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"Ouvi muitas vezes que não era posssível viver apenas do futebol"
- Como é que o futebol aparece na sua vida?
- As primeiras memórias que tenho remontam à altura em que ainda nem andava na pré-primária. Posso confessar que houve uma grande influência do meu padrinho. Todas as brincadeiras de que me lembro que tinha com ele envolviam uma bola. Mais tarde, estava sempre integrada no desporto escolar, e, no ensino básico, a minha diretora de turma comentou que eu tinha algum jeito. Entrou então em contacto com uma antiga colega de faculdade, e, a partir daí, todos os sábados ia jogar futsal numa equipa mista. Mais tarde, tive uma experiência numa equipa sub-19...
- Com que idade?
- Com 13-14 anos. No ano seguinte, vieram falar comigo para ir para o Paredes, para a equipa sénior, que integrei aos 15 anos.

- Correu bem essa experiência?
- Foi uma boa experiência. Senti interesse e valorização da parte deles. Era apenas uma miúda, mas senti-me muito bem acolhida no meio de pessoas muito mais velhas do que eu. Também fui muito acarinhada pelas pessoas do clube. Por exemplo, o diretor do clube teve uma atitude comigo que ainda hoje recordo com carinho. No clube onde estava, já tinham feito a encomenda do equipamento, e esse tal diretor do Paredes disponibilizou-se para pagá-lo, permitindo que eu fosse para o Paredes. Era daqueles diretores que fazem de tudo um pouco nos clubes e recordo que ele fazia tudo de coração.
- De que forma é que via o seu próprio futuro na modalidade nessa altura?
- Era um sonho que tinha estabelecido, sabia que não era impossível. Ao início fazia-o muito por gosto, acreditando que, um dia, pudesse evoluir e que fosse possível viver apenas do futebol. Fui percebendo que havia pessoas empenhadas em fazer o futebol crescer. Comparando com algumas situações que acontecem na primeira divisão hoje em dia, posso dizer que já existiam clubes a pensar em coisas semelhantes nessa altura. Por isso, faz-me confusão que certas questões ainda não sejam pensadas ou trabalhadas.
Com o tempo, vi algumas colegas desistirem pelo caminho, enquanto outras foram ficando, e pensava que isso acontecia por algum motivo. Continuaram aquelas que acreditaram que era possível e que tinham disponibilidade física e mental para seguir em frente. Afinal, estávamos constantemente a ouvir comentários de que não era possível viver apenas do futebol. Não era sequer um plano B, porque o futebol nem era um plano.
- O que acha que fez a diferença no seu caso?
- Fui tirando o melhor de cada experiência. Quando não existem outros retornos, temos de valorizar ao máximo o que temos à nossa volta. Para que se perceba a realidade dessa altura, recordo um estágio, nos tempos do Boavista, em que conseguimos fazer um estágio para um jogo da Taça de Portugal. Dormimos em sacos de cama num pavilhão de uma escola. Para nós, aquilo era único...

"Há poucos motivos para se faltar a um treino"
- Por falar no Boavista, a porta da Liga abre-se precisamente para si no Boavista.
- O último jogo que fiz no Paredes foi contra o Boavista, e o treinador do Boavista veio falar comigo no final do jogo, convidando-me a ir para lá no ano seguinte. O clube em si tinha outra dimensão. Toda a gente reconhecia o clube e gostei imenso da experiência. Senti algo que hoje é mais raro: o respeito pelas jogadoras da equipa principal era enorme.
- Tem memória dos primeiros jogos que faz na Liga?
- Sim, sim… A sensação foi boa. Existia nervosismo, mas eu queria muito aproveitar a oportunidade.
- Seguiu-se a Ovarense. O que há a dizer dessa etapa da sua carreira?
- Foram anos difíceis em termos estruturais, com algumas mudanças. Mas, mais uma vez, tínhamos de nos agarrar ao que tínhamos e às pessoas que estavam ao nosso lado. Praticamente todas estudavam ou trabalhavam, percorrendo muitos quilómetros para treinar ao final do dia, todos os dias, chegando a casa muito tarde, e no dia seguinte começava um novo dia. Foram anos bastante preenchidos, de onde retiro uma grande aprendizagem.

