Mais

Ciclismo: Artem Nych, o introvertido e afável russo que só sabe ganhar

Artem Nych converteu-se no incontestável dominador da Volta a Portugal em bicicleta
Artem Nych converteu-se no incontestável dominador da Volta a Portugal em bicicletaFederação Portuguesa de Ciclismo
Artem Nych, o gigante russo que fugiu da guerra com uma mochila às costas, encontrou em Portugal o seu porto de abrigo e retribuiu o acolhimento convertendo-se no incontestável dominador da Volta a Portugal em bicicleta.

É caso para dizer que o russo de 30 anos chegou, viu e venceu: hoje, juntou-se à lista de bicampeões da prova rainha do calendário nacional, vestindo pelo segundo ano consecutivo a amarela final, depois de ter sido quarto na edição de 2023, a sua primeira.

Estou feliz por ter conseguido vencer o ano passado, já me deixou mais tranquilo. Sinto que já não tenho pressão para ganhar, porque já ganhei uma vez”, disse à agência Lusa antes do arranque da 86.ª edição.

E essa leveza notou-se dia após dia, com o corredor da Anicolor-Tien21 a mostrar-se tão impassível na estrada como fora dela, num domínio absoluto que lhe permitiu liderar a geral desde a quarta etapa, ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando precisou de integrar duas fugas – e da fulcral ajuda de Frederico Figueiredo - após um início de Volta desastroso

Mais difícil do que conquistar a sua segunda Volta terá sido lidar com o peso da amarela: introvertido, Nych ainda não está à vontade com o estrelato, embora já se solte mais por saber falar português.

Nesta Volta, confessou aos jornalistas que as duas primeiras foram particularmente difíceis, pois transformar o raciocínio em palavras obrigava-o a um desgaste maior do que subir a Torre – a comparação foi feita pelo diretor desportivo Rúben Pereira e confirmada depois pelo russo.

“Agora, é ‘top’”, lançou com uma das suas características e desarmantes gargalhadas, que contagiam quem o ouve.

Campeão nacional de fundo em 2021, Nych foi resgatado pela então Glassdrive-Q8-Anicolor ao desemprego a que foi condenado com o desaparecimento da Gazprom-RusVelo, devido à invasão da Rússia à Ucrânia,

Para chegar aqui, o portentoso gigante de 1,95 metros e sorriso rasgado fugiu da Rússia com uma mochila às costas, numa viagem com paragem na Bielorrússia, Cazaquistão, Turquia e, finalmente, Santa Maria da Feira, a cidade onde vive.

De relações cortadas com o pai, apoiante de Vladimir Putin e defensor de uma guerra na qual esperava que o filho participasse, Nych tem na mãe e na irmã, que deixou para trás e nunca mais viu pessoalmente, os seus grandes apoios.

Vindo da Sibéria, mais concretamente da cidade de Kemerovo, onde nasceu em 21 de março de 1995, cumpriu todo o percurso profissional em equipas russas, iniciando-se na Russian Helicopters (2014) antes de mudar-se para a Gazprom-Rusvelo.

Foi na formação nacional – contam-se pelos dedos das mãos os estrangeiros que por lá passaram – que Nych conseguiu os melhores resultados, a começar pelo título russo de fundo de sub-23 em 2015, ano em que se estreou a correr em Portugal, ao alinhar na Volta ao Algarve.

Duas vezes 12.º classificado na Volta a França do Futuro, em 2016 e 2017 – nessa época, sagrou-se vice-campeão nacional de fundo de elites -, alcançou alguns top 10 em provas um pouco por toda a Europa, mas viu a sua carreira condicionada também pelo calendário limitado da Gazprom-Rusvelo.

Ciclicamente convocado para a seleção russa, representou a sua nação nos Jogos Europeus e também no Campeonato da Europa, sem nunca conseguir dar o salto além-fronteiras, já que os seus melhores resultados foram registados nos Nacionais: além do título de 2021, ainda foi vice-campeão de fundo no ano seguinte e medalha de bronze no ‘crono’ em 2019.

A extinção da Gazprom-Rusvelo deixou-o desamparado, como tantos dos seus antigos colegas, até que Rúben Pereira o descobriu e lhe ofereceu um contrato – e uma vida – em Portugal.

Frio na estrada, Nych é afável fora dela, impressionando pela cortesia e pela boa vontade com que tenta entender o que lhe dizem, num exercício de perseverança, a mesma que hoje o ajudou a ganhar a sua segunda Volta a Portugal.