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Craques na guerra, resultados bizarros e clubes bombardeados: O futebol na era Nazi

Bayern de Munique jogando em campo castigado pela guerra
Bayern de Munique jogando em campo castigado pela guerraFC Bayern
A ascensão do Nazismo em 1933 e a Segunda Guerra Mundial viraram o futebol alemão de cabeça para baixo, e deixaram sequelas dentro e fora de campo. 

Clubes foram bombardeados, atletas mataram e foram mortos, e até o estilo de jogo da Alemanha mudou.

Confira abaixo as histórias mais impressionantes e como os clubes lidaram com a ingerência do fascismo e as agruras da guerra.

Jogadores da seleção alemã saudando o führer nas Olimpíadas de 1936
Jogadores da seleção alemã saudando o führer nas Olimpíadas de 1936Topfoto / Profimedia

Hitler torcia por quem?

O jornal britânico The Times publicou no início dos anos 2000 uma tese de que o Führer seria adepto do Schalke 04.

Em resposta, o clube encomendou um estudo em 2004 que desmontou esta lenda, que surgiu porque o Schalke foi hexacampeão alemão durante o Terceiro Reich.

O sucesso do Schalke, no entanto, o transformou no clube mais popular entre a elite do Partido, segundo Nils Havemann, historiador da Universidade de Estugarda.

O Borussia Dortmund, arquirrival do Schalke, tinha várias ligações ao nazismo: em 1939, ano em que estourou a Segunda Grande Guerra, 80% dos jogadores do clube eram soldados da Sturmtruppen, a tropa de choque de Hitler.

Agora um dos clubes mais fortes da Alemanha, o Dortmund sofreu uma limpeza durante o Terceiro Reich
Agora um dos clubes mais fortes da Alemanha, o Dortmund sofreu uma limpeza durante o Terceiro ReichAFP

Até 1933, o Dortmund era um clube cheio de socialistas e comunistas, mas teve seu presidente e muitos de seus jogadores afastados devido à ingerência nazista. Durante o Terceiro Reich, a equipa desmanchou-se e tornou-se saco de pancada do Schalke, chegando a levar um 10-0 no campeonato de 1941.

Segundo estudo do Bayern de Munique, cerca de metade dos dirigentes de todos os clubes grandes eram membros do Partido Nazi no final da década de 1930.

Conhecido como "clube dos judeus", o Bayern, aliás, também acabou obrigado a incorporar uma suástica no emblema entre 1938 e 1945 - emblema esse que é omitido do site oficial do clube.

O Führer odiava futebol

Tudo leva a crer que Adolf Hitler tinha asco de futebol. E ele com certeza era pé frio, já que a única partida que assistiu in loco na vida foi um Alemanha 0-2 Noruega, durante as Olimpíadas de 1936. 

100 mil pessoas deixaram o estádio em um estado de depressão. Ganhar um jogo é mais importante para as pessoas do que capturar uma cidade em algum lugar do leste”, escreveu o ministro da propaganda Joseph Goebbels no diário pessoal, após o jogo.

Frase icónica de Goebbels e o póster de partida do Schalke em exposição sobre o holocausto em Buenos Aires
Frase icónica de Goebbels e o póster de partida do Schalke em exposição sobre o holocausto em Buenos AiresNoFueUnJuego/Divulgação

Propaganda até na casa do Tottenham

Apesar da aversão, Hitler e quem o rodeava sabiam que o desporto movia multidões e tentou usá-lo em seu favor. Inspirado no Mundial-1934 sediado pela Itália fascista, o ditador alemão levou as Olimpíadas de 1936 para a capital Berlim.

A casa do Hertha é até hoje o Estádio Olímpico construído pelos nazis para os Jogos de 1936.  Embora o estádio tenha sofrido muitas mundanças na parte interna, a arquitetura externa ainda é a mesma dos tempos de Hitler.

A seleção alemã também se tornou ferramenta de propaganda. Um dos casos mais notórios foi um particular entre Inglaterra e Alemanha, realizado em 1935 no White Hart Lane, antigo estádio do Tottenham - clube com uma notória base de adeptos judeus.

Hoje casa do Hertha, o Estádio Olímpico de Berlim é obra nazi
Hoje casa do Hertha, o Estádio Olímpico de Berlim é obra naziFlashscore

O regime nazi organizou a viagem de 10 mil adeptos visitantes para a partida, com o intuito de que a massa fizesse a saudação nazi no estádio do Tottenham. Apesar dos protestos, o particular aconteceu e a Inglaterra meteu 3-0 nos alemães.

