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Perfil: Farioli, o filósofo apaixonado que faz da defesa o seu forte, sem nunca perder o norte

Farioli é o favorito a assumir o comando do FC Porto
Farioli é o favorito a assumir o comando do FC PortoMarcel van Dorst / NurPhoto / NurPhoto via AFP/Flahscore

36 anos, uma licenciatura em filosofia baseada na experiência de guarda-redes e uma desilusão recente difícil de superar... Mas é preciso cair para se poder levantar, uma máxima que se aplica tanto a Francesco Farioli, como ao FC Porto. Mas esse é apenas um dos muitos pontos de convergência entre o antigo treinador do Ajax e o clube que o pretende, com destaque para a predileção pelo 4-3-3. Para perceber melhor o que procuram os azuis e brancos, o Flashscore falou com o jornalista Paul Winters, especialista da Eredivisie.

Nascido em 04 de abril de 1989 na pequena comuna italiana de Barga, Francesco Farioli abdicou da carreira de guarda-redes no pequeno clube Margine Coperta, onde se tornou o treinador de guardiões. Daí, passou pelo Fortis Juventus e Lucchese, da Serie C (terceiro escalão) até se mudar para o Catar, onde conheceu Roberto de Zerbi. Acompanhou o treinador no Benevento e Sassuolo, até sair para ser treinador adjunto do Alanyaspor (2020/21).

Meio ano depois, foi apresentado como treinador principal do Karamguruk, onde liderou a Superliga turca em termos de percentagem de posse de bola até sair a meio da temporada para regressar ao Alanyaspor. Em meia época (2020/21) levou o clube ao quinto lugar e às meias-finais da Taça da Turquia e por ali ficou até decidir sair em fevereiro de 2023. Na temporada seguinte, assumiu o Nice e encantou a Ligue 1 e o futebol europeu.

A influência de De Zerbi notava-se pelo controlo da posse de bola e um sistema tático distintivo, um 4-3-3 cuja construção é feita em 2-3-2. Um arranque de temporada forte levou a equipa ao primeiro lugar e a lutar taco a taco com o Paris Saint-Germain nos primeiros meses, até à queda na segunda metade que levou o clube a um sólido quinto lugar. Isso foi o suficiente para que o Ajax tomasse nota e apostasse no jovem treinador para mudar o rumo do clube depois de uma das piores campanhas da história.

A desilusão dos últimos 100 metros, em que deixou escapar uma vantagem de nove pontos a cinco jornadas do fim não apagou a boa imagem que deixou durante a maratona neerlandesa, muito menos perder o encanto que a direção do FC Porto já tinha em janeiro, quando o tentou levar de Amesterdão, mas acabou rejeitada e optou por Martin Anselmi. 

Mais controlo, menos precipitação

"O sistema é maioritariamente o 4-3-3, mas a ideia não é sobre o número ou o sistema. É mais sobre os princípios e comportamentos que queremos ver em campo: o desejo de dominar o jogo, tomar liderança e ser responsáveis pelo nosso destino. Há duas formas: uma é ter a bola, outra é recuperar a bola o mais rápido possível. Precisamos de jogadores que queiram ser protagonistas, que tomem responsabilidade e encarem o jogo de uma forma positiva", explicou Farioli quando chegou ao Ajax.

Apesar de ter uma mentalidade mais defensiva, Farioli gosta que a sua equipa tenha a posse de bola e controle o ritmo ao longo da partida, o que é comprovado pela taxa média de posse de bola de 57,8% ao longo da época 2024/25. Raramente a sua equipa não está no controlo. O Ajax marcou apenas dois golos em contra-ataque e teve apenas 26 contra-ataques em toda a temporada – o segundo número mais baixo entre os 9 melhores clubes da Eredivisie na época passada (Heerenveen, 25). Em comparação, o PSV teve 45 contra-ataques e marcou 6 golos.

O plantel não tinha sentido de criatividade. Em parte, isso deveu-se à ausência de um médio criativo, mas também às táticas de Farioli. O Ajax criou apenas 310 oportunidades em jogo corrido, muito menos do que o campeão PSV, que criou 502.

Farioli cria planos de jogo astutos e específicos para os seus adversários. Exemplos claros disso são as vitórias em todos os duelos com o PSV e Feyenoord na época passada, apenas pela quarta vez na história do clube. Com apenas três dias de diferença (entre final de outubro e início de novembro), derrotou os rivais com excelentes táticas defensivas, permitindo ao Feyenoord e ao PSV somar apenas seis remates, com uma média de posse de bola de 43,5% nesses dois jogos.

