- Quem é o Árbitro da Paz?
- O Árbitro da Paz é um árbitro de futebol e professor no Colégio Maravillas em Benalmádena, que é o que eu faço. Sou árbitro desde a época 93-94 e em 2006 decidi interromper um jogo devido a insultos. Penso que foi a primeira vez que isso aconteceu em Espanha e provavelmente no mundo. E, a partir desse momento, elaborei o meu próprio protocolo. Primeiro insulto, paramos. Segundo, polícia. Terceiro, suspensão definitiva. E bem, funcionou lindamente porque na grande maioria dos jogos não houve nada, nem um único insulto. Ao longo dos anos, decidi também incorporar os adeptos nas conversas que tinha com as equipas antes dos jogos para os alertar para tudo isto, porque já o fazíamos com a plataforma 090, que significa zero violência em 90 minutos, da qual sou embaixador. E vimos que estava a funcionar, por isso disse: bem, como árbitro também. E desde então, a verdade é que tem sido ainda melhor. Esta é, em suma, a razão pela qual um órgão de comunicação social me deu essa alcunha. Acho que é carinhoso, acho que é simpático e aceito-o de bom grado.
- Por outras palavras, a sua decisão no final foi optar, entre aspas, por um punho de ferro. Que situações tinha vivido antes de optar por este protocolo?
- Uff, situações aterradoras, aterradoras. Estamos a falar de violência física, de temer pela minha segurança, mas já ao nível de dizer, bom, como é que vamos sair daqui? O que é que nos vai acontecer? Já ouvi barbaridades, barbaridades que, infelizmente, são aceites como parte do jogo e nunca pensei em tomar medidas, nem nunca ouvi, em nenhuma reunião do comité de árbitros, nada sobre parar os jogos quando há violência verbal e tomar medidas. Nunca. Fazia parte do jogo, toda a gente a normalizou e isso é a coisa mais triste que podemos fazer, não só no desporto, em qualquer atividade humana, normalizar a violência, normalizar, digamos, aceitar o inaceitável. Já fui agredido fisicamente em algumas ocasiões, antes de me tornar árbitro de paz, e assisti a agressões contra os meus colegas, embora fosse espetador. E penso que isso é indecente. Não se pode permitir isto. E bem, foi assim que cresci como árbitro, desde pequeno, durante muitos anos, até que chegou o momento em que disse: não, a partir de agora não vou tolerar mais nada. E estou contente, para ser sincero, com a mudança e penso que é algo essencial, repito, não só no desporto, mas em qualquer atividade da vida.
- Mencionou a Plataforma 090, fale-nos um pouco mais sobre ela.
- A Plataforma 090 é uma iniciativa da Câmara Municipal de Málaga, do Departamento de Desporto, e, desde que foi criada, significa zero violência em 90 minutos. É um programa que nasceu em torno do futebol, com os sinais de violência que se viam e que são claros, tentando trazer uma mensagem de valores, de educação, de respeito, não só de não-violência, mas de que o desporto em geral é algo educativo. Nasceu em torno do futebol, mas a verdade é que é um movimento que se abriu e temos colaborações com outros desportos também. E desde o início, desde o seu nascimento, contaram comigo porque fui árbitro pela paz durante muitos anos e procurei que o desporto também fosse educativo e lutei por isso e fiz propostas e promovi iniciativas. Pensaram que eu podia dar o meu contributo e, com prazer, desde o início que estava lá com eles e continuamos a estar.

- Voltando ao que referiu sobre os jogos, a conversa antes do jogo com as equipas, em que momento e por que razão decidiu envolver também os adeptos ou os familiares?
- Estou envolvido no futebol de formação desde 2006, antes disso fiz o máximo que pude. Fui assistente na Terceira Divisão e árbitro na Regional Preferente. Em todas essas categorias fui subindo, nas mais baixas, mas quando dei os passos já era árbitro apenas de base. E, claro, vimos no 090 que o papel dos adeptos era básico e é básico. Por isso, pensámos que seria uma boa ideia falar com eles antes dos jogos, para os sensibilizar para o importante papel que desempenham na garantia de que os jogos decorrem normalmente e num bom ambiente. Convidámo-los a tomar, a aplicar aquilo a que chamamos o VAR dos adeptos, que consiste em observar, encorajar, respeitar, sem dar instruções aos jogadores para não os pressionar, porque não faz sentido que as pessoas nas bancadas actuem como treinadores. Não faz sentido que as pessoas nas bancadas atuem como treinadores. Já existem treinadores para dar instruções aos miúdos que estão a jogar e, a partir das bancadas, a única coisa a fazer é encorajar e, claro, respeitar. E foi nisso que insistimos, no bom comportamento, em dar o exemplo, em encorajar os miúdos a divertirem-se sem qualquer tipo de pressão, e que possam receber a melhor formação possível do desporto. Tentámos sempre transmitir isso. Isto é desporto e nós estamos lá para fazer dele uma atividade frutuosa para os rapazes e raparigas. E isso é o mais importante, não ganhar ou perder.
