Derrotado pelo segundo ano consecutivo - e pela terceira vez na carreira - por Pogi no Tour, Vingegaard rumou à Vuelta para salvar uma época discreta, na qual venceu apenas a Volta ao Algarve, e para demonstrar que ainda é o segundo melhor voltista do pelotão.
Cumpriu a missão com sucesso graças à sempre bem-sucedida fórmula calculista da Visma-Lease a Bike, unida em seu redor, e à preciosa ajuda da UAE Emirates, onde os egos falaram mais alto do que o objetivo de levar João Almeida ao triunfo final.
Um ano depois de ter equacionado deixar o ciclismo, após uma queda grave na Volta ao País Basco o ter deixado 12 dias no hospital, tornou-se no primeiro dinamarquês a conquistar a Volta a Espanha, na qual ganhou três etapas, e somou a terceira grande da carreira.
Embora possa ser entusiasmante e espetacular na bicicleta – não o foi nesta edição da prova espanhola, talvez acusando o desgaste do Tour -, o ciclista de 28 anos é monótono e extremamente introvertido fora dela, num contraste gritante com o exuberante Pogacar (UAE Emirates), seu arquirrival e grande favorito dos adeptos.
No entanto, nada há a apontar ao líder da Visma-Lease a Bike, que, apesar de não gostar da exposição a que, sobretudo, os dois triunfos do Tour (2022 e 2023) o obrigaram, é, no contacto direto, uma pessoa extremamente educada, humilde e até sensível, como voltou a demonstrar nesta Vuelta, ao solidarizar-se com os manifestantes pró-Palestina.
Vingegaard é um mistério: profundamente familiar e dependente da sua equipa, cujas indicações segue incondicionalmente, transfigura-se na estrada, onde desde há dois anos demonstra um instinto canibal, como atestam os triunfos no Critério do Dauphiné e na Volta ao País Basco, em 2023, ou no Tirreno-Adriático e na Volta à Polónia, no ano passado, sem mencionar a supremacia no Gran Camiño, que conquistou com pleno de vitórias em etapas em 2023 e 2024.
É nas montanhas, e não nos compromissos mediáticos ou nas redes sociais, que o delgado dinamarquês se sente bem, embora só as tenha descoberto tarde, numas férias familiares nos Alpes franceses.
“Descobri a minha primeira subida aos 16 anos. Depois disso, percebi que não era nada mau”, contou.
Nascido em 10 de dezembro de 1996 em Hillerslev, uma pequena aldeia piscatória de apenas 370 habitantes, inserida numa zona rural na costa do Mar do Norte, experimentou várias modalidades (andebol, natação, badminton e até futebol) antes de eleger a bicicleta.
Fervoroso adepto do Liverpool – o site especializado CyclingWeekly conta que já foi apanhado várias vezes em Anfield -, descobriu a paixão pelo ciclismo aos 10 anos, quando a Volta à Dinamarca passou à sua porta.
Embora tenha sobressaído imediatamente num teste organizado pelo clube local para um grupo de crianças, e semanas depois tenha conquistado o primeiro pódio numa corrida, Vingegaard teve dificuldades em afirmar-se no panorama velocipédico nacional, porque o seu peso pluma (tem 1,75 metros e 60 quilos) era incompatível com as ventosas planícies dinamarquesas.
A ColoQuick CULT, uma equipa continental, reparou no seu potencial e contratou-o como estagiário em 2016, mas a sua progressão foi interrompida em maio de 2017, quando partiu o fémur numa queda grave na Volta aos Fiordes.
Sem poder andar de bicicleta, decidiu começar a trabalhar numa fábrica de processamento de peixe de Hanstholm, o porto dinamarquês que espreita o Báltico, um emprego que descreveu como “relaxante”.
Vingegaard absorveu dessa experiência e das origens humildes os seus principais traços de personalidade, aos quais se junta uma bondade reconhecida por colegas e adversários, como Pogacar, que o define como “um grande tipo”.
A sua carreira descolou quando foi descoberto pela agora Visma, depois de uma temporada de 2018 na qual venceu o contrarrelógio da Volta a França do Futuro e estabeleceu um novo recorde da ascensão ao Col de Rates durante um estágio.
Depois de ceder à pressão na Volta a Polónia de 2019, a equipa neerlandesa trabalhou o seu psicológico e deu-lhe tempo para crescer, levando-o à Vuelta2020 para trabalhar para Primoz Roglic, antes de vê-lo explodir com um espantoso segundo lugar no Tour.
Esse fantasma pareceu regressar quando Vingegaard simplesmente desapareceu após a primeira vitória na Volta a França, com as notícias sobre uma possível depressão, desmentida pelo próprio, a multiplicarem-se durante meses. No entanto, a segunda vitória no Tour, conquistada com uma supremacia arrasadora, ajudou à sua autoconfiança e aumentou-lhe a ambição.
Cerebral como poucos – na estrada, nunca se desvia do plano traçado pela Visma-Lease a Bike -, é devoto à família, nomeadamente à mulher Trine Hansen, que conheceu na ColoQuick (era a responsável pelo marketing) e que dita as diretrizes da sua carreira e também da sua vida, como ficou novamente provado nesta Vuelta.
“Nunca quero saber da opinião das pessoas, exceto de uma, e ela disse-me que era melhor assim”, justificou depois de ter rapado o bigode que estava a deixar crescer.
Se Trine, a quem se apressa a telefonar em cada final de etapa e com quem tem dois filhos, é a sua ‘obsessão’ na vida pessoal, Pogacar é-o no ciclismo, com Vingegaard a assumir, no alto da Bola del Mundo, após a assegurar virtualmente a vitória nesta Vuelta, que voltar a derrotar o esloveno é um desafio pessoal.