Farioli exige muito dos laterais no jogo coletivo, permitindo frequentemente que Jorrel Hato e Anton Gaaei subissem em campo, o que explica porque é que o primeiro foi o melhor assistente da equipa (6). Os corredores permitem à equipa subir no campo, exatamente o que treinador pretende. O italiano quer que a grande maioria dos remates seja feita dentro da grande área: o Ajax marcou apenas 2 dos 67 golos em 2024/25 de fora da área e registou 1.117 toques na área adversária, o segundo maior número na Eredivisie, atrás do PSV (1.488).

A posição média do Ajax contra o PSV
A posição média do Ajax contra o PSVOpta

O médio controlador, frequentemente Jordan Henderson no Ajax, posiciona-se entre os defesas para atuar como distribuidor e líder do núcleo da equipa. Na sua função recuada, Henderson liderou a equipa em passes tentados para o último terço 525 (407 completados).

Farioli mantém-se fiel ao onze que considera mais adequado para o respetivo jogo. Trabalha com aquilo a que chama "titulares", os que começam a partida e assumem o controlo, e "finalizadores", que terminam o jogo com energia renovada e que podem ter impacto. Isto explica porque é que Brian Brobbey, que marcou apenas 4 golos na Eredivisie na época passada, foi titular em tantos jogos à frente de Wout Weghorst, que terminou com 10 golos no campeonato. Daí que o clube tenha batido o recorde de maior golos anotados por suplentes (21) e igualou o recorde de maior número de jogadores utilizados na Eredivisie (37).

Defender bem para atacar melhor

Francesco Farioli é exigente. Deixa frequentemente de fora jogadores que, na sua opinião, não correspondem às exigências físicas, como foi o caso de Ahmetcan Kaplan. No entanto, é também um técnico que perdoa, dando aos jogadores hipóteses rápidas de compensar erros anteriores e sendo frequentemente recompensado por isso.

A vontade de Farioli em rodar a equipa com frequência, motivada pelo calendário carregado, fez com que recebesse muitas críticas, mas manteve a equipa renovada, com dois jogos por semana, várias vezes por mês, durante meses a fio.

Conseguiu também uma melhoria notável a nível defensivo. Sem nenhum destaque e com os mesmos jogadores da época 2023/24, o Ajax sofreu menos 29 golos e foi menos propenso a cometer erros. Entre 14 de dezembro de 2024 e 15 de março de 2025, o Ajax não sofreu golos em oito jogos do campeonato consecutivos. Com os mesmos jogadores da época anterior!

Os jogadores adoravam-no. Depois de o técnico ter anunciado a saída, todos partilharam mensagens sinceras nas redes sociais a agradecer a Farioli por tudo o que lhes ensinou. Isto ia desde titulares, a jovens e pouco utilizados. Mantém a equipa focada durante toda a temporada.

O futebol como forma de encarar a vida

Farioli é um filósofo formado pela Universidade de Florença e escreveu um artigo sobre futebol: "O futebol como renascimento: a estética do jogo e o papel do guarda-redes". A tese é sobre como o futebol é mais do que apenas um jogo; é, na verdade, um reflexo da própria vida e uma metáfora para a vida, defende.

Na sua tese, o italiano escreve sobre guarda-redes e as origens do futebol, citando como exemplos vários grandes treinadores (Pep Guardiola, Carlo Ancelotti, Antonio Conte). Chama-lhes treinadores, mas também filósofos, entusiastas e idealistas com um objetivo comum: focarem-se no que é certo para a equipa. Descreve o campo de futebol como um lugar onde as regras e a procura da beleza se unem.

Como estudante de filosofia aos 23 anos, mergulhou na obra de pensadores como Jean-Paul Sartre e Fiódor Dostoiévski. Considera o futebol mais do que apenas um jogo e foca-se no papel do futebol na nossa vida quotidiana. O futebol é uma forma de encarar a vida, uma filosofia em si mesma. Talvez por isso tenha desabado em lágrimas quando o seu Ajax viu confirmado o título nas mãos do seu maior rival, o PSV, na última jornada da Eredivisie. 

Ajax em 2024/25 vs Ajax em 2023/24

- 2.º lugar (78 pontos, a 1 ponto do campeão) vs 5.º lugar (56 pontos, a 35 pontos do campeão)

- 32 golos sofridos vs 61 golos sofridos

- 16 jogos sem sofrer golos vs 5 jogos sem sofrer golos

- 26 golos sofridos dentro da área vs 56 golos sofridos dentro da área

- 32,8 xGA (golos sofridos esperados) vs 51,2 xGA (golos sofridos esperados)

- 59,2% de sucesso nos desarmes vs 54,2% de sucesso nos desarmes 

- 678 alívios vs 515 alívios

- 352 remates enfrentados vs 424 remates enfrentados 

- 4.284 perdas de bola vs 4.499 perdas de bola