"O importante não é o resultado, mas o que se vive à volta do jogo"
- Como pensa que os valores do desporto poderiam ser mais promovidos junto das crianças e dos pais e, de uma forma geral, para evitar que se encontrem nas situações em que se encontrava antes de receber o seu protocolo ou mesmo nas situações que qualquer árbitro pode viver hoje em dia?
- Penso que estas conversas são produtivas. Trata-se de uma medida importante. É preciso ter consciência de que o marcador não é transcendental. Repito que se pode ganhar ou perder e pronto, mas o importante não é se se ganha ou se perde, mas como se ganha e como se perde. E que, por vezes, ganhar pode ser uma derrota e perder pode ser uma grande vitória, dependendo dos valores que defendemos e do que os rapazes e raparigas viveram e aprenderam nesse jogo, nos treinos e na sua atividade desportiva em geral. Isto é o fundamental, a mudança de mentalidade para nos concentrarmos no que é importante, que, repito, não é o resultado, mas o que vivemos à volta do jogo. Isto é muito importante, e é também fundamental que sejamos absolutamente rigorosos com um protocolo contra a violência verbal. Não existia quando comecei, mas já há algum tempo, não sei se há dois ou três anos, existe, mas, infelizmente, não é executado na maior parte das ocasiões. Quero dizer, há jogos em que vemos violência e nada é feito. Não se faz nada. E é claro que, desta forma, estamos a prestar um mau serviço àqueles que praticam desporto e, em geral, ao desporto como instrumento educativo que é e como atividade que deve ser benéfica para as pessoas que o praticam. Uma atividade que deveria ser benéfica para todos e que, infelizmente, se não fizermos a coisa certa, se torna prejudicial em muitos casos.

"Na plataforma Zona 90, implementámos o VAR da honestidade"
- Então a competitividade do desporto profissional, o que vemos nos meios de comunicação social, afeta negativamente as categorias inferiores, também em termos de tensão para com o árbitro.
- Sim, mas em geral afeta quando há violência, pressão excessiva, falta de respeito, tudo isso é visto e, claro, é assimilado. É encarado como parte do jogo e, na realidade, isso não faz parte do jogo. Nunca poderá fazer parte do jogo. E também afecta a batota, o querer ganhar de qualquer maneira, a batota como algo que é bom e que é para ser inteligente. Temos também outro lema na plataforma Zona 90, que é o VAR da honestidade que tento aplicar e que tento aplicar e que peço sempre nos meus jogos, que é o facto de as pessoas que estão a jogar e as que estão no banco terem de ajudar a garantir que é feita justiça. Assim, a pessoa que beneficia de um erro, se sabe que beneficia, se sabe a verdade, tem de o dizer ao árbitro. Já tive casos maravilhosos em que os jogadores me disseram que tinham efetivamente dado um penálti, ou que não tinham dado e que eu tinha de o anular, e eu tenho todo o gosto em retificar, em retirar o penálti ou em dar o lançamento a quem quer que seja, ou retirar o canto se não foi penálti ou o que quer que seja necessário. Isto também tem de ser incutido. O desporto tem de servir para nos elevar, para nos fazer crescer individual e coletivamente. E isso implica respeito, honestidade, em suma, os valores do desporto, aquilo que o desporto é na sua essência e que, infelizmente, muitas vezes se perde.

"Os comportamentos mais positivos devem ser realçados"
- Os meios de comunicação social deveriam também ajudar a promover estes valores do desporto, em vez de se limitarem a mostrar os resultados e as controvérsias?
- Sim, sem dúvida. Os comportamentos mais positivos devem ser destacados, encorajados, aplaudidos e os antidesportivos condenados. Uma e outra vez. Até que as pessoas que os praticam se apercebam, reflictam e queiram mudar. Os que agem bem devem ser reconhecidos e os que agem mal devem ser apontados, até que rectifiquem as suas acções. Quando rectificam, então é maravilhoso. Todos podemos cometer erros, ninguém vive na verdade absoluta, ninguém está isento de cometer erros, claro, mas o que não podemos fazer é aplaudi-los. Nunca, nunca. E, infelizmente, não me parece que seja suficientemente condenado. No ténis, por exemplo, uma pessoa que insulta é expulsa do recinto. E se há um jogador que faz batota, que quer fazer batota com o juiz, que quer ganhar de qualquer maneira, está nos meios de comunicação social. Este tenista que quis fazer batota, que apagou o pote e disse ao árbitro que estava na linha, etc., fez com que ele ficasse confuso. Isso vê-se automaticamente. No futebol, porém, parece que ele foi muito esperto. Quer dizer, ele mergulhou, enganou o árbitro e saiu-se muito bem. Não, não, desculpem, ele fez um péssimo trabalho. E isso tem de ser dito.
