pensar demasiado no futuro. Sabemos que somos os outsiders, mas isso motiva-nos. A nossa força está em defender bem em conjunto e sermos muito perigosos no contra-ataque.

- Alguma mensagem final para os adeptos sudaneses antes do início do torneio?

- Quero agradecer muito pelo apoio, apesar de tudo o que estão a passar. Vamos fazer tudo para os deixar orgulhosos e dar-lhes a oportunidade de esquecer a guerra durante 90 minutos.