"Só devemos à história aquilo que lhe podemos acrescentar". Um estado de alma muito próprio ou até mais do que isso: um modo de vida. Este lema faz parte do ADN do FC Porto, um dos clubes mais antigos e representativos do nosso país, e que em 2024 decidiu que estava na hora de dar o seu contributo para o desenvolvimento de uma modalidade em franca expansão em Portugal. Eis a equipa feminina do FC Porto!
O início de uma nova era
O projeto do feminino não podia esperar mais tempo e viu a luz do dia para os lados do Dragão pouco depois da eleição do novo líder do emblema portista, André Villas-Boas, que cumpria, assim, um dos seus principais desejos para 2024. Era tempo de arregaçar as mangas e colocar as mãos ao trabalho.

"Este é um projeto de construção, mas estou seguro que, daqui a dois anos, já estaremos na Liga a partir a pedra toda", projetou o presidente. Uma visão ambiciosa, mas ao nível da grandeza de um clube como o FC Porto.
A construção do novo projeto começou com a identificação e escolha do treinador: Daniel Chaves. O nome do jovem técnico começou a circular na imprensa uns dias antes do primeiro contacto e assim que este recebeu a chamada dos dragões percebeu que a sua vida poderia estar prestes a mudar. Uma reunião para perceber o contexto e ambição do clube e: "SIM". Uma história sobre a concretização de um sonho.
"O FC Porto era o top para mim. Estando neste enorme clube, além de ser um enorme motivo de orgulho, tenho clara noção de que tenho de colocar a exigência lá em cima para continuar aqui e não defraudar as expetativas", conta o treinador portista, em conversa com a equipa reportagem do Flashscore, em pleno Estádio do Dragão.
"Ser o primeiro treinador da equipa feminina ainda é curto. Há ainda muita história para contar. Espero que o meu nome esteja gravado em muitas conquistas do clube e é para isso que trabalho todos os dias. Não me chega ser o primeiro treinador... Quero ser o primeiro treinador a conquistar títulos, o primeiro a colocar o clube na Liga e o primeiro a ser campeão nacional", sustenta Daniel Chaves.

A construção do plantel: "A marca FC Porto facilitou, mas..."
Um dos passos mais importantes estava dado com a contratação do treinador, seguia-se uma das partes mais desafiantes do processo: o recrutamento das jogadoras. O nome FC Porto era demasidado forte, mas não vivia por si só. O clube ia entrar pela porta da 3.ª divisão e o orçamento era ajustado à realidade competitiva.
"O mais difícil foi a construção do plantel, devido ao momento em que foi realizada. Os outros clubes já tinham feito renovações e contratações, e o timing foi um pouco tardio. Mas, a partir daí, com os conhecimentos que tínhamos, trabalhámos para construir o melhor plantel possível para este ano e o próximo", explica o treinador Daniel Chaves.
"A marca FC Porto facilitou o recrutamento, mas não tanto quanto as pessoas possam pensar. Se abordarmos jogadoras da primeira divisão para a 3.ª, talvez a ambição não seja tão grande. Mas estou satisfeito. A base de recrutamento foi boa", sustenta.
O treinador não esteve sozinho neste trabalho. Daniel Chaves contou com a preciosa ajuda dos coordenadores do projeto, nomeadamente Joana Oliveira, com vasto conhecimento sobre a realidade do feminino em Portugal, que se deixou levar pela "ambição" e "entusiasmo" de ver nascer a equipa feminina do FC Porto.

