Mais

Exclusivo com Miguel Santos: "Este 3.º lugar do SC Braga custou-me mais do que ganhar títulos"

Miguel Santos terminou ligação ao SC Braga
Miguel Santos terminou ligação ao SC BragaSC Braga, Flashscore
Alguns dias depois de ter sido oficializada a sua saída do comando técnico da equipa feminina do SC Braga, naquela que foi a sua terceira passagem pelo emblema minhoto, Miguel Santos conversou com o Flashscore para um primeiro balanço sobre a temporada 2024/25.

Miguel Santos despediu-se do SC Braga com “sentimento de dever cumprido”, depois de conduzir a equipa ao 3.º lugar no campeonato e garantir o regresso às competições europeias. Para além desse objetivo, cumpriu ainda dois pedidos da direção: a reestruturação do plantel e uma aposta clara na formação.

Com o futuro em aberto — entre projetos no futebol masculino ou feminino —, o treinador português destaca a evolução pessoal e profissional vivida nesta etapa, sobretudo ao nível da "dimensão mental". Reforça, também, a importância da continuidade, da estabilidade e do investimento como fatores determinantes no sucesso das equipas.

Deixa ainda uma análise crítica e construtiva ao estado atual do futebol feminino em Portugal e aponta caminhos claros para o seu crescimento: profissionalização, investimento na formação e união entre as estruturas do futebol nacional.

Miguel Santos livre para abraçar novo desafio
Miguel Santos livre para abraçar novo desafioSC Braga

"Consciência tranquila e sentimento de dever cumprido"

- Qual é a sua análise da temporada 2024/25?

- Foi uma época em que fizemos uma primeira metade espetacular. Entre julho e dezembro, não perdemos um único jogo oficial — um feito muito positivo e determinante para o desfecho final. A partir de janeiro, a época manteve-se boa, com momentos menos conseguidos, mas no geral positiva. No balanço global, alcançámos o principal objetivo do SC Braga: garantir o apuramento para as competições europeias. Foi para isso que esta equipa foi construída.

Naturalmente, queríamos lutar pelo segundo lugar até à última jornada — não foi possível — e também melhorar o desempenho na Taça da Liga e na Taça de Portugal, onde repetimos o registo do ano passado. No entanto, mais importante do que isso foi cumprir aquilo que a administração nos pediu: voltar à Europa.

Para além disso, o clube definiu mais dois objetivos que não estavam diretamente ligados aos resultados: a reestruturação do plantel, que foi concretizada, e uma maior aposta na formação. Também cumprimos. Integrámos quatro jogadoras da formação na equipa principal e ainda demos a oportunidade de estreia à nossa terceira guarda-redes.

Portanto, os três objetivos traçados pela direção foram alcançados. Tanto da minha parte como da equipa técnica, temos a consciência tranquila e o sentimento de dever cumprido.

O balanço de Miguel Santos
O balanço de Miguel SantosOpta by Stats Perform, SC Braga

- Quais foram os principais desafios? E como se explica a quebra de rendimento?

- Ao longo de janeiro, fevereiro e março fui percebendo as razões pelas quais perdemos alguma consistência. E posso garantir que não teve nada a ver com o modelo de jogo, nem com o modelo de treino. Fizemos uma época com um número muito reduzido de lesões, o que prova que, fisicamente, estávamos bem.

A explicação — pelo menos aquela que considero mais pertinente — não a posso expor publicamente. Já a transmiti à administração e às jogadoras. É algo que o futebol feminino ainda precisa de continuar a desenvolver: a componente mental. Foi precisamente essa dimensão mental que nos retirou alguma consistência. E foi pena, porque tínhamos tudo para manter o nível até ao fim.

- Houve alguma quebra na ligação entre a equipa técnica e as jogadoras?

- Não, não, não… Nada disso. Não houve quebras, nem houve zangas. O que esteve em causa foi, unicamente, a dimensão mental. Seria deselegante entrar em pormenores, mas posso dizer que há momentos dentro do próprio jogo que não têm a ver com tática — são puramente mentais. Falamos de concentração, de agressividade, de capacidade para ganhar duelos. É isso que, no futebol de hoje, faz realmente a diferença. E quando essa dimensão falha, mesmo que por pouco, nota-se. Foi aí que sentimos alguma oscilação.

- Em que momento se percebe que estava perante o fim de ciclo no SC Braga?

