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Exclusivo com Monchi (parte 1): Do novo projeto em San Fernando aos anos de ouro no Sevilha

Monchi, com o troféu de campeão da Liga Europa pelo Sevilha
Monchi, com o troféu de campeão da Liga Europa pelo SevilhaProfimedia

O nome Ramón Rodríguez Verdejo pode passar despercebido a milhares de adeptos. Mas se dissermos Monchi, sem mais nem menos, as expressões mudam, as bocas abrem-se e as cabeças abanam em reconhecimento, afinal trata-se de um dos diretores desportivos mais influentes do mundo. Pouco depois de se despedir do Aston Villa, conversámos com ele no Flashscore sobre o humano e o divino, e, inevitavelmente, sobre futebol, bastidores e os seus projetos para o futuro.

Nesta primeira parte da entrevista, Monchi fala-nos do seu entusiasmo pelo clube da sua terra natal, San Fernando, bem como das suas várias etapas no Sevilha e de alguns dos nomes que fizeram o clube viver as melhores fases da sua longa história.

Entrevista a Monchi
Flashscore

"Tenho a ilusão de poder fazer algo na cidade onde nasci"

- Vamos começar com força, Monchi: o que o levou a liderar o projeto em San Fernando?

A história é muito complexa, mas fundamentalmente, para resumir, o afeto por esta cidade, que é a minha cidade, o afeto pelo futebol em San Fernando e, possivelmente, uma opção de vida. Estou a tentar fazer a quadratura do círculo da minha vida profissional. Comecei aqui há muitos anos e tinha a ilusão de voltar a San Fernando para realizar um projeto. É possível que os tempos tenham avançado um pouco, mas, no fundo, é a ilusão de poder fazer algo na cidade onde nasci, tanto a nível pessoal como a nível futebolístico.

- E quais foram os maiores desafios organizativos e desportivos? Porque são muitos, suponho.

Os desafios foram muitos, porque era um clube novo, praticamente do nada. O principal desafio foi conseguir que os adeptos aderissem, que se sentissem identificados com o projeto. Esse foi um desafio muito importante. Sempre disse que este clube vai ser o que os adeptos do San Fernando quiserem que seja. Por isso, conseguir que, com um novo clube, as pessoas assumam que é delas - de facto, o slogan é "El club de toda la vida" -, foi um dos desafios mais importantes e penso que o conseguimos.

- E está a tentar implementar o modelo de jogo que aprendeu no Sevilha, no Aston Villa e em todos os outros grandes clubes?

Estamos a tentar implementar o modelo do clube, mais do que o do jogo. Um clube que seja muito dinâmico, muito ágil, em que as pessoas se sintam refletidas. Um clube em que as pessoas que trabalham não o fazem porque têm uma ligação profissional, mas porque têm uma ligação sentimental. O que acontece é que ainda é cedo. Estamos a falar de dias, meses desde que o clube foi fundado, por isso ainda temos um longo caminho a percorrer. E não podemos esquecer a modéstia, a humildade do projeto, um projeto que começa de baixo.

- E os planos? Suponho que são ambiciosos, mas a médio e longo prazo, já pensou em tudo na sua cabeça?

Tenho alguma coisa na cabeça. A médio prazo, criar uma estrutura que seja o mais horizontal possível e a mais bem fundamentada possível, o mais sólida possível, para crescer a partir daí. A longo prazo, tentar colocar a equipa no futebol profissional.

- E com a experiência na política de transferências que tem noutros clubes como o Sevilha, a Roma ou o Aston Villa... Qual é a ideia? 

A questão é que ainda estamos a dar os primeiros passos. Neste momento, o que estamos a tentar fazer é configurar ou tentámos configurar um plantel onde haja uma mistura de juventude e experiência, porque obviamente as categorias onde estamos ou onde vamos estar a curto prazo são categorias exigentes. Mas sim, no futuro, tentaremos, se possível, clonar tudo o que foi feito no passado e que foi bem-sucedido.

- Vão trazer alguma estrela para San Fernando em breve? 

Ainda temos um longo caminho a percorrer porque estas divisões ainda não são atrativas para os jogadores importantes, mas veremos no futuro.

- Se a carreira de Sergio Ramos vai terminar ali, por exemplo.

(risos) Não sabemos quanto é que ainda resta ao Sérgio. O Sérgio ainda tem muita bateria. Ele está a ajudar-nos num perfil muito de fundo, obviamente, mas está a ajudar-nos. Quem está no dia a dia é o seu irmão René, que é o vice-presidente e um dos impulsionadores do projeto.

O grande Sevilha: de Dani Alves e Rakitic a Kanouté e Luis Fabiano

- No Sevilha, ganhou notoriedade por identificar jovens talentos que mais tarde se tornaram estrelas. Qual é o segredo e como é que trabalhava diariamente nesse sentido?

Fundamentalmente, quando cheguei ao Sevilha tinha uma ideia clara, que era a de poder criar uma estrutura, um modelo de gestão desportiva que nos permitisse estar à frente dos outros clubes na deteção de talentos. Mas já não era só eu. Penso que o nosso sucesso não foi apenas a deteção de talentos, mas também a gestão de talentos. Isso é igualmente importante. Penso que temos sido bons detetores, mas também bons gestores. E essa tem sido a nossa linha, sempre de mãos dadas com o treinador, tentando encontrar os perfis que o treinador poderia utilizar. E isso, juntamente com o crescimento do clube a partir da segunda divisão, aumentou obviamente a exposição do jogador, o que aumentou o seu valor.

