Acompanhe as incidências da partida
Além de consolidar o projeto de Torres Vedras no principal escalão do futebol nacional, Gonçalo Nunes conduziu o Torreense às conquistas inéditas da Taça de Portugal e da Supertaça.
“Não acontece por acaso nem por sorte. É fruto de um projeto muito bem estruturado e extremamente organizado, com etapas definidas e uma visão clara”, defende.
Em vésperas de reencontrar o Benfica, depois da vitória sobre o Sporting em Alcochete, o treinador voltou a abrir as portas ao Flashscore para uma conversa profunda sobre o projeto que o apaixonou.
“Sinto-me ainda um treinador jovem, muito ambicioso, e continuo com a mesma paixão. Talvez até maior do que antes. (...) Ainda quero fazer muito mais no futebol feminino”, afirma.

"Desde que cheguei a Torres Vedras, tem sido um percurso cheio de momentos de orgulho"
- O Torreense venceu a última edição da Taça de Portugal e iniciou esta época com a conquista da Supertaça. Sente que estes dois troféus mudaram o estatuto do clube no futebol jogado no feminino no nosso país?
Sem dúvida. Conquistar troféus eleva sempre o estatuto de qualquer clube, traz mais visibilidade e respeito. E o facto de a Supertaça ter surgido logo após a Taça reforçou ainda mais esse impacto. São conquistas em épocas diferentes, o que dá ainda maior dimensão ao feito. Naturalmente, isso faz com que os adversários olhem para o Torreense com mais cuidado e consideração. Internamente, também sentimos essa valorização. O clube já tinha uma posição sólida no panorama do futebol feminino, mas, agora, diria que esses dois troféus colocaram o clube noutro patamar.
- E do ponto de vista mais pessoal, o que é que mais o orgulhou nestas conquistas? Foi apenas o resultado final, ou também a forma como a equipa chegou até lá?
Acima de tudo, o caminho. Desde que cheguei a Torres Vedras, tem sido um percurso cheio de momentos de orgulho, marcados por crescimento e transformação. Sempre procurei que a equipa tivesse uma identidade própria. Ou seja, personalidade para jogar e competir com qualquer adversário, sempre com o máximo de respeito.
O culminar desse processo foram as conquistas. Na Taça de Portugal, tivemos um trajeto imaculado, em que eliminámos um adversário muito forte nas meias a duas mãos, chegámos à final em grande forma e vencemos um histórico do futebol nacional. Depois, conquistámos a Supertaça, também frente ao pentacampeão nacional, a equipa mais dominante dos últimos anos.
Por isso, o orgulho não vem apenas dos troféus, mas de todo o caminho percorrido e da evolução que vejo jogo após jogo: uma equipa mais madura, mais confiante e, atrevo-me a dizer, sem querer parecer arrogante, a jogar como um clube grande.

- Aproxima-se novamente o Benfica, e é inevitável recordar essas memórias das conquistas. Apesar de no futebol se dizer que o passado fica no passado, o que é que o Gonçalo e a sua equipa podem retirar desses dois jogos para este novo desafio no campeonato?
São sempre jogos diferentes e competições diferentes. Mas o que retiramos dessas vitórias é, sobretudo, confiança. Cada vez que conseguimos competir, empatar ou vencer uma equipa como o Benfica, ganhamos otimismo e reforçamos a crença das jogadoras de que é possível estar à altura desses desafios. O respeito mantém-se, naturalmente, mas desaparece algum receio ou inibição. Hoje, as jogadoras entram em campo com mais convicção, sabendo que, se estiverem focadas e num bom dia, podem tirar pontos e retirar coisas positivas desses jogos.
Claro que este é um jogo completamente distinto. Ou seja, outra competição, outro momento. O Benfica também mudou: tem uma nova equipa técnica, com mais tempo de trabalho e ideias diferentes, o que se nota na forma como jogam, com e sem bola. Esperamos, por isso, as dificuldades habituais, mas com um Benfica ainda mais consolidado e trabalhado.
- O Torreense chega a este encontro depois de uma vitória sobre o Sporting (2-3), nos descontos. Como é preparar dois jogos desta envergadura com uma semana de trabalho?
Acima de tudo, com trabalho. Tudo passa pelo lado mental e pela continuidade do que temos vindo a construir. Procuramos reforçar a identidade e a personalidade da equipa, que já está muito consciente e preparada para os diferentes momentos que o jogo apresenta.
O foco está no detalhe: dar às jogadoras o máximo conforto - coletivo, individual e setorial -, antecipando o que podem encontrar em campo e identificando também aspetos onde podemos explorar fragilidades do adversário.
Depois, há a responsabilidade natural de quem veste esta camisola. Hoje sentimos uma diferença clara face há dois anos: a equipa entra nestes jogos com confiança e otimismo. Já não é aquela mentalidade de “vamos ver o que conseguimos fazer”, mas sim a de quem acredita que, num dia muito bom, pode efetivamente tirar pontos a equipas como o Sporting ou o Benfica.