Foi uma decisão do presidente. Quando regressei ao SC Braga, em fevereiro de 2024, a direção pediu-me três coisas muito claras: reestruturar a equipa, apostar na formação e levar o clube de volta à Europa. Cumpridos esses objetivos, ficou combinado que depois conversaríamos.

A verdade é que não houve grande conversa — o presidente já tinha a decisão tomada, e a mim restou-me agradecer. Foram seis anos ligados ao SC Braga, na terceira passagem pelo clube, e serei sempre grato por todo este ciclo.

O treinador que entrou em 2015 e o que sai agora são pessoas diferentes, mais maduras, mais completas. O SC Braga é o clube onde conquistei mais títulos e alcancei mais feitos. Os presidentes estão nos clubes para tomar este tipo de decisões, e tudo aconteceu num clima de tranquilidade e respeito mútuo.

- Mas sai com o sentimento de que ainda havia algo por fazer?

- Saio com o sentimento de dever cumprido. No entanto, se o clube me tivesse pedido para ficar mais uma época, não digo que não nos sentaríamos à mesa para conversar. Sendo sincero e honesto: claro que gostaria de ter juntado à época a conquista da Taça da Liga ou da Taça de Portugal. Não foi possível — por demérito nosso, mas também por mérito dos adversários.

À medida que a época se foi aproximando do fim, confesso que senti as duas possibilidades em aberto: tanto a hipótese de a direção me pedir para continuar, como a de seguir outro caminho. Estava 50% preparado para cada cenário.

SC Braga terminou no 3.º lugar da Liga Feminina
SC Braga terminou no 3.º lugar da Liga FemininaSC Braga

"Benfica tem capacidade para ir à mariscada todos os dias, o SC Braga uma vez por mês"

- De que forma é que o Miguel tem visto a evolução do futebol no feminino em Portugal?

- A minha primeira experiência no futebol feminino foi no Vilaverdense, na época 2014/15. Na altura, ainda não existiam clubes profissionais. Desde então, as mudanças foram enormes: as condições de trabalho melhoraram bastante, as instalações são hoje de outro nível, o campeonato tornou-se mais competitivo e a jogadora portuguesa está claramente mais evoluída. A formação também deu um salto significativo. Há muitos pontos positivos a assinalar.

A questão agora é: o que precisamos de fazer para não cair num modelo de estagnação? Na minha opinião, o passo seguinte deve ser a profissionalização total da liga. É o que já acontece em países como Espanha, Inglaterra, França, Itália e Alemanha. E, honestamente, ainda termos situações com salários em atraso não é uma boa imagem — nem cá para dentro, nem lá para fora.

É essencial haver uma união de ideias entre a Federação e a Liga para garantir esse avanço. Depois, na formação, temos de continuar a aumentar o número de clubes com escalões jovens, aumentar o número de praticantes e melhorar substancialmente as condições de treino. É urgente um investimento sério nas infraestruturas para que os escalões de formação tenham campos próprios e não estejam constantemente a partilhar espaços.

Além disso, é fundamental aumentar o número de treinos por semana e adaptar os horários — treinar ao final da tarde ou à noite não é o ideal para o desenvolvimento das jovens. Enquanto isso não mudar, continuará a ser difícil que as jogadoras saiam das sub-19 preparadas para integrar diretamente as equipas principais.

Durante este último ano e três meses, notei também que o fosso competitivo e qualitativo entre os grandes clubes e os chamados médios-grandes diminuiu. Deixo aqui uma palavra de apreço para o Torreense, Valadares, Marítimo, Racing Power e Damaiense — todos eles mostraram evolução e ambição. Mérito dos clubes, dos presidentes, diretores, coordenadores e, claro, das jogadoras.

SC Braga terminou no 3.º lugar
SC Braga terminou no 3.º lugarFlashscore

- O investimento também ajuda a explicar um pouco as diferenças entre os clubes e também ajuda a explicar o pentacampeonato do Benfica. Sente isso?

- O Benfica tem capacidade para ir à mariscada todos os dias, o Sporting talvez uma vez por semana, e o SC Braga uma vez por mês. É uma metáfora simples, mas revela bem a realidade: quando tens uma capacidade financeira superior e sabes investir, isso acaba por ser um fator de desequilíbrio a teu favor.

O Benfica chegou ao penta com mérito. Foi o clube que mais investiu, que mais cresceu e aquele que conseguiu manter a estabilidade técnica por mais tempo. Além disso, manteve um núcleo duro de 15 a 16 jogadoras ao longo destes anos. Apenas duas ou três jogadoras se sagraram campeãs pela primeira vez este ano — o resto já vinha do tetra, do tri, do bi. O segredo está aí: continuidade. Ter um grupo consistente de jogadoras e a mesma equipa técnica faz toda a diferença.