"Sabíamos que tínhamos um x de orçamento. A partir daí, procurámos perceber o que podíamos delinear para construir este plantel, evitando apostas descabidas e pensando no futuro do clube em termos financeiros. Apostámos em talento jovem da 3.ª divisão, que se tinha destacado, e em jogadoras da seleção nacional. Fomos à 1.ª e 2.ª divisões à procura da experiência e consistência de algumas jogadoras. Na 1.ª divisão, analisámos jogadoras com menos aproveitamento, para avaliar se este poderia ser o momento de relançar a carreira de algumas delas e criar um desafio diferente em torno do FC Porto", recorda a coordenadora técnica, em entrevista ao Flashscore.
"A grande vantagem de estarmos num clube como o FC Porto são os departamentos que apoiam a equipa. Conseguimos oferecer vários serviços, como nutrição, apoio médico, psicologia, e isso faz toda a diferença na carreira das jogadoras. O objetivo era perceber em que contexto estavam inseridas e se tinham essa base para alcançar o melhor rendimento. Na minha ótica, pelo trabalho que fizemos, há jogadoras que atingiram um bom nível de rendimento graças ao esforço de todos os departamentos. Conseguimos ajudar e relançar várias jogadoras", sublinha.
Um recorde que serviu de "alerta"
Treinador: check. Jogadoras: check. Apoio dos adeptos: loading. A lista de tarefas estava bem delineada. Os adeptos são a alma de um clube e faltava perceber de que forma é que a massa associativa azul e branca estava a olhar para este novo capítulo da história do clube. A resposta não deixou margem para dúvidas.
O FC Porto teve a ousadia de anunciar o jogo de apresentação da sua equipa feminina para o Estádio do Dragão e o dia 1 de setembro de 2024 ficará para sempre na história. Embora o recorde não tenha sido o propósito inicial deste plano, a verdade é que foi preciso abrir vários setores do estádio nesse dia e o recorde de assistência foi mesmo batido: 30.093 adeptos marcaram presença no jogo de apresentação contra a UD Leiria.
Se dúvidas houvesse: "Sinceramente, acho que ficou evidente aos olhos de todos no jogo de apresentação. Todos os clubes ficaram em estado de alerta. O FC Porto entrou para cumprir os objetivos que tem, que passam por chegar à Liga".

"Faltava o clube mais representativo da zona Norte para trazer mais adeptos a ver o feminino. Há mais gente este ano a assistir à modalidade porque o FC Porto entrou. E quanto mais for crescendo e alcançando patamares, maior será a dimensão e o apoio", assinala o treinador Daniel Chaves ao Flashscore.
"O povo do Norte tem um impacto muito grande no que diz respeito ao feminino. Bateu-se o recorde de clubes e, depois, fizemos o recorde com a Seleção também aqui no Dragão. Acho que os adeptos do FC Porto têm uma força muito grande no que é o projeto. Temos uma média de 800 pessoas no Olival a ver os nossos jogos e também levamos muita gente a jogos fora", corrobora Joana Oliveira.
"Estamos extremamente felizes com o apoio e a exigência deles. No futuro, queremos que esse apoio continue e, se possível, que venha também novamente para o estádio do Dragão. Estamos perante os melhores adeptos do mundo, que exigem e querem, e é isso que queremos aqui", completa a coordenadora.
"Queremos ter o João Pinto, o Jorge Costa e o Rui Barros do feminino"
"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce". Hoje, poucos meses depois do arranque, ninguém tem dúvidas de que esta foi uma aposta ganha. O feminino deixou de ser um sonho e passou a ser a realidade de um clube que quer deixar uma marca indelével, não só na história do FC Porto, mas de todo o futebol nacional.
"O que está a faltar?" "O que precisam?" "Onde podemos melhorar?" Estas são apenas algumas das questões que a direção do clube nortenho coloca ao departamento do feminino, que demonstram a preocupação "diária" pelo desenvolvimento do projeto. "Continuamos a ter dores normais de crescimento, mas não nos tem faltado nada", garante Joana Oliveira.

