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Gabi Gonçalves: "Estou a moldar a minha mentalidade para chegar ao topo"

Gabi Gonçalves em destaque no Damaiense
Gabi Gonçalves em destaque no DamaienseArquivo Pessoal

O Flash Feminino é a nova rubrica quinzenal do Flashscore, dedicada a destacar as principais protagonistas da Liga Feminina. Neste espaço, traremos entrevistas exclusivas com as jogadoras que brilham nos relvados nacionais. A nossa 20.ª convidada é Gabi Gonçalves, jogadora do Damaiense.

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O início na escola à estreia no futebol sénior aos 14 anos: "Era a mascote do grupo"

- Como é que o futebol aparece na sua vida?

- O futebol surgiu na escola com os rapazes. Nos intervalos, os meus colegas chamavam-me sempre para jogar com eles. Era doida por futebol! No 4.º ano, tive a oportunidade de participar num torneio interturmas. Ficámos em 2.º lugar, marquei alguns golos e, de repente, estava a receber o prémio de melhor jogadora — nem queria acreditar! O meu pai viu tudo, e as pessoas diziam que eu tinha qualidade. Acabou por ser a minha tia a inscrever-me no futebol.

- A família lidou bem com esse seu gosto?

- A minha família aceitou tudo com naturalidade, sobretudo o meu pai. Nunca me proibiram de nada. Entrei para os treinos no Vilaverdense, e o meu antigo mister dizia que eu tinha qualidade e que, se continuasse, podia chegar a grandes palcos. Portanto, o futebol acabou por se integrar na família de forma natural e positiva.

Gabi Gonçalves sobre a mudança para o Damaiense
Gabi Gonçalves sobre a mudança para o DamaienseOpta by Stats Perform, SF Damaiense

- Começou por jogar em equipas maioritariamente masculinas antes de passar para o futebol feminino. Esse início foi importante para desenvolver uma maior capacidade física? Sentia-se bem aceite pelos rapazes?

- Não era só uma questão física — era preciso jogar e pensar rápido. Em algumas equipas, jogar com rapazes foi tranquilo, mas no Bragalona passei por situações difíceis. Diziam que eu não jogava nada, e houve dias em que cheguei a chorar. Mas aguentei. Até que decidi falar com o mister, e as coisas começaram a melhorar.

- Em 2016, 2017, o futebol feminino estava em clara evolução em Portugal. Nessa altura, já acreditava que podia vir a ser jogadora?

- Não, eu jogava futebol simplesmente porque gostava. Não pensava no futuro — só queria jogar, jogar e jogar.

- A Gabi tem a primeira experiência no futebol sénior no Gil Vicente, com 14-15 anos. Como recorda esse momento?

- Fiquei muito na dúvida. Tinha o SC Braga, no feminino, e o Gil Vicente. Fui fazer captações ao Gil, e o treinador insistiu bastante com o meu pai para que eu fosse para lá — dizia que ia jogar nos seniores e que isso me ia ajudar a desenvolver. Do outro lado, o SC Braga tinha nome, era uma referência. Mas a insistência do treinador acabou por resultar, e acabei por aceitar a proposta do Gil.

Foi uma grande oportunidade para me mostrar com vista à seleção. Tive sorte na equipa que escolhi — acolheram-me muito bem. Era a mascote do grupo, e adorei o ambiente. Estavam sempre juntas e protegiam-me em qualquer situação.

- Como era a relação com as mais velhas? Tinha uma colega (Rosa) com 56 anos...

- Recordo sempre de forma muito positiva. Éramos como uma família. Davam-me conselhos firmes, mas eu ainda era uma criança e não tinha um feitio muito fácil, porque não compreendia bem o que era a vida adulta. No entanto, eram sermões valiosos. O futebol estava a evoluir muito, mas, ali, não deixámos de valorizar o que era tradicional. Havia muito convívio.

Gabi estreou-se no futebol sénior com 14 anos
Gabi estreou-se no futebol sénior com 14 anosArquivo Pessoal

"Agradeço por ter tido as pessoas certas ao meu lado"

- Seguiu-se o SC Braga e volta para a formação. Sente que essa mudança pode ter travado a sua progressão de alguma forma?

- Acho que não. Continuei a jogar futebol 11, e o que eu mais precisava na altura era de ganhar técnica. Saltei a formação, e sei que a formação é fundamental para criar uma boa relação com a bola. Conquistei muitas coisas nas seniores, mas hoje sinto que fiz bem em recuar para a formação, porque precisava de aprender os pormenores.

Por ser o SC Braga, os treinos eram muito competitivos, havia mais energia e aquela vontade de chegar mais longe. Foi também importante para o meu crescimento mental. No futebol, não tens o teu lugar garantido; precisas de ter a capacidade mental para conquistar tudo. É nas fases mais difíceis que tens de ter a força para te levantar e encarar a realidade do jogo. Aprendi muito com essa mudança.

- Após dois anos no SC Braga, foi para o Varzim para estrear-se na Liga. Era uma experiência que desejava muito?

