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A importância da nutrição no futebol de alto rendimento: "Boa alimentação é crucial para o futuro"

Beatriz Gandra Balio trabalha com a equipa feminina do Famalicão
Beatriz Gandra Balio trabalha com a equipa feminina do FamalicãoFC Famalicão, Flashscore

Beatriz Gandra Balio é nutricionista da equipa feminina do Famalicão e ajuda-nos a compreender a importância da nutrição no futebol. Do planeamento para as diferentes fases da temporada aos grandes mitos associados à alimentação, houve ainda espaço para deixar alguns conselhos dirigidos aos jovens atletas.

O desporto esteve sempre muito presente na vida de Beatriz Gandra Balio, que acabou por encontrar na nutrição uma grande paixão, ainda que não tenha sido amor à primeira vista. Tinha a certeza de que queria seguir uma área ligada às Ciências, sendo que a primeira ideia passava por Medicina Veterinária.

O destino, porém, levou a melhor, e a nutrição foi ganhando espaço até se tornar a sua principal escolha. Rapidamente percebeu que o seu propósito passava por unir dois mundos: nutrição e performance desportiva. "Era uma área que me permitia estar em contacto com as pessoas e ajudá-las. Acabou por ser uma agradável surpresa", conta Beatriz, em entrevista ao Flashscore.

"Na altura em que entrei no curso não havia muitas referências na área, por isso não sabia bem ao que ia. Mas adorei a minha licenciatura e não mudaria nada", acrescenta.

A convicção de Beatriz Gandra Balio
A convicção de Beatriz Gandra BalioOpta by Stats Perform, Arquivo Pessoal

Vivemos numa era em que qualquer pessoa, mesmo sem ser especialista, consegue ter voz num tema tão relevante como a nutrição, muito graças às redes sociais, que tornam virais determinados conceitos. Termos como "nutrição", "alimentação", "saudável" e "suplementos" passaram a ser comuns no nosso dia a dia.

Mas, afinal, o que significa realmente ter uma alimentação saudável?

"Apesar de não ser algo que vende tanto nem tão chamativo para a população em geral, a verdade é que ter uma alimentação saudável e equilibrada passa por consumir hortícolas, fruta, carne, peixe e laticínios com qualidade. Não é um conceito muito glamoroso, mas é isso que define uma alimentação saudável", desmistifica Beatriz.

"Aliar isso à prática regular de exercício físico, a uma boa rotina e à higiene do sono é fundamental. No contexto desportivo, há alguns ajustes, claro, mas para a população em geral, esta é a base. (...) Não estamos a falar de superalimentos nem de suplementos - que, infelizmente, são o que mais se promove hoje em dia", completa.

Beatriz (à dir.) ao lado de jogadoras do Famalicão
Beatriz (à dir.) ao lado de jogadoras do FamalicãoArquivo Pessoal

"Nutrição deixou de ser vista como um extra e passou a ser considerada essencial"

A nutrição pode fazer toda a diferença na vida das pessoas e no desporto não é exceção. Durante a licenciatura, Beatriz Gandra Balio participou em vários congressos que a levaram a redirecionar o foco académico para a aplicação prática dos conhecimentos na área desportiva. Ainda assim, estava longe de imaginar que o seu futuro passaria pelo futebol.

"Nem era grande adepta de futebol, como sou hoje", confessa. Num dos estágios curriculares, optou por entrar na área do desporto pediátrico. E enquanto muitos colegas aproveitaram o segundo estágio para explorar outras vertentes da nutrição, Beatriz decidiu manter-se no desporto.

"Não era muito comum vermos raparigas na área do desporto, e eu fiz essa escolha como um desafio pessoal. Quis experimentar o futebol, quis testar-me num meio onde não havia tanta abertura para as mulheres - e a verdade é que hoje não me vejo a fazer outra coisa que não seja trabalhar no futebol", justifica.

A nutrição é já uma presença obrigatória no futebol masculino, e as equipas femininas começam agora a abrir as portas a esta realidade. No Famalicão, esse passo já foi dado: Beatriz Gandra Balio integrou a estrutura técnica da equipa feminina nas duas últimas temporadas.

"A nutrição, nos dias de hoje, está mais do que presente em praticamente todos os clubes, sobretudo na Liga masculina. No futebol feminino, sinto que é ainda algo muito recente, o que faz com que as jogadoras sejam bastante recetivas e interessadas. Como nunca tiveram este tipo de recurso com tanta facilidade, acabam por valorizá-lo e perceber a importância de um nutricionista em contexto desportivo", explica a nutricionista.

"A nutrição já provou, com base em múltiplos estudos, ser um dos pilares fundamentais para o rendimento desportivo. Ao nível da recuperação física, por exemplo, já existem diagramas que demonstram que, na base da pirâmide da performance, está o sono, seguido de uma boa alimentação e hidratação. Só depois vêm estratégias como crioterapia ou massagens", sublinha.

