A Zâmbia derrotou os temidos Elefantes da Costa do Marfim nas grandes penalidades na final em Libreville, após um empate 0-0 no tempo regulamentar, mas isso é apenas uma parte da história.
Para compreender verdadeiramente a dimensão deste triunfo, é preciso recuar a 1993 e a uma das maiores tragédias do futebol africano.
A seleção nacional zambiana viajava até ao Senegal para um jogo de qualificação para o Mundial-1994, com praticamente todo o plantel a bordo de um avião da força aérea que partiu de Lusaca e aterrou em Libreville, no Gabão, para a segunda de três paragens de reabastecimento.
Segundo os relatos, já tinham sido detetados problemas no motor durante a paragem anterior em Brazzaville, no Congo, mas o avião prosseguiu viagem. Ao descolar de Libreville, o motor esquerdo incendiou-se, um incidente grave mas não necessariamente fatal. No entanto, tudo indica que o piloto desligou por engano o motor direito, deixando o aparelho em apuros antes de se despenhar no mar, matando as 25 pessoas a bordo.
Essa equipa zambiana contava com vários jogadores que tinham goleado a Itália por 4-0 nos Jogos Olímpicos de Seul em 1988, embora o capitão Kalusha Bwalya não estivesse no avião, tal como outros jogadores que atuavam na Europa e tinham viagens separadas para se juntarem à equipa no Senegal. Mesmo assim, 18 elementos do plantel perderam a vida, dizimando a seleção nacional e mergulhando o país no luto.

A equipa foi rapidamente reconstruída e falhou a qualificação para o Mundial 1994 por apenas um ponto frente a Marrocos. Chegou ainda à final da CAN-1994, onde esteve a vencer antes de a Nigéria dar a volta ao resultado e triunfar por 2-1. O acidente continua a ser um dos dias mais negros da história da Zâmbia, muito para além do futebol.
Mas em 2012, os Chipolopolo chegaram à fase final da CAN sem grandes expectativas, vistos como outsiders sob o comando de Hervé Renard.
O triunfo já era notável; o facto de ter acontecido a escassos metros do local onde os seus compatriotas perderam a vida 19 anos antes é uma coincidência extraordinária, tendo em conta a vastidão do continente africano. Parecia que os espíritos dessas jovens vidas interrompidas empurravam os jogadores para a vitória.
No entanto, Kennedy Mweene, guarda-redes da seleção de 2012 e autor de um dos golos na decisão por penáltis vencida por 8-7 frente aos marfinenses, garante que os jogadores sempre acreditaram no feito.
"Quando chegámos à CAN-2012, a confiança nasceu depois da CAN-2010 em Angola", conta Mweene ao Flashscore numa entrevista exclusiva.

A Zâmbia tinha chegado aos quartos de final em Angola dois anos antes, mas foi eliminada nas grandes penalidades pela Nigéria após um 0-0.
"Fizemos um estágio em Joanesburgo (África do Sul) e cerca de 90 a 95% do plantel era o mesmo que tinha estado em Angola", explica: "Reunimo-nos entre jogadores e dissemos: 'Não podemos sair nos quartos em 2010 e ir ao Gabão para cair logo na fase de grupos'. Começámos a assumir responsabilidades. Se alguém se atrasava no treino, era chamado à atenção. Corrigíamo-nos uns aos outros como amigos. Depois de esclarecermos tudo entre nós, tudo ficou mais simples para o treinador, porque já sabíamos o que ele esperava. Dissemos que não estávamos ali para fazer figura de corpo presente, mas para lutar. A maioria de nós jogava em África, conhecíamo-nos bem e essa união tornou-se a nossa força. A partir daí, tudo fluiu."
O francês Renard iniciou a carreira de treinador em África, primeiro como adjunto do experiente Claude Le Roy, depois como técnico principal.
Em 2012, vivia a sua segunda passagem à frente da Zâmbia e mantinha uma excelente relação com os jogadores.
"Era muito exigente no trabalho, mas também flexível", prossegue Mweene: "Tratava-nos como adultos, dava-nos liberdade quando era merecida, sobretudo ao fim de semana, mas exigia 120% nos treinos. Ouvia-nos, mas também nos puxava. Podia chamar-te à parte e dizer: 'Este não é o Kennedy que conheço, o que se passa?'. Os jogadores gostavam disso, porque mostrava que se preocupava connosco. Confiávamos nele e ele confiava em nós. Para muitos, era como um pai ou um irmão mais velho."