No caso do SC Braga, este plantel jogou junto pela primeira vez esta época e ainda assim conseguiu um 3.º lugar. Vínhamos de um 5.º lugar numa época que dificilmente será esquecida, e conseguimos o apuramento europeu. É um bom ponto de partida para afinar e reconstruir.

Não me quero alongar muito, porque isso já entra na esfera interna dos clubes e nas suas políticas, mas acredito que o SC Braga tem bases para continuar a crescer.

- Que lições tirou sobre si próprio nesta etapa? Em que é diferente o Miguel de hoje?

- Cresci muito. Levar o SC Braga ao 3.º lugar, nesta época, custou-me mais do que ganhar títulos ou garantir a qualificação europeia noutras alturas. Este 3.º lugar sabe quase a um título, precisamente pelas dificuldades que enfrentámos ao longo da temporada.

Saio um treinador mais experiente — não só em termos técnicos e táticos, mas também na gestão de balneário e, acima de tudo, na perceção da importância da dimensão mental no desporto de alto rendimento. Hoje tenho a certeza de que talento, por si só, já não chega. É preciso aliá-lo a uma mentalidade forte, consistente.

Levo daqui várias reflexões e algumas mudanças que quero implementar no futuro, especialmente nesse campo. Onde mais cresci foi mesmo na componente mental — minha e da forma como a trabalho com a equipa. (...) Tenho muita honra e orgulho por fazer parte da qualificação europeia do SC Braga. Foi um desafio enorme, mas saio com a sensação de missão cumprida.

Miguel Santos terminou novo ciclo no SC Braga
Miguel Santos terminou novo ciclo no SC BragaSC Braga

"Estou disponível para projetos no masculino ou feminino"

- O que espera do futuro? Já pensa no próximo desafio?

- Já aprendi, no mundo do futebol, a não fazer grandes planos. Acima de tudo, o próximo passo passa por encontrar um projeto onde haja qualidade para trabalhar e condições para atingir aquilo que a administração definir como objetivo. É fundamental haver um alinhamento entre as ideias do treinador e as ideias do clube.

Não escondo: estou disponível para projetos no futebol masculino ou feminino. O meu percurso e currículo permitem-me estar preparado para ambos os contextos. Em Portugal, talvez esteja mais virado para o masculino neste momento. Depois do SC Braga, há dois ou três projetos no feminino que me poderiam interessar, mas não muito mais. A nível internacional, diria que é 50-50.

Neste momento, já estou completamente focado na próxima época. Fiz todas as reflexões que tinha a fazer sobre esta temporada e já estou a trabalhar em cima disso.

Os últimos resultados do SC Braga
Os últimos resultados do SC BragaFlashscore

- O que é que um clube pode esperar de si?

- Contem sempre com alguém que veste a camisola a 100%. Sou treinador, mas acima de tudo sou uma pessoa de trabalho. Acredito que nada acontece por acaso — tudo exige dedicação, análise e preparação. Sou alguém que reflete, estuda e analisa o jogo em profundidade. Gosto de simplificar processos, procurar soluções práticas e encontrar equilíbrio em tudo o que a equipa faz. Para mim, é no detalhe e na consistência que se constroem os resultados.

- Noutro âmbito, que expectativas tem em relação à participação da seleção portuguesa na próxima competição internacional?

- Desejei boa sorte ao Francisco (Neto) para a Liga das Nações — não apenas pelos resultados, mas também pela imagem que Portugal possa deixar.

Sinceramente, acho que o sorteio não foi muito favorável à seleção. No entanto, isso pode jogar a nosso favor: com menos pressão externa, pode surgir a oportunidade de alcançar uma qualificação histórica para a fase seguinte. E se, por acaso, não acontecer, ninguém poderá apontar responsabilidades injustas — o contexto é exigente.

Agora, não tenho dúvidas de que a seleção vai querer fazer uma participação superior. É legítimo, e sei que Portugal tem hoje um grupo de jogadoras mais preparado do que no passado. Dito isto, sendo honesto, este Europeu vai ser duro. Vai exigir o máximo da equipa, vai levar a comitiva lusa aos seus limites, e vai apelar à superação em todos os momentos.

O grupo de Portugal no Euro
O grupo de Portugal no EuroFlashscore