"Sinto que jogadores e jogadoras estão cada vez mais conscientes desta importância. A nutrição deixou de ser vista como um extra e passou a ser considerada essencial. É quase como um treino invisível - e, a longo prazo, os resultados são evidentes: melhorias na performance e otimização na recuperação de lesões. O impacto é, sem dúvida, inegável", atira.

O impacto do seu trabalho e o feedback das jogadoras têm sido francamente positivos.

"Sinto que as jogadoras são muito gratas. E sentir esse carinho e reconhecimento é sempre bom. Já vivi momentos verdadeiramente marcantes - como, por exemplo, no processo de recuperação de uma rotura do ligamento cruzado, uma fase crítica na carreira de qualquer atleta", recorda.

"Nessas alturas, tento sempre olhar primeiro para a pessoa, antes de entrar na vertente nutricional. Não vou, de imediato, inundar com questões sobre alimentação. É fundamental reconhecer que, antes de tudo, está ali um ser humano. E, em conjunto com os restantes departamentos, encontrar o equilíbrio entre a componente física e emocional faz toda a diferença", defende.

"Também me marcou bastante acompanhar casos de atletas que estavam há meses sem menstruar e, com um trabalho conjunto e uma melhor relação com a comida, conseguimos não só melhorar a saúde como também fazer com que o ciclo menstrual voltasse a acontecer. São temas delicados, que exigem um lado mais empático", prossegue.

"Quando vemos esse progresso - que, por vezes, nem se traduz em números -, quando há uma mudança de hábitos, de postura, de bem-estar… são conquistas que, para mim, valem mais do que qualquer perda de peso", conclui.

Beatriz cumpriu segunda época no Famalicão
Beatriz cumpriu segunda época no FamalicãoArquivo Pessoal

Um mundo por descobrir

Num momento em que o desporto feminino ganha cada vez mais visibilidade, continua a existir ainda uma enorme lacuna de conhecimento sobre o corpo da atleta e a nutrição não foge à regra. A investigação ainda é escassa, mas começa a dar sinais de evolução: a FIFA, por exemplo, acaba de patrocinar um estudo académico para perceber o impacto do ciclo menstrual nas lesões do ligamento cruzado anterior (LCA). Para profissionais como Beatriz Gandra Balio, a resposta está na ciência e na personalização.

"Quando falamos da atleta feminina, ainda há muito por descobrir. Ainda agora, vi que a FIFA decidiu patrocinar um estudo académico para avaliar o impacto do ciclo menstrual nas lesões do ligamento cruzado anterior (LCA) - o que mostra que há um mundo inteiro por desbravar nesta área", refere a nutricionista ao Flashscore.

"Existe, de facto, pouca evidência científica focada na mulher atleta, e isso é algo que precisa de evoluir - especialmente no campo da nutrição. Só com mais investigação conseguiremos ajudar verdadeiramente e personalizar as estratégias de forma eficaz", sustenta.

"A personalização, aliás, é o futuro da nutrição. Cada atleta é única, e só compreendendo melhor os contextos fisiológicos, hormonais e individuais das mulheres é que conseguiremos ter um impacto real na sua saúde e performance", acrescenta.

Planeamento nutricional para fases distintas da época

Entrando no trabalho diário de uma nutricionista no mundo do futebol, importa sublinhar que a nutrição no desporto de alto rendimento não é uma fórmula fixa. É um processo dinâmico, que se ajusta às exigências de cada fase da temporada. Da pré-época intensa à gestão de esforços entre jogos e até ao período de descanso, o papel de um nutricionista é adaptar, educar e antecipar. 

"A parte da nutrição é algo que vai variando muito ao longo da temporada - não é algo que se defina no início e se mantenha igual até ao fim. A fase da pré-época é sempre a mais exigente: há um grande gasto energético, treinos intensos, e é também nessa altura que estou a conhecer jogadoras novas. Tento logo sensibilizá-las para a importância de um bom aporte de hidratos de carbono, porque é comum, entre atletas do sexo feminino, existir algum receio em relação a este macronutriente", explica.

"Faço questão de explicar que não é por consumirem hidratos que vão ganhar peso, pelo contrário, são o combustível fundamental para o futebol. É precisamente nessa fase inicial que procuro reforçar essa ingestão e também testar alguns suplementos que gostaria de implementar ao longo da época", sustenta.

"Gosto de aproveitar a pré-época para colocar em prática estratégias nutricionais que depois vou ajustando consoante as necessidades individuais de cada jogadora e o calendário competitivo. O meu foco principal é otimizar a recuperação. Entre jogos, insisto sempre numa boa ingestão de hidratos - nunca parar, nunca baixar o ritmo, mesmo entre partidas. Quero que estejam sempre como se estivessem a preparar-se para o próximo jogo: é o conceito de carbloading", anota.

"Também utilizo suplementação com ómega-3, pelo seu efeito anti-inflamatório, e incentivo o consumo regular de hortícolas e frutos vermelhos, sobretudo em calendários mais congestionados, para ajudar na recuperação muscular. São estratégias pontuais, mas fundamentais", finaliza.

