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Perfil: Um novo Pogacar, mais controlado e sombrio, apareceu neste Tour

Pogacar celebra conquista do Tour
Pogacar celebra conquista do TourMarco BERTORELLO / AFP

Um novo Tadej Pogacar emergiu na 112.ª Volta a França, com o ciclista esloveno a trocar as suas características impulsividade e descontração por um perfil mais calculista e sério rumo ao quarto triunfo na geral da prova francesa.

Nesta Volta a França, houve um novo Tadej: menos exuberante, mais racional - chegou a oferecer a amarela para não ter de defendê-la nem perder tempo de descanso com as cerimónias protocolares -, consideravelmente menos paciente para entrevistas e outras minudências e sem o killer instinct que exibiu na passada edição, em que foi um verdadeiro canibal.

Sobretudo na última semana, e após a visita da namorada, a também ciclista Urska Zigart, Pogi pareceu saturado do Tour, que venceu pela quarta vez depois de 2020, 2021 e 2024, contando os dias para regressar à sua casa, no Mónaco, após derrotar os ‘fantasmas’ que o atormentavam, nomeadamente o Col de la Loze – não mais terá de ouvir o eco da frase "I’m gone, I’m dead", perpetuada desde o seu colapso naquela subida em 2023.

“Mal posso esperar que a Volta a França acabe para poder regressar à minha vida normal. Pergunto-me muitas vezes por que ainda estou cá, estas três semanas são tão longas. Estou a contar os quilómetros para Paris. (…) Ainda é bom estar aqui a correr, mesmo na terceira semana, quando estás cansado e farto de toda a gente à tua volta, mas só quero ir para casa”, desabafou na sexta-feira.

Ao contrário das suas adoradas clássicas, o Tour nunca foi uma paixão para o esloveno, obrigado pela equipa a estar na mais importante corrida do mundo, e isso notou-se particularmente nesta edição, em que os seus característicos sorriso e boa disposição andaram desaparecidos, sendo substituídos por um ar ausente e até triste nos últimos dias, apenas apagado este domingo, quando voltou a demonstrar a sua conhecida impulsividade, arriscando para tentar ganhar a derradeira etapa.

Temporada exigente

Cansaço físico ou desgaste psicológico devido a uma temporada exigente - a do ano passado foi muito mais -, uma lesão mais séria escondida sob a manga personalizada com as cores do arco-íris que envolveu o seu braço desde que caiu na 11.ª etapa ou desmotivação por não ter tido rivais à altura, nem mesmo Vingegaard? Só o próprio poderá responder, mas, como já admitiu, sai desta Grande Boucle uma pessoa diferente, bem distante daquele miúdo que despontou na Volta ao Algarve de 2019.

Foi em Portugal que o então tímido teenager, com a cara cheia de borbulhas e visíveis dificuldades em expressar-se em inglês, conquistou a primeira vitória como profissional e, desde então, o seu currículo não parou de crescer, chegando aos três dígitos nesta Grande Boucle, quando, auxiliado pelo luso João Almeida, venceu a quarta etapa.

Esse centésimo triunfo – tem agora 104, após ganhar outras três etapas e a geral da prova francesa – é um mero número perante a dimensão de uma carreira só equiparável à de Eddy Merckx e de um personagem que cruza fronteiras no desporto pelo seu carisma e desconcertante descontração, sendo um fenómeno mesmo entre outros desportistas de elite, como, por exemplo, o piloto de Fórmula 1 Carlos Sainz, o vizinho com quem costuma passear de bicicleta.

Apesar da fama, o líder da UAE Emirates não mudou: continua a ser o maior motivador dos seus colegas de equipa, tanto na estrada como nas redes sociais, não se esquecendo de os parabenizar quando alcançam feitos pessoais, nunca poupa elogios aos adversários e delineia o seu próprio calendário.

O que falta no palmarés?

Depois de ter sido o primeiro ciclista desde Stephen Roche (1987) a alcançar a Tripla Coroa, vencendo Giro, Tour e título mundial de fundo no mesmo ano, decidiu abdicar da defesa do título na corsa rosa para concentrar-se nas clássicas e ficou no pódio de todas elas: conquistou pela terceira vez a Strade Bianche e a Liège-Bastogne-Liège e pela segunda vez a Volta a Flandres e a Flèche Wallone.

Com nove monumentos no currículo – além das vitórias em Liège e na Flandres, tem quatro na Volta à Lombardia -, falta-lhe o mais desejado, a Paris-Roubaix, que perdeu para o único ciclista que tem sido capaz de derrotar, o neerlandês Mathieu van der Poel.

Essa é uma das poucas lacunas de um palmarés de alguém que já ganhou (quase) tudo, desde as principais provas de uma semana como Critério do Dauphiné (2025), Volta à Catalunha (2024), Paris-Nice (2023) e Tirreno-Adriático (2022 e 2021), às clássicas mais prestigiadas, tendo também uma medalha olímpica (o bronze em Tóquio-2020) num percurso em que nunca ficou fora do pódio nas grandes Voltas em que participou – foi terceiro na estreia na Vuelta2019 e segundo, atrás de Vingegaard, no Tour em 2022 e 2023.

Neste percurso de sucesso, o mais curioso é que o primeiro amor do rapaz, nascido em 21 de setembro de 1998, em Komenda, até nem foi o ciclismo, modalidade que apareceu quase por acaso na sua vida, quando era o futebol a força que o movia; foi o irmão Tilen, que se inscreveu no clube velocipédico de Ljubljana, o grande responsável por este domingo o esloveno ser tetracampeão do Tour.

“Quis imediatamente imitar o meu irmão, mas não tinham uma bicicleta tão pequena no clube”, revela no seu site pessoal. Fazendo jus à perseverança evidenciada na sua carreira, não desistiu de seguir as pisadas de Tilen e, em pleno inverno, com apenas nove anos, começou a acompanhá-lo nos treinos, participando na sua primeira corrida logo em 2008, com bons resultados, para nunca mais parar.

O potencial tremendo, corroborado pela conquista da Volta a França do Futuro (2018), chamou a atenção da UAE Emirates, que lhe ofereceu um contrato (atualmente quase vitalício), com o desfecho que agora se conhece.