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João Almeida divide-se entre a autoconfiança e o pragmatismo do 'it is what it is'

João Almeida foi segundo classificado
João Almeida foi segundo classificadoProfimedia
João Almeida, o reservado ciclista que nunca desiste, consolidou-se como um dos melhores voltistas do pelotão mundial, reforçando o seu lugar histórico na modalidade em Portugal graças à inabalável crença em si próprio e à perseverança invejável.

O ciclista de A-dos-Francos, de 27 anos, vive numa bolha. Confiança, só dá às suas pessoas, um núcleo duro constituído, essencialmente, por família, namorada, empresário. Sempre que pode, esquiva o foco mediático, os jornalistas e até os adeptos, preferindo resguardar-se no seu mundo.

Entrevistá-lo pode ser um desafio, embora esteja cada vez mais solto e à vontade, mostrando-se descontraído e elaborando mais as respostas, como já fazia antes quando a língua do diálogo era o inglês, ainda que não deixe de recorrer a chavões como o agora mundialmente famoso it is what it is ('É o que é', em português), um mantra que repetiu à exaustão rumo ao segundo lugar nesta Volta a Espanha.

Quem com ele trabalhou elogia-lhe o profissionalismo, mas também dá conta de alguma teimosia e distração, as mesmas que foram responsáveis pelos seus conhecidos erros de colocação, ausentes nesta edição da Vuelta, onde demonstrou uma renovada coragem e ambição, resultantes do estrondoso sucesso que registou esta temporada, nomeadamente ao entrar na história como primeiro ciclista a conquistar as Voltas ao País Basco, Romandia e Suíça no mesmo ano.

A evolução de Almeida enquanto voltista foi ainda mais evidente nesta Volta a Espanha do que tinha sido quando terminou no pódio do Giro2023 ou foi quarto no Tour2024, pelo simples facto de ter colocado à prova Jonas Vingegaard, que bateu no alto do Angliru e de quem foi o único verdadeiro rival ao longo de três semanas.

Em Espanha, voltou a exibir a consistência e o conhecimento pessoal que o tornam um caso único no pelotão – as suas recuperações nas etapas de montanha são já uma característica inspiradora de memes – e a fazer história, igualando Joaquim Agostinho, segundo na Vuelta1974, como melhor português de sempre em grandes Voltas.

É uma pessoa muito segura. Mesmo quando não corre assim tão bem em relação às perspetivas dele, a moral é sempre alta. Nunca vai para a corrida derrotado. E, depois, é uma pessoa calma, não se enerva, não pensa que vai correr mal. E ele cresce quando é líder”, resumia José Poeira, à Lusa, depois de Almeida ter feito sonhar o país com os seus 15 dias de rosa e ter sido quarto na geral final do Giro-2020.

O selecionador nacional conhece o corredor de A-dos-Francos, que antes de se render ao BTT e, posteriormente, ao ciclismo de estrada, ainda andou no futebol e até no rancho folclórico local, desde que o convocou para um estágio de cadetes e ficou impressionado com a prestação do miúdo, que demonstrou ter “capacidades muito acima da média em relação aos outros”.

Não foi o único: em 2017 foi contratado pelos búlgaros da Unieuro Trevigiani, uma porta internacional que se abriu e o levou, inevitavelmente, à fábrica de talentos da Hagens Berman Axeon, onde esteve duas temporadas antes de dar o salto para a Deceuninck-Quick Step.

Foi na formação belga que este confesso fã de Fórmula 1 primeiro se notabilizou, naquele Giro2020 de boa memória. Mas seria 2021 o ano da confirmação de Almeida e, também, o do seu polémico divórcio com os belgas.

A liderança repartida na Volta a Itália com Remco Evenepoel fez correr rios de tinta, com a rivalidade a ser alimentada, essencialmente, desde Portugal, quer por comentadores, quer por adeptos recém-chegados ao ciclismo.

Apesar de ter vencido a Volta à Polónia e a Volta ao Luxemburgo, a parceria com a Deceuninck-Quick Step estava condenada e o corredor de A-dos-Francos deixou-se seduzir pelos milhões de UAE Emirates, entre as várias ofertas que teve em cima da mesa.

O primeiro ano na equipa dos Emirados, cuja concentração de líderes nem sempre torna fácil a coabitação em corrida (como aconteceu nesta Vuelta), pareceu de adaptação: além do título de campeão nacional de fundo, venceu uma etapa na Volta à Catalunha – foi terceiro na geral - e outra na Volta a Burgos - onde foi segundo no pódio final -, mas viu-se ultrapassado na hierarquia na Vuelta, por um Juan Ayuso, que, com 19 anos, foi terceiro numa geral vencida por… Evenepoel.

Quinto nessa Vuelta – haveria de subir a quarto com a desclassificação de Miguel Ángel López -, o sempre impassível Almeida não se deixou perturbar e traçou o seu percurso com segurança na temporada seguinte, na qual foi terceiro no Giro (e nono na Vuelta) e exigiu a presença no Tour do ano seguinte.

Ao desafio respondeu com um trabalho exemplar para Tadej Pogacar, que lhe valeu a liderança da equipa numa Vuelta que partiu de Portugal e da qual desistiu, novamente com covid tal como tinha acontecido no Giro2022, e a seleção para a última Volta a França, que abandonou na sequência de uma queda grave que o deixou com uma fratura de costela, já depois de ter sido eleito gregário da semana por ter sido fundamental para a 100.ª vitória de Pogi.

Apesar da paragem forçada e de não ter treinado como queria, nesta Vuelta exibiu-se ao mais alto nível, chegando a mostrar-se como patrão do pelotão – venceu no alto do Angliru -, e reforçou a imagem de corredor aguerrido, que nunca deixa de acreditar, embora talvez ainda lhe falte o instinto canibal de homens como Pogacar, Vingegaard ou Evenepoel.