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Ciclismo: Os dias de "fome" acabaram e os ciclistas preparam-se para se empanturrarem na Volta à França

Ciclistas na Volta a França
Ciclistas na Volta a FrançaTIM DE WAELE / Getty Images via AFP
Não há muito tempo, os ciclistas que se preparavam para a Volta à França eram magricelas que pesavam e mediam cada grão de arroz que entrava no seu corpo, mas essa imagem não só desapareceu, como sofreu uma mudança sísmica na direção oposta.

Os ciclistas deste ano vão empanturrar-se como nunca antes, ingerindo o equivalente a um prato grande de massa por hora e até treinando os seus estômagos para lidar com este fluxo de comida.

"A ingestão duplicou", declarou à AFP Julien Louis, nutricionista da equipa Decathlon-AG2R.

Na verdade, é uma reviravolta de 180 graus em relação aos anos 2010 e à moda "low carb" popularizada pela equipa Sky de Chris Froome, quatro vezes vencedor da Volta à França. Este método consistia em privar o corpo de açúcares durante o treino para perder peso e incentivar o corpo a utilizar a gordura como energia.

"Dois ovos ao pequeno-almoço e partíamos para cinco ou seis horas de treino, com água nas garrafas. Estávamos exaustos o tempo todo", recorda o veterano britânico Simon Yates, vencedor do último Giro.

O escalador Pavel Sivakov traça um quadro ainda mais dramático.

"Mentalmente, foi muito difícil", diz:  "Estávamos a morrer de fome, sem energia, a usar a nossa gordura."

Esses dias já lá vão.

"Quando não há mais nada no depósito, o corredor passa a usar a gordura", explica Louis, que costumava trabalhar para o Liverpool, da Premier League inglesa: "Funciona, mas é muito menos eficaz do que os hidratos de carbono."

"Nunca comi tanto"

Basta olhar para o mapa da Volta à França, que percorre 3.338 quilómetros ao longo de três semanas, desde Lille, até ao sul e de volta a Paris para a chegada, para perceber as necessidades nutricionais de um ciclista. O ciclista gasta cerca de 7.000 calorias numa das etapas de montanha, que exigem muito dos pulmões e dos músculos.

"É preciso comer quatro vezes mais do que uma pessoa normal", diz Simon Carr, da Cofidis. "Nunca comemos tanto numa bicicleta."

A maioria dos ciclistas ingere agora até 120 gramas de hidratos de carbono por hora durante a corrida, em alguns casos até mais, o que é enorme.

"É o equivalente a seis bananas ou cerca de 200 gramas de massa seca por hora", diz Louis.

Até há pouco tempo, a ingestão de quantidades tão elevadas, principalmente sob a forma de géis e bebidas energéticas, era inimaginável, pois provocaria demasiados problemas intestinais. "Até há cinco anos, 120 g de hidratos de carbono por hora era impossível", explicou Tadej Pogacar num podcast em setembro, acrescentando que tal ingestão o teria levado a precisar de uma ida à casa de banho.

Desde então, foram feitos grandes progressos nos produtos energéticos, que agora contêm uma combinação de dois tipos de hidratos de carbono.

"Durante muito tempo, pensámos que só existia um tipo de transportador de hidratos de carbono no intestino", explica Louis: "Depois descobrimos que havia um segundo tipo que podia transportar frutose. Assim, ao utilizarmos estas duas vias ao mesmo tempo, podemos absorver o dobro do açúcar".

De acordo com todos os entrevistados pela AFP, estes avanços na nutrição, juntamente com a evolução dos equipamentos e dos métodos de treino,ajudam a explicar os níveis de desempenho cada vez mais elevados no ciclismo, um desporto que tem sido frequentemente associado à dopagem.

Embora os produtos sejam atualmente mais bem tolerados pelo organismo, o que torna possível esta revolução, os ciclistas têm ainda de treinar o seu estômago para lidar com tais quantidades.

"Caso contrário, não se consegue digerir quando nos pedem para comer seis géis por hora. O corpo simplesmente não consegue aguentar", diz Pauline Ferrand-Prevot, vencedora da Paris-Roubaix feminina deste ano e medalha de ouro no cross-country de BTT nos Jogos Olímpicos de Paris.

Descobriu isso da pior forma quando desistiu, doente, durante os Campeonatos do Mundo em setembro, pouco habituada às distâncias mais longas após a sua mudança do BTT.

Durante o treino de inverno, os ciclistas fazem agora "pelo menos uma sessão por semana de treino intestinal, ou 'treino do intestino'", diz Louis.

"No início, pode haver algum desconforto", acrescenta. "Mas sem isso, está-se em grande desvantagem. É como se não estivéssemos a funcionar com o mesmo combustível."