- Alguma vez se deparou com um pai ou um jogador que não quisesse ouvir as suas conversas antes do jogo?
- Não. Não. Ainda não, não mesmo. Na maior parte das vezes, tenho a sensação de que recebem bem tudo o que lhes digo antes de começar. E, por vezes, tenho visto pessoas que penso que se envolveram menos, que não se empenharam tanto. E, por vezes, vi pessoas que acho que se envolveram menos, que não se empenharam tanto, digamos, que não se alegraram tanto com o que estavam a ouvir, mas nunca ninguém que me tenha colocado obstáculos ou que tenha reagido mal a mim.
- Sente-se apoiado pelas instituições?
- (risos) Lamento. Gostaria de ter sido apoiado pela minha federação e pelo meu comité de árbitros, mas não fui. Nunca fui. Em nenhum momento da minha carreira fui apoiado. Espero que isso possa mudar. Atualmente já não arbitro para a federação. Arbitro numa liga à parte, a Liga Ciudad de Málaga, onde me sinto muito apoiado, muito bem apoiado, e temos medidas muito rigorosas contra a violência que são aplicadas e que dão resultados.

Temos as nossas conversas de treino, tentamos ir ao encontro do desporto em que acredito. É por isso que me sinto tão confortável. Está no espírito do 090 e a verdade é que me sinto muito bem nesta liga. Mas quando arbitrei na federação não tive qualquer apoio, nunca. Nunca. E teria gostado de o ter. E tal como gostaria de poder colaborar um dia com a Federação Andaluza de Futebol e o seu comité de árbitros ou com qualquer outra federação, outra federação territorial, ou com qualquer outra federação, outra federação territorial, ou com a federação espanhola. Gostaria muito de poder contribuir com a minha experiência, de poder ter uma relação normal e até de voltar a arbitrar nalguma federação, se as circunstâncias surgissem. Gostaria muito. Não perco a esperança, mas para já ainda não aconteceu. Por exemplo, tenho contactos com a Federação Andaluza de Andebol e com a delegação de Málaga, que têm uma campanha muito simpática chamada "Quero jogar sem insultos". E contam sempre comigo e com a plataforma 090 para falar, para ajudar a sensibilizar. E eu fico muito contente. Eu faria o mesmo com o futebol. E com quem quer que me chame. Nunca viro as costas a ninguém. Nunca.
"Não percebo como é que as pessoas aguentam tantas barbaridades"
- É preciso ser louco para ser árbitro, como acontece com os guarda-redes?
- Caramba, a arbitragem é linda, linda, incuto valores maravilhosos. Fez-me aprender muitas coisas importantes em termos de valores, em termos de maturidade, em termos de desenvolvimento como pessoa. Mas olho para trás Mas olho agora para trás e o que digo muitas vezes a mim próprio é: como é que pude suportar tanta barbárie antes de me tornar o árbitro da paz Como é possível que eu tenha suportado, e tantos outros suportaram, atrocidades tão grandes e por vezes indescritíveis? Como é possível? Também não o compreendo muito bem, para ser sincero. E como é que outros colegas continuam a suportar isto agora, sem tomar medidas, e como é que ainda há pessoas que passam por um inferno nos campos de futebol, semana após semana? Não percebo. Não, não, não percebo. Mas acontece.
- Alguma vez teve de chamar a polícia quando parou o jogo por causa de insultos, depois do protocolo?
- Sim, depois do protocolo, quando comecei, em 2006, com este protocolo até 2013, quando o apliquei na federação ininterruptamente, nesses sete anos chamei a polícia quatro vezes. Para quem está familiarizado com o futebol, e ainda mais naquela altura em que, repito, ninguém tomava medidas, ninguém falava no assunto, e eu era o único a fazê-lo, quatro vezes é muito pouco. Quer dizer, é muito, porque devia ter sido zero, mas é muito pouco em comparação. Por outras palavras, o protocolo deu o resultado. As pessoas responderam. E eu fui absolutamente rigoroso. Fui absolutamente rigoroso. Não deixei passar nada. E dessa forma, bem, houve resultados satisfatórios. E não deixaram passar, porque muitas vezes os casos mais graves de violência acontecem porque não se actua quando a violência aparece. Se formos rigorosos desde a primeira amostra, as coisas melhoram e mudam. Isso é claro, é claro para mim. Eu vivi-o, eu verifiquei-o. É, vá lá, ciência. É assim que as coisas são. E quero fazer uma observação: desde que tenho falado com os pais, desde que incluí os pais, houve zero insultos nos últimos anos. Zero, não é?

