Mais

Volta a Portugal: As gerações velocipédicas já não são o que eram

Pelotão da Volta na estrada
Pelotão da Volta na estradaVolta a Portugal/Podium Events
Os veteranos do ciclismo português recordam com nostalgia tempos passados, considerando que hoje há menos respeito no pelotão e menos convívio, com os ‘miúdos’ a preferirem a internet aos conselhos dos mais experientes.

Para já, sinto que há menos respeito no pelotão. Acho que agora todos os ciclistas jovens têm a ambição de chegar ao WorldTour e isso leva-os a arriscar um bocadinho mais e a fazer tudo por tudo para chegar um lugar à frente, porque sabem que um contrato desses pode mudar a vida deles. Sem dúvida alguma que é muito mais arriscado andar no meio do pelotão e não medem o risco, anda-se a mais velocidade também por isso”, enumerou Joaquim Silva.

Curiosamente, respeito foi também a primeira palavra escolhida por João Matias (Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua) e Rafael Reis (Anicolor-Tien21) para distinguir a sua geração – nasceram os três no início dos anos 90 – dos ciclistas de 20 anos que estão agora a começar.

O que eu quero é que haja respeito no pelotão e não é por eu ser velho que têm que ter respeito por mim. Tem que haver respeito por todos. O que se nota é que há muito mais stress, há muito mais irresponsabilidade. A verdade é que também há muita pressão para estes jovens”, denunciou o pistard da equipa de Mortágua, lembrando que os miúdos procuram mostrar-se para chegarem à elite do ciclismo e “ganhar dinheiro”.

Joaquim Silva, ciclista da Efapel, lembra que, nos seus inícios, “quando alguém mais velho falava, os mais novos ouviam e calavam: “Basicamente é como em casa com os pais, uma pessoa tem que respeitar sempre os mais velhos e, agora, acho que isso passou um bocadinho à história, infelizmente”.

Havia um respeito diferente. Ou seja, nós víamo-los mais como ídolos. Sinto que isso agora também acontece, mas antigamente acho que mais. Também as coisas mudaram bastante com as redes sociais”, notou Rafael Reis, o primeiro camisola amarela da 86.ª Volta a Portugal

O aparecimento das redes sociais é unanimemente apontado por estes ciclistas como chave na mudança de comportamentos do pelotão, nomeadamente do hábito de conviver com o staff no camião das respetivas equipas no pós-jantar, uma tradição que os três fazem questão de manter.

Quando passei a sub-23 e ao chegar a profissional, tinha um telemóvel de teclas a preto e branco. Quando muito jogava à cobrinha”, brincou Matias, de 34 anos, apologista de ir ao camião “comer umas amendoinhas e beber uma cervejinha”, um ritual que o liberta “um bocado da pressão, porque nem tudo é ciclismo, nem tudo é competição”.

A influência da internet faz com que os mais novos ouçam menos os colegas já instalados no pelotão, com Silva a dizer que “às vezes, é preciso mesmo ralhar, é preciso repetir vezes e vezes sem conta o mesmo assunto”.

Como há tanta informação na internet e ChatGPT e coisas afins, é difícil fazer a experiência valer mais que isso. Eles pensam que o ChatGPT sabe tudo e resolve tudo e, para mim, a experiência conta muito mais do que o que se vê na internet ou o que se lê. Há muitos podcasts, muita informação e isso também baralha um pouco a cabeça dos miúdos”, alerta Quim.

Embora ainda se sinta escutado, Reis reconhece que “há ciclistas que têm outras mentalidades e que têm um ego diferente e que acabam por não ouvir”.

Com pouca gente “daqueles anos” no pelotão, estes trintões começam a pensar no seu papel, com o sprinter da Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua a admitir que quando sentir que o ciclismo já não vale a pena, “mais vale pendurar a bicicleta e ir para casa”.

Naqueles momentos piores que passo em cima da bicicleta, começo logo a pensar ‘será que estou demasiado velho? Será que o meu corpo está a regredir em vez de se manter?’. Se calhar, se fosse há seis, sete anos, com esta idade, supostamente ainda estaria no meu expoente máximo até aos 36, 37, 38. Só que agora há tanta gente nova e tão pouco lugar para os velhos”, concedeu o homem da Efapel, de 33 anos.

Quim citou mesmo o exemplo de Geraint Thomas, o campeão do Tour-2018 que se retira esta temporada aos 39 anos, um dos maiores denunciantes desta nova realidade do ciclismo mundial, em que os mais velhos são preteridos por promissores jovens, com as equipas a ansiarem pela descoberta de “um novo Remco Evenepoel ou um novo Tadej Pogacar”.

Quanto mais gente experiente estiver no pelotão, mais se poderá influenciar de forma positiva os mais novos e acho que isso é o que falta”, destacou Quim.