Da psicologia à nutrição, departamentos que tiveram de fazer a sua adaptação para a realidade do feminino, sobretudo pelas diferenças morfológicas entre homem e mulher, o FC Porto "oferece todas as condições" para as jogadoras serem profissionais, ainda que o presente seja a 3.ª divisão.
"Não há desculpas para facilitar só por estarmos na 3.ª divisão. Temos trabalhado com o máximo empenho, e isso serve para preparar as atletas para o que queremos alcançar quando chegarmos à Liga", destaca a coordenadora técnica portista ao Flashscore.
"Acima de tudo, queremos criar uma base para alcançar a primeira divisão com atletas já moldadas à mentalidade do FC Porto. Temos um plantel com uma média de idades de 20 anos e pretendemos que as jogadoras sejam 'jogadoras à FC Porto' quando chegarmos à Liga. O objetivo é captar talento, mas a tempo de educar as atletas nesse sentido", complementa.
"Tivemos de procurar jogadoras que trouxessem qualidade, mas que ainda estivessem a tempo de sentir o clube, para termos o 'João Pinto', o 'Jorge Costa' e o 'Rui Barros' do feminino. E que isso se refletisse dentro de campo com qualidade, entrega, raça e paixão", remata.

134 golos marcados em... 10 jogos
Com um plantel muito jovem, mas recheado de qualidade, o FC Porto terminou recentemente a primeira fase da época 2024/25, cumprindo o seu principal objetivo: 10 vitórias em 10 jornadas. Tudo isto com um impressionante registo de 134 golos marcados e apenas quatro sofridos, com duas goleadas de 28-0 pelo caminho.
"Superou (as expetativas), se formos a ver o panorama geral, sobretudo pelo que fizemos contra o Marítimo (na Taça de Portugal). Há uma discrepância entre algumas equipas no campeonato, mas a ambição foi sempre alcançar 10 vitórias. Era essa a meta", assegura o treinador Daniel Chaves.
"O facto de o grupo ser jovem também facilita. Elas têm ambições, querem chegar a outros patamares e sabem que representar o FC Porto acresce muita responsabilidade. A gestão de expetativas passa por controlar jogo a jogo. Em termos de treino, é importante criar competitividade entre elas para manter o plantel unido", sustenta.
"Estamos satisfeitos, mas somos um clube que nunca está satisfeito com o que atingiu. Só devemos à história aquilo que lhe podemos acrescentar. Foram 10 vitórias em 10 jogos, e, em termos competitivos, estava mais do que ao nosso alcance. Agora, a segunda fase exige outro tipo de trabalho. Estamos satisfeitos com o que temos feito, a lubrificar a máquina, colocando os departamentos a trabalhar e fazendo com que as jogadoras compreendam o que é estar no FC Porto, o que é ser uma jogadora do FC Porto, o que precisam para estar aqui e corresponder à exigência do adepto. Ou seja, estamos satisfeitos, mas insatisfeitos com o que podemos fazer. Vamos atrás de mais e melhor para atingir o objetivo principal", atira Joana Oliveira.

Sobre objetivos a curto, médio e a longo prazo: "A curto prazo é sabido: este ano, queremos ser campeões e subir de divisão. A médio e longo prazo passa por melhorar o projeto feminino, formar jogadoras à FC Porto e, com o tempo, chegar à Liga, mas chegando com uma estrutura forte e preparada para corresponder às exigências de estar no mais alto patamar. No fundo, queremos chegar lá e estar preparados para lutar pelo top 3".
"Queremos muito iniciar a segunda fase (do campeonato), estamos com muita ambição e agora é hora de fazer o balanço. Precisamos perceber internamente o que podemos ajustar, pois o plantel é curto. Queremos entrar em 2025 em grande e cumprir com os objetivos", perspetiva o treinador portista.
Mas não só de objetivos internos se faz este projeto do FC Porto. Os dragões querem aproveitar a força do seu nome para serem uma voz ativa nas inúmeras lutas travadas pelo feminino em Portugal e no Mundo.
"Sentimos que o FC Porto tem sido uma alavanca para a aposta no feminino", começa por dizer Daniel Chaves.
"Temos uma voz ativa para chamar a atenção, porque nos ouvem e vêem. Somos um clube grande, o maior em Portugal, e temos a responsabilidade de chamar a atenção para vários problemas no feminino, apesar de estarmos na 3.ª divisão. Sinto que, às vezes, as prioridades estão invertidas. Pergunto se faz sentido a criação da 4.ª divisão ou se o caminho deveria ser melhorar a 3.ª divisão? Se faz sentido termos apenas 10 equipas na 1.ª liga? Ou se faz sentido que os contratos profissionais estejam baseados no ordenado mínimo? Acho que é importante perceber a diferença entre igualdade e equidade", advoga Joana Oliveira.
"Somos uma voz ativa porque temos esta visibilidade, e é importante fazer esse destaque. O papel da mulher no desporto está a crescer, mas temos de perceber até onde podemos crescer e em termos comerciais, o que revertemos para as instituições. As exigências desmedidas não fazem sentido. Mais vale crescer devagarinho, degrau a degrau, para que, daqui a 10 anos, exista a verdadeira igualdade", resume.
Rita e Inês vivem sonho de dragão ao peito: "Temos condições fantásticas"
Os olhos brilham. Não há como negar o amor. Rita Vaz Martins (17 anos) e Inês Valente (20 anos) integram o plantel do FC Porto com muito orgulho. Ambas são portistas de coração e têm a "noção da grandiosidade" do clube que representam, ainda que por vezes ainda tudo pareça um pouco irreal.