- O treinador (Roger Pinheiro) tinha estado no SC Braga e já me acompanhava há algum tempo. Como queria estar no mais alto nível, não pensei duas vezes e assinei. O meu objetivo era jogar na Liga BPI. A adaptação foi boa, especialmente porque havia outras colegas do SC Braga que também foram para lá. Embora a equipa tenha descido, tivemos jogos muito bons e senti que terminei a época com uma evolução enorme.

A posição do Damaiense na tabela classificativa
A posição do Damaiense na tabela classificativaFlashscore

- Nessa fase já tinha noção de que queria algo mais no futebol?

- Sim. A verdade é que já tinha uma ideia do que queria no Gil Vicente, mas aí o "bichinho" aumentou ainda mais. Só queria mais e mais. Tive a sorte de ter um treinador que me motivou imenso e nunca desistiu de mim.

- O Varzim desce de divisão, mas a Gabi continua na Liga, no Vilaverdense, clube da sua terra. Pesou esse fator mais pessoal?

- Na altura, não pensei muito por ser na minha terra, só queria continuar a jogar ao mais alto nível. Além disso, a Liga ia passar a ser única, o que tornou tudo ainda mais emocionante. Acabei por conquistar o meu lugar, embora estivesse muito nervosa no primeiro dia. Mas tínhamos uma equipa muito boa. Entrei com uma mentalidade focada, casa-futebol, casa-futebol. No entanto, tive colegas e um preparador físico que me ajudaram a abrir os olhos para o mundo e a entender o que era realmente o futebol feminino. Foi como uma espécie de "acorda, não sabes nada do que está para vir". Agradeço por ter tido as pessoas certas ao meu lado. Era uma pessoa muito insegura, calada, e esse ano foi de um crescimento enorme, tanto dentro como fora de campo.

- E foram dois anos num clube que hoje é falado pelas dificuldades que atravessa. Sentiu isso durante o tempo em que esteve lá?

- No primeiro ano foi tranquilo, mas no segundo, como era a capitã, é óbvio que tinha de lidar com alguns problemas. No entanto, tive a sorte de ter uma equipa técnica e um grupo de capitãs com quem soubemos lidar bem com a situação. Apesar das dificuldades, todas tinham aquele "bichinho" para jogar. Vendo outros contextos, percebo que foi mais fácil para nós porque tínhamos realmente um grupo muito bom. Lutámos sempre até ao fim, com muita raça e união.

Gabi capitaneou o Vilaverdense
Gabi capitaneou o VilaverdenseArquivo Pessoal

"Já vejo o mundo com outros olhos"

- Seguindo o seu percurso, a próxima paragem foi o Damaiense, a sua primeira experiência no Sul. Como surgiu essa oportunidade?

- Esta oportunidade surgiu graças à época que fiz no Länk (Vilaverdense). Consegui destacar-me individualmente e, no final, a equipa também teve um papel importante no meu sucesso. Senti que as pessoas estavam atentas. Já tinha visto que o Damaiense tinha feito uma boa época e ia disputar a Supertaça, o que foi uma experiência muito boa de se viver.

Quanto à mudança, não foi fácil para mim. Saí de casa e fui conhecer o mundo. Estava habituada à minha zona de conforto e houve dias difíceis. Mas a mentalidade que tinha era clara: se queria chegar ao topo, tinha de começar por algum lado. Estou a moldar a minha mentalidade e a minha força para alcançar esse objetivo. Estou aqui por algum motivo, e sempre que olhava para o percurso até agora, tentava fixar isso na cabeça: se me quiseram aqui, foi porque tinha qualidade.

- Missão cumprida nesse aspeto?

- Sim, ainda há muito a crescer, mas já estou muito melhor. Sinto-me mais tranquila e mais independente. Não queria incomodar os meus pais, embora eles façam tudo por mim...

- Acredito que tenha sido muito difícil para eles...

- Sim, no início eles choravam, porque eu era a "menina deles" e estava sempre com eles. Mas é uma questão de hábito. Acho que a minha missão está a ser cumprida. Já vejo o mundo com outros olhos e levo boas bases, caso um dia tenha a oportunidade de sair do país.

- Ainda faltam duas jornadas para o final do campeonato, mas qual o balanço que já pode ser feito desta temporada do Damaiense? A última época tinha sido muito boa e colocou muitos olhos na vossa equipa.

- Não tivemos o mesmo percurso no campeonato que no ano passado, mas ficámos em 3.º na Supertaça, chegámos às meias-finais da Taça da Liga e aos quartos da Taça de Portugal. Acho que houve um bom progresso nessas competições e sinto que temos uma boa equipa. Talvez nos tenha faltado um pouco de sorte em alguns momentos, mas desde que mudámos de treinador, o grupo ganhou muita motivação. O mister conseguiu ajudar-nos a melhorar a forma como jogamos, e isso tem-nos dado muita força.

- Estão a um pequeno passo da manutenção. É para garantir isso já em Famalicão?

- Não é só por faltar dois jogos; a nossa ideia sempre foi essa (manutenção). Claro que é importante fechar as contas, mas todos os outros jogos também foram essenciais.

- Esta é a sua quarta temporada na Liga. Qual a avaliação que faz à evolução do campeonato português?

