Acompanhe o Benfica-Torreense no Flashscore
Gonçalo Nunes é uma das principais figuras por detrás da época histórica do Torreense no principal escalão do futebol feminino em Portugal. O treinador, de 49 anos, tem potenciado um plantel jovem, mas altamente capaz de manter níveis de consistência e qualidade elevados - prova disso é a recente chamada da defesa Bárbara Lopes à Seleção.
Em entrevista ao Flashscore, o técnico fala sobre o projeto sólido que encontrou em Torres Vedras e partilha a sua enorme paixão pelo jogo.

"A estabilidade tem sido um fator muito importante"
- O Torreense está a protagonizar a melhor temporada do clube até agora na primeira divisão feminina, desde que subiu ao principal escalão em 2020. O que sente que está a fazer a diferença?
- Há aqui um conjunto de fatores importantes e alguns aspetos essenciais. Em primeiro lugar, a estabilidade: podermos contar com grande parte das jogadoras relevamtes da época anterior. Portanto, demos continuidade a algo que estava a ser bem feito no final da época passada quando iniciámos. Depois, destaca-se a forma como o clube e a sua estrutura apostam e procuram oferecer as melhores condições à equipa feminina. Muitas vezes, não se trata de recursos financeiros, mas sim de recursos humanos alocados ao projeto. E isso acontece de forma muito importante no Torreense. Por fim, tem sido fundamental a nossa capacidade de enfrentar qualquer jogo de forma arrojada.
- Vamos até ao ponto de partida desta sua ligação ao clube: o que mais o seduziu no projeto?
- O que me seduziu e fez aceitar o Torreense foi sentir que é um projeto a médio-longo prazo, não é efémero, que tem orientação e pretende ser um projeto competitivo, com fatores diferenciadores para o que é o futebol feminino em Portugal. Estamos a falar de um clube e de uma administração que oferecem a estabilidade necessária para implementar as condições que contribuem para o sucesso da equipa.
- O Gonçalo tem à sua disposição um plantel muito jovem. Como se consegue que as jogadoras absorvam as ideias e olhem para elas com a confiança que tem sido traduzida em resultados?
- Acima de tudo, o facto de ser jovem é relativo. A experiência, por vezes, não tem a ver com o Cartão de Cidadão. A Carolina Correia, por exemplo, apesar de ser jovem, é uma das nossas capitãs e tem um percurso com alguma experiência que determinadas jogadoras não conseguem atingir ao longo da carreira. Portanto, dentro da juventude que temos, existe uma boa dose de experiência, já com algumas conquistas, e depois há o alinhamento com as nossas ideias. Isso também se deve à qualidade das atletas, que encontram aqui condições para se evidenciar.
O resultado disso reflete-se, por exemplo, na chamada da Bárbara Lopes à Seleção Nacional, que acaba por ser um reconhecimento individual, mas que parte muito do trabalho do coletivo que temos. No fundo, a nossa missão é potenciar o que temos à nossa disposição.

- Fica mais na retina o facto de o Torreense ter sido a primeira equipa a travar o Benfica no campeonato. Ou ter realizado um jogo muito bom contra o SC Braga, apesar da derrota no final. Ou ainda a forma como virou o jogo contra o Sporting. Acredito que isso o deixe naturalmente satisfeito com o trabalho que tem sido feito por si e pela sua equipa técnica, não é verdade?
- Claro que sim. Mas como disse, nada se faz sozinho. Há um conjunto de fatores e de pessoas que têm contribuído para que a equipa demonstre a personalidade que tem mostrado nos jogos. Isto deve-se ao facto de, independentemente do adversário, a equipa trabalhar todos os jogos da mesma forma, procurando ser o mais consistente possível. Queremos que a nossa equipa tenha a capacidade de dar o máximo quando tem a bola. E quando não temos a posse, tentamos perceber e condicionar ao máximo as ligações fortes do adversário e aquilo que poderia fazer a diferença.
Existe um grande foco na tarefa, e acredito que a mentalidade que se trabalha e se incute diariamente aqui é um dos nossos pontos mais fortes. Por exemplo, em jogos como o do Sporting, como se pode perceber, a pressão não está do nosso lado. Só temos ambição e motivação. Ou seja, só temos a ganhar e muito pouco a perder.

"Não queremos ser uma equipa presa a um estilo de jogo padronizado"
- Pergunto-lhe muito diretamente se estava à espera destes resultados quando começou a pré-temporada no clube?
- Podemos ver isso de outra forma: os resultados nunca podem ser especulados, portanto estaria a mentir se dissesse que acreditava nestes resultados, nomeadamente em chegar à meia-final da Taça da Liga ou em vencer o Sporting na sua casa. Claro que trabalhamos para isso, mas a continuidade de jogadoras importantes e a estabilidade no nosso trabalho, como referi anteriormente, acabaram por ser determinantes para o comportamento que temos demonstrado em campo.
Agora, se me perguntasse sobre a capacidade que temos, eu diria que sim, porque é essa a mensagem que procuramos passar às jogadoras desde o início: sermos competitivos em todos os jogos. Podemos não ter os recursos de outros clubes, mas focamo-nos naquilo que somos e na forma como podemos vencer os jogos com o que temos.