Já no pós-temporada, há um trabalho também a fazer: "Procuro dar sessões educativas para ajudá-las a gerir a sua composição corporal em momentos de menor exigência. Quero que aproveitem esse período, porque o merecem, mas sem voltarem à estaca zero quando a pré-época começar".

Beatriz veste as cores da equipa feminina do Famalicão
Beatriz veste as cores da equipa feminina do FamalicãoArquivo Pessoal

Gomas e Chocapic

A nutrição também é um mundo de alguns mitos. Da (falsa) crença de que se deve comer menos durante uma lesão à ideia de que só há espaço para alimentos “saudáveis”, a nutricionista Beatriz Gandra Balio defende uma abordagem estratégica e adaptada ao contexto. Porque, por vezes, a melhor preparação para um jogo começa com uma taça de... Chocapic.

"Uma das primeiras coisas que costumo abordar, ainda na questão das lesões, é um mito muito comum: muitos atletas pensam que, quando se lesionam, devem reduzir as calorias e comer menos. Esse é um dos grandes equívocos. Durante a recuperação de uma lesão, o corpo pode até gastar mais energia do que num treino normal, porque o processo de regeneração dos tecidos é altamente exigente. Ou seja, o gasto calórico acaba por não ser tão inferior ao de um atleta em atividade. Quando há uma redução drástica na ingestão, os atletas acabam por ter perdas significativas de massa muscular, o que compromete a recuperação", explica.

"Outro mito muito recorrente - especialmente entre jogadoras - está relacionado com a ideia do que é comer saudável. É claro que a alimentação equilibrada é essencial, mas há fases da época, como o dia anterior a um jogo ou o próprio dia de competição, em que esse conceito precisa de ser ajustado. Nesses momentos, o que procuramos são fontes de hidratos de carbono de absorção rápida: marmelada, mel, gomas, açúcar simples... até cereais como Chocapic ao pequeno-almoço. Se há momento ideal para comer esse tipo de alimentos, é precisamente na véspera ou no dia do jogo. Nessas alturas, posso até incluir aletria ou arroz-doce como sobremesa, coisas que durante a semana são substituídas por fruta, por exemplo", cimenta.

Ainda sobre a escolha aparentemente inusitada de cereais Chocopic: "É curioso: no início, quando perguntava como era o pequeno-almoço antes do jogo, diziam-me que comiam abacate com ovos mexidos, por acharem que era super saudável. E é, mas trata-se de uma refeição rica em gordura e proteína, o que pode, nesse contexto específico, prejudicar a performance".

"Hoje em dia, já é diferente: mandam-me fotos das panquecas com mel e dos Chocapic antes dos jogos e eu adoro ver isso, porque percebem o porquê dessas escolhas. Estão a comer com estratégia, não por impulso", diz entre risos.

Beatriz ao serviço do Famalicão
Beatriz ao serviço do FamalicãoArquivo Pessoal

"Não trocaria esta profissão por nada deste mundo"

Para quem sonha com uma carreira no futebol, há cada vez menos espaço para improvisos fora das quatro linhas e a nutrição é uma das áreas-chave nesse percurso. Beatriz Gandra Balio não tem dúvidas: o acompanhamento nutricional deve começar o quanto antes.

"O meu conselho, para quem quer seguir o futebol como carreira, é claro: procurem o acompanhamento de um nutricionista. Muitos clubes ainda não têm esse apoio integrado, mas ter esse acompanhamento por fora é válido e, muitas vezes, necessário. Perceber desde cedo que a alimentação é uma parte fundamental do crescimento e do desenvolvimento é essencial para se tornarem adultos e atletas saudáveis. Os pais também devem e podem estar presentes nas consultas, para compreender melhor a realidade alimentar dos filhos", sugere.

"É importante olhar para os contextos individuais de cada pessoa e trabalhar com soluções adaptadas. Não há uma fórmula única. Mas há uma certeza: uma boa alimentação é crucial para o futuro - dentro e fora de campo", completa.

Para terminar, uma reflexão profundamente pessoal sobre o impacto que a nutrição tem tido na vida de Beatriz.

"Ver as atletas crescerem, evoluírem, chegarem mais longe e perceber que, de alguma forma, tivemos um espaço na carreira delas é extremamente gratificante. A minha mãe é professora e diz que sente isso com os alunos. E eu percebo perfeitamente o que ela quer dizer, pois sinto o mesmo no futebol", assume.

"Não é uma profissão glamorosa, como muitos pensam. Mas também não a trocaria por nada. Eu, que era péssima a lidar com pressão por ser muito perfeccionista, aprendi que neste meio não há tempo para esperar pela perfeição. Aprende-se a lidar, a decidir, a confiar. E é isso que me apaixona todos os dias", finaliza.

Entrevista de Rodrigo Coimbra
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