- Como é que se fechou a chegada do Dani Alves por apenas 500 mil euros? 

Foi muito complexo porque o Daniel, não sei se se lembram, veio por empréstimo de 18 meses no mercado de janeiro de 2003. A sorte, entre aspas, para nós, a desgraça para o seu clube de origem, é que ele estava a atravessar um momento dramático do ponto de vista económico, pelo que conseguimos aproveitar essa situação para o comprar a um preço inferior ao que tinha sido acordado. O caso do Daniel é muito atípico. Não se compra um jogador por 600 mil dólares, mais ou menos o que ele custou, e cinco anos depois vendemo-lo por mais de 40 milhões, mas nessa carreira ganha-se não sei quantos títulos e isso é um em mil. Obviamente que esta criança tem muitos "pais", não só a direção desportiva, a gestão de Caparrós na altura, a gestão de Juande Ramos depois, o crescimento do clube, o próprio jogador, que era um profissional magnífico. Estavam reunidas todas as condições para uma contratação perfeita.

- Ivan Rakitić? Também outro caso em que comprou barato, entre aspas, e depois teve uma carreira brutal.

Veio praticamente de borla porque o seu contrato com o Schalke estava a terminar. Com o Ivan, que também foi uma contratação de janeiro, por coincidência, também houve uma série de circunstâncias. Chegou numa altura complicada e penso que foi um campeão do crescimento do clube. Foi uma situação win-win, porque era um profissional magnífico que também se adaptou muito bem. No final, não nos podemos esquecer que os futebolistas são pessoas e há muitos jogadores que não têm um bom desempenho porque não se conseguem adaptar. No caso do Ivan, tudo foi muito fácil. E a sua adaptação ao Sevilha foi tal que hoje se considera apenas mais um sevilhano.

- Sim, ele parece mais andaluz do que croata. Queria perguntar-lhe também se no processo de recrutamento, que é um processo longo, suponho, também no caso do Ivan, do Dani Alves, se conhece os jogadores, se faz videochamadas, se vai aos jogos e toma, sei lá, um café e conversa... Qual é o processo?

Tento conhecer a pessoa. E há situações que nos permitem sentarmo-nos com ele e vê-lo pessoalmente. Há outras situações, videochamadas, que hoje em dia a tecnologia permite-nos fazer muito mais. Mas tento sempre falar para ver como é que ele é, se está entusiasmado por vir, se tem fome, se é profissional, se conhece o estilo de jogo, se gosta de futebol. Todas estas coisas são importantes para traçar um perfil completo do jogador, para que não nos concentremos apenas nos aspetos táticos, técnicos ou físicos, mas também no aspeto humano.

- E já descartou muitos bons jogadores por causa do que diz?

Muitos não, mas alguns sim, porque não me transmitiram essa ilusão ou porque descobrimos que a sua vida profissional não era a mais adequada. Não muitos, mas alguns sim.

- Mas a decisão foi deles, não do jogador, suponho, não foi?

Mais minha por não ter encontrado a resposta que procurava.

- As chegadas de Luís Fabiano e Kanouté, que formaram uma bela dupla no Sevilha, como foi?

Bem, acho que ainda não conseguimos assimilar ou perceber a sorte que o Sevilha teve em ter dois dos melhores avançados da história do clube, sem dúvida, e também do futebol mundial. Bem, são circunstâncias que vocês compreenderam, porque o Luís era o nosso objetivo prioritário. No caso de Kanouté, não. Queríamos contratar outro brasileiro, Fred, mas ele foi para o Olympique de Lyon. A segunda opção era Kanouté e, bem, ele chegou e pouco a pouco tornou-se naquilo que se tornou. Foram anos magníficos, não foram? Uma dupla que poucas equipas no mundo podiam ter.

- E Adriano Correa? Como é que detetou esse tipo de talento? Porque não era óbvio.

O Adriano tem um perfil muito semelhante ao do Daniel (Alves), a jogar numa equipa pequena do Brasil. Estávamos à procura desse perfil de lateral e tínhamos bons relatórios sobre ele. Foi dada a opção de ele vir para cá porque havia muitas equipas interessadas e foi também uma adaptação rápida e um desempenho magnífico.

- Regressou ao Sevilha em 2019. Que mudanças notou mais? O clube e o ambiente mudaram muito?

Sim, tinha mudado para melhor, sobretudo em algo que para mim, na minha passagem por Roma, foi uma descoberta importante, que foi a utilização de dados. O Sevilha que eu encontro é um Sevilha que quer apostar no crescimento através dos dados, que era, penso eu, uma das coisas que nos podia tornar diferentes dos outros. E eu vinha de um clube como a Roma que também apostava nos dados, por isso, como se diz aqui em Espanha, a fome juntava-se à vontade de comer. E a verdade é que foi um início de projeto muito entusiasmante.

Leia aqui a segunda parte da entrevista