"Esta visibilidade é reflexo do trabalho que tem sido feito"
- O Torreense já é, de facto, um modelo fora dos denominados “grandes”, sobretudo pelas conquistas recentes e pelo quarto lugar da época passada. Na última conversa que tivemos aqui no Flashscore, o Gonçalo destacou a importância da estabilidade para o crescimento do clube. Além da estabilidade, que outros elementos considera essenciais para este sucesso?
A estabilidade é, sem dúvida, o pilar principal e deve existir em vários níveis. Mas é essencial que venha acompanhada de crescimento e evolução. O clube precisa de continuar a melhorar em todas as áreas que influenciam a equipa, desde a estrutura de apoio até à organização do dia a dia.
Temos conseguido manter essa base estável, o que é determinante. Neste último mercado, mexemos muito pouco no grupo. As poucas saídas que houve foram decisões das próprias jogadoras, como a da Salomé (Prat), que saiu já perto do início da época para o Benfica. Mesmo assim, soubemos reagir e dar continuidade ao que estava bem.
A estabilidade também se reflete na forma como se tem conseguido fazer crescer a estrutura da formação do clube. A título de exemplo, no último jogo, por exemplo, estreámos como titular a Matilde, uma jovem de 20 anos formada no clube, que respondeu de forma excelente. Isso mostra que o trabalho interno está a dar frutos. O mesmo aconteceu no meio-campo: perdemos jogadoras importantes, como a Samara (Lino), mas conseguimos reforçar com qualidade, como a Ingrid (Konst) e a Nicole Nunes, que têm elevado o nível da equipa.

O Torreense mantém-se fiel à sua génese - crescer de forma sustentada, fazer evoluir quem cá está e estar atento às necessidades para continuar a ser competitivo. As equipas que ambicionam estar perto dos troféus precisam de profundidade e soluções, e é isso que temos procurado construir.
É natural que, com esse crescimento, surjam convites para as nossas jogadoras e uma maior exposição. Temos, inclusive, duas atletas chamadas regularmente à Seleção A (Carolina Correia e Bárbara Lopes), o que é um reflexo claro desse progresso.
Mas tudo assenta na estabilidade, não apenas na continuidade. Mas também na forma como o clube gere os momentos, sejam eles bons ou menos bons. Depois das conquistas, mantivemos os pés assentes no chão, conscientes do caminho que ainda há a percorrer. E, quando os resultados não apareceram, também soubemos manter a serenidade. Não houve alarmismos nem ruturas, e essa consistência tem sido decisiva para o sucesso do Torreense.
- Parece-me claro que se tornou atrativo jogar no Torreense. O clube ganhou credibilidade, tornou-se uma porta para a Seleção Nacional e para a luta por troféus. Sentiu também esse crescimento interno?
Sim, sem dúvida. Essa visibilidade é reflexo do trabalho que tem sido feito e nota-se claramente no mercado. As jogadoras conhecem cada vez melhor o clube, percebem a forma como trabalhamos e reconhecem o caminho que o Torreense tem seguido. Isto não acontece por acaso nem por sorte, é fruto de um projeto muito bem estruturado e extremamente organizado, com etapas definidas e uma visão clara: tornar o Torreense um clube competitivo, capaz de estar entre os melhores do futebol feminino nacional.
Isso, naturalmente, torna o clube mais atrativo, não só para jogadoras, mas também para profissionais de outras áreas que queiram fazer parte deste projeto. Hoje o Torreense é visto como um clube que sabe o que quer, que trabalha com rigor, que tem uma proposta de jogo positiva e uma organização sólida. E tudo isso pesa muito quando alguém de fora olha para nós.