Qualquer treinador dirá: vencer o primeiro jogo de um torneio é fundamental, e a Zâmbia surpreendeu ao derrotar o Senegal por 2-1 graças aos golos de Emmanuel Mayuka e Rainford Kalaba.
"Antes do Senegal, o treinador disse-nos: 'Quem conhece o Kennedy? Quem conhece o Chris (Katongo)? Ninguém. Então porque jogar sob pressão?'" recorda Mweene: "Disse que se perdêssemos, ninguém falaria disso. Se ganhássemos, seria uma história. Isso tirou-nos toda a pressão. Depois do 2-1, lembrou-nos que não era uma questão de individualidades, mas sim de equipa. Esse triunfo fez cada jogador acreditar que era possível."
A Zâmbia recuperou por duas vezes para empatar 2-2 frente à Líbia, algo que Mweene considera prova do espírito combativo do grupo.
"Esse jogo foi como jogar numa piscina, o relvado estava alagado depois de fortes chuvas. Ao intervalo, (Renard) disse-nos: 'Como conseguem jogar a este nível contra o Senegal e agora mostram mediocridade?'", recorda Mweene: "Disse que dependia de nós decidir se queríamos ganhar ou perder. Depois sentou-se e deixou-nos conversar entre nós. Percebemos logo a mensagem. Voltámos mais fortes, empatámos duas vezes e garantimos o ponto. Ele sabia sempre como nos motivar."
A melhor exibição na fase de grupos surgiu provavelmente no último jogo, em Malabo, onde venceram os coanfitriões Guiné Equatorial por 1-0 perante 44 000 adeptos fervorosos.
"Brincávamos muitas vezes com os avançados a dizer: 'Marquem só um golo, eles não marcam contra nós'", conta Mweene: "Havia sempre uma aposta entre defesas e avançados nos treinos. Se sofrêssemos, os defesas pagavam. Se os avançados não marcassem, eram eles a pagar. Isso criou um espírito de luta. Mesmo contra os anfitriões, acreditávamos que iríamos dar a volta, acontecesse o que acontecesse. Todos confiavam no coletivo."
A Zâmbia era favorita para os quartos de final frente ao Sudão devido ao seu momento de forma, e venceu por 3-0.
"As pessoas achavam que o Sudão seria um adversário fácil, mas não deixámos que essa ideia nos afetasse. São adversários perigosos, porque conhecemo-los pouco", explica Mweene: "O treinador disse-nos: 'Sempre que houver uma oportunidade, é para concretizar. Marquem e divirtam-se'. Dissemos: 'Não podemos sair nos quartos depois de jogar com o Senegal, a Líbia e os anfitriões'. Foi esse espírito que nos levou em frente."

Vencer a Costa do Marfim na final foi um feito enorme, mas Mweene considera que o jogo mais difícil foi a meia-final frente ao Gana em Bata, decidida por um golo de Mayuka e depois de Mweene ter defendido um penálti de Asamoah Gyan.
"O jogo com o Gana foi o mais duro de todo o torneio, até mais do que a final", confessa o guarda-redes: "(Renard) disse-nos que o Gana tinha melhores jogadores individualmente, mas que nós éramos mais fortes como equipa. Aguentámos o jogo o máximo possível e marcámos. Ainda hoje digo que essa meia-final foi o jogo mais difícil da minha carreira."
A final frente aos marfinenses foi muito disputada, terminou sem golos e a Zâmbia venceu nas grandes penalidades. Mweene teve a coragem de marcar o quinto penálti da sua equipa, apesar de já estar habituado a esse papel ao longo da carreira.
Kolo Touré e Gervinho falharam as suas tentativas na decisão, e a Zâmbia sagrou-se campeã pela primeira vez, contra todas as expectativas.
"Foi uma alegria imensa estar na final", recorda Mweene. "O adversário pouco importava, o essencial era lá estar. Tudo pode acontecer numa final. O treinador lembrou-nos que não éramos a primeira seleção zambiana a chegar a uma final, a de 1994 também o conseguiu. Por isso, se ficássemos em segundos, não seria histórico. 'Se querem ser recordados', disse, 'vão até ao fim e ganhem'. Todos esperavam que a Costa do Marfim vencesse, tinham Drogba, Touré, Gervinho, todos esses grandes nomes. Mas sentíamos que era o nosso momento de fazer história. Quando fomos para as grandes penalidades, estávamos confiantes. Já as tínhamos treinado antes do torneio. Cada um sabia o que tinha de fazer."

Os jogadores zambianos deslocaram-se à praia junto ao local do acidente que tirou a vida a 25 compatriotas, para lhes prestar homenagem em momentos de grande emoção durante a CAN.
"Para ser sincero, aquela equipa que desapareceu em Libreville em 1993 era muito melhor do que a que venceu a CAN em 2012", admite Mweene: "Acredito que qualquer jogador o diria. Aquela equipa tinha tudo. Mas fomos nós os escolhidos para ganhar a CAN, não sei explicar porquê. Fomos abençoados. Coube-nos a nós fechar finalmente o capítulo desses heróis, concretizar o que o acidente lhes negou. Pudemos sorrir e dizer: 'missão cumprida'. Começamos a perceber porque, de repente, nos vimos numa final. Porque jogámos no Gabão, onde os nossos irmãos, os nossos pais, caíram. Há uma razão para estarmos aqui, e uma razão para termos lutado até ao fim. Era preciso fechar esse capítulo por eles. E conseguimos."
A Zâmbia vai defrontar o anfitrião Marrocos, o Mali e as Comores no grupo A da fase final de 2025, que arranca a 21 de dezembro. O primeiro jogo será frente ao Mali em Casablanca, no dia seguinte.