- Quando é que começou a ter o bichinho da arbitragem?
- Quando tinha 16 anos. Era aluno do Colégio Maravillas, em Benalmádena, onde estou atualmente e onde sou professor desde 2001. Era aluno, antes, e queria que houvesse uma liga na hora do recreio, para jogar. Por isso, disse ao meu professor de educação física que organizasse um campeonato. Ele disse, não, organiza tu. Eu disse: "Vá lá, eu organizo". Mas, professor, por favor, como não temos árbitro, pode ser o senhor a arbitrar? E ele disse, não, tu és o árbitro. E foi assim que comecei. E quando fui a alguns jogos arbitrados nos intervalos, aos meus colegas de outras turmas, porque quando era a minha vez de jogar, alguém me fazia o favor de arbitrar. Mas no resto dos dias eu arbitrava. Todos os dias. Gostava de o fazer. E depois fui à federação para me inscrever. Estávamos na época de 93-94. E comecei assim, sem querer. Nunca tinha pensado em ser árbitro. Nunca.
"Em sete anos, chamei a polícia quatro vezes"
- Que tipo de atividades desenvolve a Plataforma 090?
- Fazemos palestras com famílias, com alguns clubes, com famílias, à tarde, durante a semana. Eu também participo nessas conversas. Não exclusivamente. Pode haver colegas, mas também faz parte das minhas acções. Também temos conversas com os treinadores, que são dadas por um colega que é psicólogo. O papel dos treinadores durante os jogos é muito importante. A forma como se dirigem aos árbitros, aos jogadores, aos adversários, tudo isso. É também muito importante que o ambiente seja sempre saudável e pacífico. E depois temos também uma parte de ação que é muito importante na Liga da Cidade de Málaga, onde arbitro. Há uma ligação especial entre a plataforma 090 e a Liga Ciudad de Málaga, que se esforça muito por transmitir valores na sua competição. E depois há também algumas colaborações, como já disse, com o andebol, por exemplo, e com outros desportos e outras acções em torneios da Cidade de Málaga, nos Jogos Municipais, porque é um programa da Cidade de Málaga. A mensagem, obviamente, é para o mundo, porque os nossos vídeos circulam por todo o lado, e o romance educativo que escrevi é para todos, mas o programa de ação é em Málaga.
- O que me pode dizer sobre o romance, sobre este projeto?
- O romance "El árbitro de la paz y el equipo campeones" é um romance educativo para jovens e idosos, na verdade. Penso que toda a gente pode tirar alguma coisa dele. É um romance sobre o desporto em que acredito muito. Acredito mesmo. Um desporto de valores, de respeito, de diversão, de crescimento, um desporto em que tentar ganhar é lógico, porque competir é saudável, faz parte do jogo, mas não ganhar de forma alguma. Um romance de valores, do desporto que defendo, onde há algumas personagens que para mim podem ensinar muito ou levar a uma reflexão profunda. Há um árbitro que tem muito de mim, há um treinador que é maravilhoso e um presidente que se está nas tintas, a verdade é que, se a equipa está em primeiro, segundo, quinto lugar, o que importa são outras coisas, e é assim que deve ser um treinador de base. Eles são os protagonistas do romance e há outras personagens que encontram dificuldades, logicamente, porque nem toda a gente pensa da mesma maneira. Mas eles mantêm-se firmes nos seus princípios.

- O seu trabalho trouxe-lhe alguma satisfação especial?
- Séneca dizia que a recompensa de uma ação virtuosa é tê-la praticado. Essa é a maior satisfação que tenho, o facto de acreditar que o que fiz é a coisa certa a fazer. E essa é a alegria de fazer a coisa certa. Essa é a principal coisa, a principal satisfação que tenho. É a principal coisa, a principal satisfação que tenho. E depois, bem, também houve muitos momentos em que os pais num campo disseram obrigado pelo que eu estava a fazer, porque é isso que o desporto deve ser. E tive a sorte de, para ser sincero, algumas pessoas nos campos me terem dito: "Por favor, continuem, porque isto é necessário". Mas, vá lá, repito, o mais importante é que sinto no meu coração, na minha consciência, que este é o caminho a seguir e que temos de continuar.