O duelo contra o Benfica: "Podem esperar um Torreense fiel à sua identidade"
- Qual é o balanço que faz das cinco primeiras jornadas do campeonato? A redução de equipas foi benéfica? E o que é que acrescentaram as entradas de clubes como o Rio Ave e o Vitória SC?
Acho que o campeonato está mais competitivo. A entrada de clubes como o Rio Ave e o Vitória SC trouxe outra dimensão à Liga. São instituições com muita história e estrutura no futebol português e isso nota-se, mesmo que ainda estejam a consolidar-se no feminino. Têm condições de trabalho diferentes - o jogo em Vila do Conde, por exemplo, foi um excelente exemplo do que deve ser o ambiente de uma Liga Feminina. Além disso, são equipas que se prepararam muito bem e construíram bons plantéis.
Vemos uma Liga mais estável, em que muitos clubes mantiveram treinadores e jogadoras do ano passado, o que ajuda a dar consistência e competitividade. Essa estabilidade reflete-se na tabela: a diferença entre o último classificado e o terceiro lugar é mínima, o que mostra o equilíbrio e a qualidade que a liga atingiu.
Quanto ao número de equipas, percebo a lógica da redução, mas acredito que devemos, em breve, voltar a crescer. Com novos projetos a surgir e outros a reorganizarem-se, penso que seria positivo regressar a uma liga com doze - ou até catorze - equipas. É fundamental garantir mais jogos, mais ritmo competitivo e evitar longos períodos sem competição, que prejudicam o desenvolvimento das jogadoras e o próprio espetáculo.
Mais jogos significam também mais oportunidades para usar plantéis de forma completa e permitir o crescimento de novas jogadoras. Isso só vai beneficiar a qualidade do futebol feminino português.
- Depois do quarto lugar na época passada, a apenas um ponto da Europa, qual é o principal objetivo do Torreense nesta temporada? A Europa passa a ser uma meta clara para a equipa?
É natural que, depois da época que fizemos, as pessoas nos associem a essa quase "responsabilidade". Mas, internamente, o foco é outro: queremos continuar a crescer de forma sustentada. Somos um clube muito competitivo e ambicioso, desde a direção até às jogadoras, mas não queremos ser um projeto de curto prazo. O nosso objetivo é construir alicerces sólidos para, época após época, estarmos em condições de lutar pelos lugares do topo.
Queremos manter a nossa identidade: uma equipa ousada, com personalidade e capaz de competir com qualquer adversário, em qualquer contexto. Lutamos sempre pelo melhor resultado, e o melhor resultado é ganhar jogos.
Se tivermos oportunidade de ir além do que alcançámos no ano passado, claro que vamos lutar por isso. Mas sabemos que este campeonato está mais equilibrado e imprevisível do que nunca. Há resultados surpreendentes desde a primeira jornada e uma competitividade muito alta.
Por isso, o nosso foco agora está em encontrar a regularidade que ainda nos falta.
- Falando sobre competitividade, já todas as equipas perderam nes início de Campeonato, exceção feita ao Benfica, precisamente o próximo adversário do Torreense. O que podemos esperar da sua equipa nesse jogo?
Podem esperar o mesmo que o Torreense tem mostrado sempre nestes duelos: uma equipa competitiva, corajosa e fiel à sua identidade. Se olharmos para os últimos confrontos, à exceção das meias-finais da Taça da Liga - que ficaram um pouco fora do padrão -, todos os jogos entre nós e o Benfica têm sido equilibrados.
No primeiro jogo da época passada, no Seixal, perdemos por 1-2; depois, em Torres Vedras, empatámos 1–1. Nas meias-finais da Taça da Liga, as circunstâncias foram diferentes: ficámos com dez jogadoras muito cedo no primeiro jogo, o que condicionou tudo, e na segunda mão tivemos de gerir o plantel devido ao calendário e a algumas lesões.
Fora esses dois encontros, temos conseguido competir de igual para igual e discutir o resultado até ao fim. Sabemos que o Benfica, pela sua dimensão e qualidade, parte sempre como favorito, e tem essa responsabilidade. Mas o Torreense nunca virou a cara à luta. Vamos entrar com ambição para tentar discutir cada momento e lutar pelos pontos até ao último minuto.