- Conciliava o futebol com os estudos nessa fase?
- Sim, e ainda tinha um part-time à tarde. Tenho de agradecer a uma mãe invencível que me deu todo o apoio. Era algo quase impossível de ser feito. Eu saía por volta das 7 da manhã para a faculdade, depois ia para o part-time, e, mais tarde, ia a casa fazer o saco, pegava o lanche e, quando chegava, já tinha o jantar feito e outro prato preparado para levar para a faculdade no dia seguinte.
- Muito amor pelo futebol…
- Sem retorno monetário e com toda esta logística, não era fácil para algumas pessoas. Acredito que esse terá sido um dos motivos para mais de 80% abandonarem o futebol. (...) É preciso assumir um compromisso. Por isso, por todos os sacrifícios que sinto que fiz, digo que há poucos motivos para se faltar a um treino.
- Depois do Ovarense surge o Amora. Que tal essa mudança para o sul?
- Foi a primeira vez fora de casa e foi uma ótima experiência. Gostei muito, o ambiente era incrível. As pessoas apoiavam imenso o clube. Saí um pouco da minha zona de conforto, mas fui muito feliz.
- Acaba por regressar ao norte na época seguinte, para o SC Braga. Condições muito diferentes, não é verdade?
- Arrisco-me a dizer que é das melhores estruturas em Portugal. Em termos de logística, do carinho para com as atletas e na busca das melhores condições para elas, é das melhores em Portugal. Sem desprimor para o Amora, atenção, que tem recursos humanos muito bons em várias áreas, como preparação física, psicologia e nutrição. E estamos a falar de um Amora que está na segunda liga, atualmente.

"2024 foi um ano indescritível para o Racing Power"
- O Racing Power é o seu mais recente projeto. Como é que o apresenta?
- É um clube bastante ambicioso, com um projeto muito familiar. Nota-se uma evolução constante em tudo o que envolve o clube...
- ... Um clube que na época passada fez 3.º lugar na Liga, chegou à final da Taça de Portugal e ainda marcou presença na final four da Taça da Liga.
- O Racing Power, em termos de qualidade-investimento, foi a equipa revelação do último campeonato. Em termos de orçamento, não há comparação. Não é muito normal acontecer algo assim, a não ser que haja uma boa estrutura. O Racing é um projeto recente e foi um ano indescritível. A nossa equipa valeu muito mais pelo seu coletivo do que por qualquer individualidade.

- E o que os adeptos podem esperar do Racing até ao final da presente temporada? Sabemos que mudaram recente de treinador...
- Temos alguém novo a assumir a equipa técnica e iniciámos há pouco tempo um novo processo. Existem novas ideias e essas ideias têm de ser postas em prática o mais rápido possível. Não há tempo para grandes correções. Temos de aproveitar ao máximo o que está a ser transmitido. Acho que já se começam a notar alguns frutos do que temos trabalhado.
- Como se tem sentido do ponto de vista individual?
- Tenho-me sentido bem. Se há momento em que não me sinto bem, significa que estou estagnada. Sinto também que tenho de estar em constante evolução. A nossa liga está cada vez mais competitiva e, se estagnar, serei menos eficaz, e, se for menos eficaz, o clube irá procurar alternativas.

"Seleção continua a ser um objetivo"
- A Beatriz cumpre a 9.ª temporada na Liga, portanto vivenciou todo este crescimento de forma muito próxima. Qual é a sua análise à competição?
- Acho que a competição está cada vez mais equilibrada e competitiva. O primeiro classificado está um pouco mais distante, mas acredito que vai ser uma luta grande até ao final entre as outras equipas. Veja-se o que aconteceu na Taça da Liga, em que houve um clube não favorito (Damaiense) que passou às meias-finais, e outro (Valadares Gaia) que discutiu a eliminatória. Sinto que há muito menos resultados previsíveis.
- O que pode ser feito para a Liga crescer ainda mais?
- É dar relevância ao simples. Ninguém inventa a fórmula mágica. Acho que a nutrição e o treino específico, por exemplo, deviam ser tratados com a devida importância por todos os clubes. Há muitos clubes que pensam em dar as condições apenas depois dos resultados aparecerem. O pensamento tem de ser ao contrário.
- Aos 27 anos, como é que a Beatriz olha para o futuro? Muitos objetivos?
- Tenho objetivos individuais, mas, quando se joga em equipa, os maiores objetivos são os coletivos. Costumo dizer que fico mais contente com uma assistência do que com o golo. Individualmente, trabalho muito para crescer como pessoa e atleta, não só quando vou ao clube, mas também quando chego a casa.

- A Seleção Nacional é um dos objetivos?
- Sim, é um objetivo. Portugal está muito bem servido com as atletas que tem, mas é um objetivo que continua a estar traçado. Para quem pratica a modalidade e procura melhorar, não faz sentido esse objetivo não estar estipulado, por mais difícil que seja. É o ponto mais alto da carreira.
- O que lhe diz o seu passado?
- Sinto que valeu a pena. Poderia ter sido diferente, mas acho que há muitas coisas que acontecem por um motivo. Sinto que valeu a pena e que ainda pode valer muito mais a pena. O lado mental foi muito importante. Mesmo que não tivesse dado certo, nunca me ia arrepender de todo o esforço que fiz para chegar até aqui.
- No dia em que decidir terminar a sua carreira, como gostaria que falassem sobre si?
- Que me lembrassem como alguém humilde e muito trabalhadora. São duas qualidades que fazem toda a diferença, seja em que trabalho for.
- Que conselho gostaria de deixar para os mais jovens?
- Jamais procurem a solução mágica. Não existe. O truque é o trabalho, a dedicação, a nutrição, o treino e o descanso.
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