"Quando surgiu o convite, confesso que não acreditei, mas a decisão acabou por ser fácil, por ser o clube do meu coração, que apoio. Claro que foi muito bom receber o convite do FC Porto, ainda para mais sabendo que ia fazer parte da primeira equipa. É um orgulho tremendo representar este clube. O meu nome e o das minhas colegas ficará para sempre na história do clube. Isso já ninguém nos tira!", explica Rita, em conversa com o Flashscore nas bancadas do Estádio do Dragão.
Oriunda do Boavista, tal como a colega Rita, Inês Valente, que concilia o futebol com o curso de Medicina, destaca a singularidade das condições oferecidas pelos dragões: "É mesmo difícil explicar a uma jogadora que está noutro contexto no feminino. Arrisco-me a dizer que superou as expectativas de todas. A cada semana há algo novo que nos fascina. Noutros contextos, o treinador é quem tem de fazer de psicólogo, tratar das deslocações; aqui, há uma organização difícil de encontrar noutros clubes, que nos potencia".
"Neste curto espaço de tempo, o FC Porto já nos proporcionou inúmeras experiências que ninguém vai esquecer. Só o facto de o jogo de apresentação ter sido no Dragão, com recorde de assistência, é algo que não se explica. É muito bom para todas. Temos condições fantásticas, não nos falta nada, o que é muito importante para o nosso desenvolvimento", assinala Rita.
O FC Porto tornou a ideia de ser jogadora profissional "mais possível" na cabeça de Inês Valente, que tem ainda tem alguma dificuldade para traduzir por palavras todas as emoções vividas desde o arranque do projeto, e ainda para definir o carinho recebido pelos adeptos portistas.
"É brutal. Estamos habituadas a ter a família e os amigos, e aqui temos pessoas que nos adoram e não nos conhecem de lado nenhum. É estranho olhar para a bancada e ver que há pessoas que sabem o nosso nome. Temos uma média de 800 adeptos por jogo. Ainda não caiu a ficha. Com o tempo, vamos tomando consciência, mas acho que só vamos perceber o que estamos a fazer depois", defende a média, autora de nove golos e quatro assistências até ao momento.

"O FC Porto é o melhor clube de Portugal e fazia todo o sentido criar o futebol feminino. Faz sentido os adeptos apoiarem uma modalidade em crescimento. Isso só vem valorizar o futebol feminino", finaliza.
Alguns desses adeptos são os professores de Rita Vaz Martins na Escola Secundária. A defesa, que é uma das mais jovens do grupo às ordens de Daniel Chaves, não esconde as ambições para o próximo ano: "Representamos o FC Porto e temos de mostrar sempre o ADN do clube e as suas ambições em cada jogo. Independentemente dos resultados expressivos, a motivação é constante, assim como o respeito pelas outras equipas. (...) 2024 foi fantástico, mas espero que 2025 seja ainda melhor. Queremos cumprir o nosso objetivo de subida de divisão".
Está dado o mote. O Dragão começou a levantar voo e espera-se que continue a voar alto nos próximos anos. E atenção: no horizonte já se vê a Liga.