"Ainda quero fazer muito mais a nível do futebol feminino"
- Na última conversa que tivemos, o Gonçalo falou na paixão pelo treino e pelo jogo. Continua com a mesma paixão depois destas conquistas?
Nós, treinadores, nunca sentimos que o trabalho está terminado. Mesmo quando atingimos um objetivo, pensamos logo no próximo, e no que ainda podemos melhorar e no que queremos ver a equipa fazer melhor, com e sem bola, em cada momento do jogo.
Estamos sempre a desafiar-nos, a procurar novas exigências, e isso começa em nós próprios. Temos de ser os primeiros a dar o exemplo em ambição, rigor e organização. Só assim conseguimos ser exigentes com quem trabalha connosco.
Sinto-me ainda um treinador jovem, muito ambicioso, e continuo com a mesma paixão, talvez até maior do que antes. Porque quando vemos o trabalho dar frutos, quando os resultados se tornam visíveis e palpáveis, isso alimenta ainda mais o nosso fogo interior.
Ainda quero conquistar e fazer muito mais a nível do futebol feminino. Esta paixão não nasceu agora, vem de muitos anos.

- E o que é que aprendeu sobre si, Gonçalo, ao longo deste percurso no Torreense?
Aprendi que o sonho não tem limites. É algo que digo muitas vezes às jogadoras: sonhar é possível, e os sonhos não precisam de rótulos nem de dimensões. A distância entre o sonho e a sua concretização está na crença e no trabalho que colocamos todos os dias naquilo que fazemos. É essa convicção que transforma o que parece distante em algo alcançável.
Também aprendi muito sobre o valor do lado humano. O Torreense é, acima de tudo, um projeto de pessoas e temos um grupo fantástico, com caráter e valores muito fortes. Isso nota-se principalmente nos momentos mais difíceis.
Tivemos fases negativas, como antes do jogo com o Racing Power, depois de uma das derrotas mais pesadas desde que aqui estou. Mas esta equipa nunca se desune, nunca se desculpa nem se desresponsabiliza. Não procuramos culpados externos, olhamos para dentro, identificamos o que falhou e trabalhamos para corrigir. Essa capacidade de reagir, de assumir e melhorar, diz muito sobre o grupo e sobre mim também.
Há um dado curioso: nas conquistas das taças e, agora, na vitória frente ao Sporting, por exemplo, começámos sempre a perder. E, mesmo assim, conseguimos dar a volta. Isso demonstra a resiliência desta equipa.
- Para fechar: o Gonçalo tem dito muitas vezes que é um treinador feliz no Torreense, num projeto em que acredita. Como vê o futuro do clube e o seu próprio futuro?
Acredito que o Torreense tem de continuar exatamente no caminho que tem seguido nestes últimos dois anos. Houve desde o início uma visão muito clara para o projeto, inicialmente pensada a três anos, e que, na minha opinião, deve prolongar-se. O clube tem evoluído de forma sustentada em várias dimensões - logística, recursos humanos, infraestruturas - e é esse trabalho transversal que permite construir algo sólido a médio e longo prazo. Não queremos ser um projeto momentâneo, queremos continuar a crescer e a oferecer cada vez melhores condições ao futebol feminino no clube.
Quanto a mim, tenho contrato por mais dois anos e estou muito feliz aqui. Foi, de facto, um casamento feliz: identifico-me com os valores, com a visão e com a forma de trabalhar do Torreense. Sinto-me realizado e motivado.
Mas, ao mesmo tempo, sou extremamente ambicioso e ainda quero conquistar e viver muito mais no futebol. O meu futuro passará sempre por projetos com os quais me identifique profundamente, como aconteceu aqui. A ligação com o Torreense foi imediata, uma vez que bastou uma conversa para percebermos que estávamos alinhados.
Por isso, no imediato, o meu foco é continuar a contribuir para o crescimento e afirmação do clube no panorama nacional. No futuro, se surgir um desafio que faça sentido - e teria de ter uma oferta e uma ambição superiores às que tenho hoje. Mas estou muito bem onde estou e orgulhoso do caminho que estamos a fazer.
