CAN-2025: Sudão encontra no futebol um refúgio face à guerra e ao colapso do país

Equipas do Sudão jogam em países como Ruanda e Mauritânia
Equipas do Sudão jogam em países como Ruanda e MauritâniaCAF

Num momento em que o Sudão enfrenta uma das mais graves crises humanitárias da sua história, o futebol continua a servir de refúgio coletivo. Com clubes forçados ao exílio no Ruanda, a seleção nacional a disputar jogos em Benghazi e jogadores espalhados por vários pontos do mundo, os Jediane Falcons desafiaram todas as adversidades.

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Apesar das condições extremas, a seleção do Sudão garantiu a qualificação para a CAN, transformando-se num raro motivo de orgulho e numa esperança, ainda que distante, para um país marcado pela destruição e pela instabilidade.

Desde abril de 2023, o Sudão está mergulhado numa guerra civil entre o exército sudanês e a milícia das Forças de Apoio Rápido, numa luta direta pelo poder. O conflito devastou bairros inteiros, provocou a morte de milhares de crianças devido à fome, forçou o deslocamento de cerca de 12 milhões de pessoas e tornou impossível a manutenção de uma vida desportiva normal.

O futebol, um dos pilares mais populares da sociedade sudanesa, não escapou às consequências do conflito. O campeonato nacional foi inicialmente suspenso e acabou por ser totalmente transferido para o estrangeiro, uma vez que a situação de segurança inviabilizou a realização de jogos em território sudanês.

Na ausência de estádios operacionais e de garantias mínimas de segurança, os clubes sudaneses viram-se obrigados ao exílio para poderem continuar a existir, disputando competições em países vizinhos ou realizando treinos no estrangeiro, muitas vezes em condições precárias.

O Al-Hilal e o Al-Merrikh, os dois maiores clubes do Sudão, abandonaram o país em julho de 2024 para escapar à guerra civil que o devasta desde Abril de 2023. Nesta temporada, passaram a competir na Liga 1 de Ruanda, depois de terem disputado a época anterior na vizinha Mauritânia.

Na Mauritânia, o Al-Hilal terminou no primeiro lugar da classificação, mas não foi coroado campeão, uma vez que o título estava reservado exclusivamente a clubes locais.

"A guerra para por 90 minutos"

Quanto aos jogadores, a maioria vive longe das suas famílias, sem saber quando poderá regressar a casa. A própria seleção do Sudão está a ser construída longe de Cartum, com concentrações organizadas fora do país, sobretudo na Líbia. Benghazi, através do Estádio Benina Martyrs, tornou-se a base da equipa, que ali tem disputado os seus jogos “em casa”.

As concentrações decorrem em condições precárias, com jogadores dispersos por ligas nacionais em exílio, clubes africanos e comunidades da diáspora no Golfo e na Ásia. Ainda assim, este cenário caótico funciona como um factor de motivação adicional para uma selecção que transformou o exílio num elemento de união e resistência.

“A guerra dura há dois anos e meio. Para as pessoas, o futebol é uma das poucas fontes de felicidade que ainda restam. Temos consciência de que lhes podemos dar um pouco de alegria, e é isso que nos motiva a dar tudo em campo”, afirmou Sheddy Barglan em entrevista ao Flashscore. “Sentimos uma grande responsabilidade: é a nossa missão fazê-los felizes.”

Sonhos de paz

O Sudão garantiu o apuramento directo para a CAN, a primeira desde o início da guerra civil, inserido num grupo particularmente exigente, com Gana, Angola e Níger.

Ainda assim, os Falcões de Jediane perderam apenas dois encontros, frente a Angola e ao Níger, e chegaram mesmo a vencer o Gana por 2-0, em casa, afastando as Estrelas Negras da principal competição continental.

Para James Kwesi Appiah, atual seleccionador do Sudão e antigo técnico do Gana, o apuramento teve também um sabor a desforra. Appiah foi afastado pela federação ganesa em 2019, e esse passado acrescenta uma camada simbólica a um percurso marcado pela superação. Mais do que vingança pessoal, é a revolta contra uma história e um contexto sobre os quais não têm controlo que alimenta este grupo de jogadores, a maioria deles nascida no próprio país.

Isolados, longe dos seus entes queridos, acompanham à distância o inferno a que dois comandantes militares têm submetido a população, num conflito atravessado por interesses e influências estrangeiras. Hoje, todos sonham com a possibilidade de voltar a jogar em casa, em Cartum ou Omdurman. Até lá, terão de se contentar com o apoio de adeptos igualmente exilados, espalhados por África, que se reúnem em estádios do Marrocos para fazer ouvir a sua voz.

Sem ter conseguido o apuramento para o Campeonato do Mundo, um feito que, segundo James Kwesi Appiah, poderia até ter “acabado com a guerra” no país, o Sudão deposita agora as suas esperanças numa boa prestação na CAN. A selecção integra um grupo exigente, com Argélia, Burkina Faso e Guiné Equatorial.

“Respeitamo-los, mas não os tememos”, garante Appiah, que alimenta o sonho de ver o Sudão conquistar a competição. “Se entras em campo a pensar em nomes como Lionel Messi ou Cristiano Ronaldo, perdes mentalmente antes mesmo de o jogo começar. A minha mensagem para os jogadores é simples: acreditem em vocês próprios e joguem para mostrar do que o Sudão é capaz. Estamos aqui para competir, não apenas para participar”, concluiu.