Outra exemplo do futebol a ser usado para fins políticos aconteceu em abril de 1938. Após a invasão da Áustria, a seleção alemã foi convocada para jogar um particular contra a seleção local para ajudar na ocupação nazi.

Com intuito de mostrar à população que a Alemanha não era uma ameaça, os jogadores da Mannschaft receberam ordens para jogar um futebol “mais levre” contra os austríacos. Resultado em campo: Áustria 2-0 Alemanha, com dois penáltis roubados. Resultado no referendo: 99% dos austríacos votaram pela anexação à nação invasora.

Alemanha má de bola, Hitler furioso

Usar a seleção como ferramenta de propaganda foi um tiro que saiu pela culatra. A Alemanha deu-se mal nas Olimpíadas de 1936 e nos Mundiais de 1934 e 1938.

Em abril de 1941, no auge da Guerra, veio a gota d’água. A equipa alemã perdeu de 2-1 para a Suíça em Berna, em pleno aniversário de Hitler — Joseph Goebbels considerou a derrota imperdoável e ordenou que a Alemanha vencesse todos os jogos seguintes.

A ordem não deu certo. A seleção acabou por aparecer num momento tão pouco positivo que o ministro da propaganda proibiu as partidas da Mannschaft em 1942.

Suíça ganhou à Alemanha no aniversário de Hitler, em 1941
Suíça ganhou à Alemanha no aniversário de Hitler, em 1941Deutsches Bundesarchiv

A Bundesliga nazi

Em 1933, o Partido Nazi dividiu o campeonato alemão em ligas regionais — as chamadas Gauligas.

Conforme a Alemanha conquistava território, as Gauligas expandiam, absorvendo clubes austríacos, checos, polacos e franceses.

Essa bizarrice fez com que o Rapid Viena, da Áustria, se tornasse campeão alemão em 1941.

Os vencedores das ligas regionais jogavam um play-off para decidir o campeão nacional - a final era disputada em Berlim, assim como acontece hoje na Taça da Alemanha.

O Rapid, da Áustria, campeão alemão de 1941
O Rapid, da Áustria, campeão alemão de 1941Rapidmuseum

Muitos jogos eram realizados em estádios danificados por bombardeamentos e a movimentação dos clubes era difícil e perigosa. “No entanto, os jogos de futebol ainda eram capazes de oferecer a alguns milhares de espectadores uma distração da rotina diária da guerra”, escreve o site do Bayern.

No inverno, algumas partidas só eram possíveis graças ao trabalho de prisioneiros de guerra, que tiravam neve dos relvados.

As Gauligas permaneceram em vigor até 1945, mesmo com as tropas aliadas a apenas alguns quilómetros de distância de alguns estádios.

Jogadores no frente de batalha

Todos os atletas não dispensados do serviço militar foram convocados para lutar na guerra, menos os jogadores das Gauligas principais. Os futebolistas dos clubes grandes recebiam certos privilégios, e até eram poupados de missões perigosas na linha de frente. Mas conforme os aliados ganhavam terreno, mais e mais atletas eram convocados para a frente

No fim de 1942, todos os jogadores de futebol do país foram chamados para lutar. 

Enquanto isso, velhos e jovens eram usados como substitutos nas equipas desfalcadas, já que o futebol tinha que continuar. “Isso simulava uma certa normalidade para a população”, contou Nils Havemann, historiador da Universidade de Estugarda, ao jornal Augsburger Allgemeine.

Alemães após a eliminação no Mundial-1938: todos foram para a guerra anos depois
Alemães após a eliminação no Mundial-1938: todos foram para a guerra anos depoisDomínio Público

Estes conjuntos alternativos explicam os resultados estranhos que passaram a acontecer no futebol de elite, como a goleada do Schalke em cima do Dortmund citada mais acima. “Um marcador de 13-1 não era nada fora do comum na época", acrescentou Havemann. 

Apesar da falta de craques, das viagens quase impossíveis e dos estádios e equipas bombardeados, o título do campeonato alemão foi disputado até 1944.

Troféu da Gauliga da Alsácia, vencido pelo Estrasburgo em 1942
Troféu da Gauliga da Alsácia, vencido pelo Estrasburgo em 1942Alexander Historical Auctions LLC

Craques que mataram

Se a maioria dos jogadores eram obrigados a lutar como meros soldados, alguns deles viraram monstros do regime. Rudolf Gramlich, ex-jogador e presidente do Frankfurt, foi membro de uma das mais sanguinárias tropas da SS.