- Acho que estamos no caminho certo. Há jogadoras com cada vez mais qualidade, e isso traz mais competitividade. Isso, por sua vez, traz outro nível de futebol para Portugal.

Gabi Gonçalves ao serviço das seleções jovens
Gabi Gonçalves ao serviço das seleções jovensFPF

Do sonho Espanha à Seleção: "Eu quero muito, mas não basta só querer"

- Em 2018, a Gabi foi chamada pela primeira vez à seleção sub-16. Hoje, já é internacional sub-23 e está a poucos passos da seleção principal. Considera este um capítulo fundamental na sua carreira?

- A seleção é sempre o sonho de qualquer jogadora. Estar lá e sentir a responsabilidade de representar o nosso país é algo único. Fui sempre integrando bons grupos e a minha experiência tem sido muito positiva. Tenho tido a oportunidade de ver novas ideias de futebol ao jogar contra outros países.

- Consegue imaginar-se na Seleção A?

- Eu quero muito, claro, mas não basta só querer. Tenho de trabalhar para isso. Não coloco essa pressão em mim. Posso pensar muito sobre o assunto, mas se não trabalhar e não mostrar resultados nos treinos e nos jogos, não vou lá chegar. O meu foco é no que posso fazer agora e, se conseguir corresponder às expectativas do selecionador, ótimo. Temos lá a Bárbara Lopes, do Torreense, que é uma jogadora nova e traz mais esperanças para as outras jogadoras. O meu pensamento é acertar nos treinos e nos jogos.

- Aos 21 anos, como pensa o seu futuro? Ambiciona jogar no estrangeiro?

- Ainda quero crescer e fortalecer o meu nome aqui. É muito cedo para pensar em ir para fora; preciso continuar a evoluir aqui. Este foi o meu primeiro ano fora da minha zona de conforto, e ainda preciso de crescer mais para dar o passo fora. O meu sonho é jogar em Espanha, mas sei que ainda falta muito trabalho, sacrifício e esforço para lá chegar.

- O que a seduz em Espanha?

- O facto de as condições lá serem boas, tanto a nível físico como tático, atrai-me muito. Gosto do toque de bola, da capacidade física e da cultura. Já fui lá de férias e gosto de estar lá. O clima é ótimo, e não sei explicar, mas algo me chama para lá. Desde pequena que quero ir para lá, mesmo antes de ter algum sonho relacionado com o futebol. Se vou conseguir ou não, não sei, mas o trabalho e esforço não vão faltar.

Gabi Gonçalves cumpre primeira época no Damaiense
Gabi Gonçalves cumpre primeira época no DamaienseArquivo Pessoal

"O meu lema de vida é: cair, levantar e tentar"

- Tem alguma referência no mundo do futebol?

- Tenho várias referências. A Catarina Amado, por jogar na minha posição, e a Lúcia (Alves) também. Gosto muito de ver a Tatiana Pinto e a Andreia Jacinto. Tenho acompanhado a Ana Dias lá fora, e ela tem feito épocas muito boas. Além disso, tenho colegas que me ajudaram ao longo do caminho, como a Ema Cruz, que esteve comigo no Vilaverdense e agora está novamente comigo. Também a Cris Vieira, a Malu Schmidt, a Inês Barge... Para além das minhas colegas, também tenho treinadores que marcaram muito o meu percurso, como o (José) Airosa e o Guilherme (Cardeiras), do Länk, que me ajudaram imenso, assim como o próprio Roger (Pinheiro). São pessoas que me marcaram muito ao longo do processo e que nunca me abandonaram.

- Quem contratar a Gabi, o que pode esperar de si dentro e fora de campo?

- Além das características que tenho, como a velocidade e a raça, acho que podem esperar de mim uma Gabi que, em todos os treinos, quer sempre mais. Nunca estou satisfeita, busco sempre trabalho e sou muito empenhada no ginásio. (...) Posso fazer bons jogos, mas revejo sempre as partidas e sou muito crítica comigo mesma. Criei a mentalidade de que só vou parar quando alcançar os meus objetivos. Também podem esperar de mim alguém que está sempre com um sorriso no rosto, pronta para animar o balneário e estar sempre ao lado das colegas.

Os próximos jogos do Damaiense
Os próximos jogos do DamaienseFlashscore

- O que é que a Gabi de hoje diria à Gabi que começou no Bragafut?

- Estou orgulhosa do percurso que tive. Apesar de todas as dificuldades, sempre consegui superar-me. Tive muita força para me levantar em várias situações. Sou resiliente. Mesmo em contextos não profissionais, sempre me comportei de forma a representar o que é ser profissional. O meu lema de vida é: cair, levantar e tentar. Sempre assim.

- O que gostaria que dissessem sobre si no dia em que decidir terminar a carreira?

- Gostaria que se lembrassem do meu jogo, que era uma boa jogadora, tanto dentro como fora de campo. Uma pessoa humilde, trabalhadora, resiliente, que tentava sempre alegrar os outros e criar um bom ambiente em todos os lugares. E, acima de tudo, que se lembrassem de que representei bem Portugal.

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