O ciclista de A-dos-Francos, de 27 anos, vive numa bolha. Confiança, só dá às suas pessoas, um núcleo duro constituído, essencialmente, por família, namorada, empresário. Sempre que pode, esquiva o foco mediático, os jornalistas e até os adeptos, preferindo resguardar-se no seu mundo.
Entrevistá-lo pode ser um desafio, embora esteja cada vez mais solto e à vontade, mostrando-se descontraído e elaborando mais as respostas, como já fazia antes quando a língua do diálogo era o inglês, ainda que não deixe de recorrer a chavões como o agora mundialmente famoso it is what it is ('É o que é', em português), um mantra que repetiu à exaustão rumo ao segundo lugar nesta Volta a Espanha.
Quem com ele trabalhou elogia-lhe o profissionalismo, mas também dá conta de alguma teimosia e distração, as mesmas que foram responsáveis pelos seus conhecidos erros de colocação, ausentes nesta edição da Vuelta, onde demonstrou uma renovada coragem e ambição, resultantes do estrondoso sucesso que registou esta temporada, nomeadamente ao entrar na história como primeiro ciclista a conquistar as Voltas ao País Basco, Romandia e Suíça no mesmo ano.
A evolução de Almeida enquanto voltista foi ainda mais evidente nesta Volta a Espanha do que tinha sido quando terminou no pódio do Giro2023 ou foi quarto no Tour2024, pelo simples facto de ter colocado à prova Jonas Vingegaard, que bateu no alto do Angliru e de quem foi o único verdadeiro rival ao longo de três semanas.
Em Espanha, voltou a exibir a consistência e o conhecimento pessoal que o tornam um caso único no pelotão – as suas recuperações nas etapas de montanha são já uma característica inspiradora de memes – e a fazer história, igualando Joaquim Agostinho, segundo na Vuelta1974, como melhor português de sempre em grandes Voltas.
“É uma pessoa muito segura. Mesmo quando não corre assim tão bem em relação às perspetivas dele, a moral é sempre alta. Nunca vai para a corrida derrotado. E, depois, é uma pessoa calma, não se enerva, não pensa que vai correr mal. E ele cresce quando é líder”, resumia José Poeira, à Lusa, depois de Almeida ter feito sonhar o país com os seus 15 dias de rosa e ter sido quarto na geral final do Giro-2020.
O selecionador nacional conhece o corredor de A-dos-Francos, que antes de se render ao BTT e, posteriormente, ao ciclismo de estrada, ainda andou no futebol e até no rancho folclórico local, desde que o convocou para um estágio de cadetes e ficou impressionado com a prestação do miúdo, que demonstrou ter “capacidades muito acima da média em relação aos outros”.
Não foi o único: em 2017 foi contratado pelos búlgaros da Unieuro Trevigiani, uma porta internacional que se abriu e o levou, inevitavelmente, à fábrica de talentos da Hagens Berman Axeon, onde esteve duas temporadas antes de dar o salto para a Deceuninck-Quick Step.
Foi na formação belga que este confesso fã de Fórmula 1 primeiro se notabilizou, naquele Giro2020 de boa memória. Mas seria 2021 o ano da confirmação de Almeida e, também, o do seu polémico divórcio com os belgas.
A liderança repartida na Volta a Itália com Remco Evenepoel fez correr rios de tinta, com a rivalidade a ser alimentada, essencialmente, desde Portugal, quer por comentadores, quer por adeptos recém-chegados ao ciclismo.
Apesar de ter vencido a Volta à Polónia e a Volta ao Luxemburgo, a parceria com a Deceuninck-Quick Step estava condenada e o corredor de A-dos-Francos deixou-se seduzir pelos milhões de UAE Emirates, entre as várias ofertas que teve em cima da mesa.
O primeiro ano na equipa dos Emirados, cuja concentração de líderes nem sempre torna fácil a coabitação em corrida (como aconteceu nesta Vuelta), pareceu de adaptação: além do título de campeão nacional de fundo, venceu uma etapa na Volta à Catalunha – foi terceiro na geral - e outra na Volta a Burgos - onde foi segundo no pódio final -, mas viu-se ultrapassado na hierarquia na Vuelta, por um Juan Ayuso, que, com 19 anos, foi terceiro numa geral vencida por… Evenepoel.
Quinto nessa Vuelta – haveria de subir a quarto com a desclassificação de Miguel Ángel López -, o sempre impassível Almeida não se deixou perturbar e traçou o seu percurso com segurança na temporada seguinte, na qual foi terceiro no Giro (e nono na Vuelta) e exigiu a presença no Tour do ano seguinte.
Ao desafio respondeu com um trabalho exemplar para Tadej Pogacar, que lhe valeu a liderança da equipa numa Vuelta que partiu de Portugal e da qual desistiu, novamente com covid tal como tinha acontecido no Giro2022, e a seleção para a última Volta a França, que abandonou na sequência de uma queda grave que o deixou com uma fratura de costela, já depois de ter sido eleito gregário da semana por ter sido fundamental para a 100.ª vitória de Pogi.
Apesar da paragem forçada e de não ter treinado como queria, nesta Vuelta exibiu-se ao mais alto nível, chegando a mostrar-se como patrão do pelotão – venceu no alto do Angliru -, e reforçou a imagem de corredor aguerrido, que nunca deixa de acreditar, embora talvez ainda lhe falte o instinto canibal de homens como Pogacar, Vingegaard ou Evenepoel.