Tropa da SS em Berlim, 1938
Tropa da SS em Berlim, 1938Bundesarchiv

Mas talvez a história mais notória seja a de Otto Harder, bicampeão alemão com o Hamburgo e atacante da seleção.

Harder foi comandante do campo de concentração de Ahlem, onde centenas de pessoas foram assassinadas. E um dos presos do campo de Ahlem foi o médio judeu Asbjorn Halvorsen, ex-companheiro de ataque de Harder no conjunto do Hamburgo. 

O plantel do Hamburgo na década de 1920 com Halvorsen (de pé) e Harder (sentado)
O plantel do Hamburgo na década de 1920 com Halvorsen (de pé) e Harder (sentado)HSV Museum

Por crueldade do destino, Halvorsen também era o técnico da Noruega que venceu a Alemanha naquela partida - a única - presenciada por Hitler.

Halvorsen sobreviveu ao campo de concentração, mas faleceu alguns anos depois em decorrência das sequelas (tifo, reumatismo e desnutrição extrema).

Halvorsen era judeu e deixou o Hamburgo depois de os nazis tomarem o poder
Halvorsen era judeu e deixou o Hamburgo depois de os nazis tomarem o poderHSV Museum

Craques que morreram

Outros jogadores não tiveram a mesma sorte. Estima-se que cerca de 300 jogadores judeus desapareceram durante o nazismo. Nos últimos anos da guerra, 20 jogadores da seleção da Alemanha perderam suas vidas em combate.

Soldados alemães mortos na Batalha de Estalinegrado, 1943
Soldados alemães mortos na Batalha de Estalinegrado, 1943Sergey Strunnikov/Domínio Público

Jogadores negros foram banidos do desporto — há um caso documentado de um futebolista de cor chamado Heinz Kerz que foi castrado pelos nazistas e enviado para o campo de concentração de Dachau. Há também casos de resistência, como Willy Buisson, do Bayern de Munique, que era contra o regime e foi executado em 1940.

O Bayern estima que 63 atletas e dirigentes do clube morreram por conta do Terceiro Reich. O clube foi despromovido algumas vezes durante o período, e chegou ao fundo do poço da Gauliga da Bavária.

A guerra mudou o jogo alemão

A guerra e o nazismo também mudaram o jeito de a Alemanha jogar futebol.

No livro “Football in Europe During the Second World War”, o escritor neerlandês Simon Kuper explica que antes de 1933, a seleção alemã tinha a reputação de jogar um estilo de futebol atraente e habilidoso.

Seleção alemã das Olimpíadas de 1928, em Amsterdão
Seleção alemã das Olimpíadas de 1928, em AmsterdãoDomínio Público

Sob o nazismo, porém, o conceito de Kampf (luta) espalhado pelo regime em todas as esferas da sociedade também tomou o futebol de assalto. Os jogadores viraram "lutadores” e o "jogo bonito” passou a ser ridicularizado.

O futebol alemão tornou-se altamente organizado e eficiente, mais rápido e direto. Com este estilo a Mannschaft ganharia seus dois primeiros títulos mundiais, em 1954 e 1974.

Acerto de contas com o passado

Muito do envolvimento do nazismo com o futebol alemão é desconhecido. A Federação Alemã (DFB) diz que a maioria dos documentos da época foram destruídos num bombardeamento que destruiu a sede da entidade em Berlim.

De qualquer forma, muitos clubes formaram comissões para tentar reparar erros do passado e homenagear membros que foram perseguidos e mortos.

A praça defronte à Allianz Arena homenageia ex-presidente judeu do Bayern
A praça defronte à Allianz Arena homenageia ex-presidente judeu do BayernProfimedia

Um dos dirigentes mais celebrados atualmente é Kurt Landauer, presidente histórico do Bayern de Munique.

Landauer era judeu e teve de deixar o comando do clube em 1933. Ele retornou a Munique após a guerra e retomou a presidência do Bayern até 1951 – hoje Landauer tem estátua na frente da Allianz Arena e dá nome à rua de frente ao estádio.

Foto de um campo de concentração em exposição sobre futebol e o nazismo em Berlim, 2024
Foto de um campo de concentração em exposição sobre futebol e o nazismo em Berlim, 2024Sport. Macht. Masse/Divulgação

Em 2024, Berlim sediou uma exposição sobre os efeitos nefastos do nazismo nos clubes do país.

Mais homenagens e novas descobertas estão prometidas para 2025, ano em que o final da Segunda Guerra Mundial completa 80 anos.