- Para quem não está a par daquilo que o Torreense tem feito, quais são os princípios de jogo fundamentais na ideia do Gonçalo?
- Desde que chegámos, falamos muito sobre a palavra proatividade. Ou seja, sermos a equipa que não espera que as coisas aconteçam, mas sim aquela que as faz acontecer. No momento em que não temos a bola, queremos ser proativos na conquista da posse, pressionando sempre mais perto da baliza adversária. Já quando temos a bola, procuramos ter a capacidade de manter a posse em zonas-chave do campo, com todas as jogadoras a perceberem o seu papel e a sua tarefa, desde a guarda-redes até à avançada.
Não queremos ser uma equipa presa a um estilo de jogo demasiado padronizado. Queremos ser uma equipa versátil, capaz de criar em ligação, explorar o espaço, jogar em profundidade ou em largura, conforme o contexto do jogo. No fundo, trabalhamos muito a questão da tomada de decisão e do entendimento do jogo. Somos uma equipa que gosta de ter a bola, com o objetivo claro de chegar à baliza adversária.
- O Torreense ocupa a 6.ª posição da Liga, apenas a quatro pontos do 3.º classificado (SC Braga) e está ainda em competição na Taça de Portugal e Taça da Liga. Quais as metas definidas para o que resta da temporada?
- O nosso grande objetivo para esta época, e que continua a ser o mesmo, não passa por falar muito de resultados ou classificações. Falamos sobretudo do dia a dia e do trabalho. Queríamos fazer mais do que na época anterior. O desafio era somar mais pontos e definimos também o objetivo de estar presentes nas fases de decisão das taças, o que conseguimos. Portanto, o nosso objetivo é simples: procurar fazer melhor do que fizemos no passado.

- Segue-se o jogo contra o Benfica, para a 2.ª mão da meia-final da Taça da Liga. Está difícil (n.d.r. o Torreense perdeu a primeira mão, por 0-3), mas...
- Temos de ser pragmáticos. Em termos de percentagem, as hipóteses são muito reduzidas após o resultado da primeira mão, mas isso não impede que sejamos uma equipa competitiva frente ao tetracampeão nacional. Vamos lutar como sempre lutamos em todos os jogos, em busca de um resultado positivo.
Além disso, é importante lembrar que temos um jogo para a Taça a serguir, com apenas 48 horas de descanso, o que é muito difícil para uma equipa como o Torreense, que não dispõe dos mesmos recursos que outras equipas. No entanto, é o calendário que temos... Embora faça pouco sentido, somos conscientes dessa realidade e vamos dar o máximo, sem nos deixarmos condicionar por isso. O nosso objetivo é sermos o mais competitivos possível.

"Não me vejo, num futuro próximo, a sair desta realidade"
- Qual a análise que faz à Liga?
- Sinto que há uma competitividade maior, não só no Torreense, mas também em outras equipas que têm conseguido apresentar bons resultados. Há uma série de bons conjuntos e bons trabalhos de outros treinadores. A Liga está cada vez mais forte e competitiva, apesar de existir um projeto um pouco desenquadrado, mas, de resto, está mais equilibrada, e onde vemos projetos com 'cabeça, tronco e membros'.
Sinto que as diferenças em relação aos chamados grandes já se sentiram mais. (...) Gostaria também de destacar alguns projetos que começam a aparecer nas divisões inferiores, como o Vitória SC, o Rio Ave e o FC Porto, que me levam a crer que o futebol feminino vai evoluir ainda mais. São projetos com grande responsabilidade para a valorização do futebol feminino, e isso vai beneficiar a nossa realidade.
- Entusiasmado nesse sentido?
- Sem dúvida. Já se sente essa evolução na realidade atual. Acredito que, se fizermos uma análise daqui a três anos, vamos perceber que evoluímos ainda mais, desde que todos continuem a contribuir da melhor forma, em prol do desenvolvimento do feminino, que, em talento, não fica a dever nada aos melhores.

- O Gonçalo cumpre em 2025 a bela idade de 50 anos. Como está a viver este seu momento em termos mais pessoais, tendo ainda em conta que contabiliza sete épocas consecutivas na Liga?
- Vim para aqui por opção, continuo aqui por opção e não me vejo, num futuro próximo, a sair desta realidade. Gosto muito de estar onde estou, de contribuir e de ser um grão pequenino nesta grande areia que é esta equipa e esta liga. É com alegria que vejo os projetos que se têm desenvolvido no futebol feminino, e todos os intervenientes merecem muito mais. Temos o caso recente do projeto Vilaverdense que foge um pouco desse âmbito, e, mais importante que tudo, o que posso dizer é que não se deixe passar em claro uma situação destas. As pessoas merecem muito mais, como disse.
- Convido-o a fazer uma auto-avaliação em torno daquilo que sente que tem dado ao futebol femino. Ou aquilo que tem procurado transmitir.
- Acima de tudo, partilhar conhecimento, particularmente aquilo que é uma paixão muito grande pelo treino e pelo jogo. É isso que tenho feito nos projetos onde tenho trabalhado. Já tive a oportunidade de fazer muita coisa no futebol, ao longo deste percurso de vida, e estou sempre da mesma forma: com muita paixão, partilhando a minha experiência e o meu amor pela competitividade e pelo jogo, tentando ser uma pessoa honesta, frontal e responsável.

Bárbara Lopes chamada à Seleção: "É um alento para todas as outras"
- Trago de novo o assunto Bárbara Lopes para terminar a nossa entrevista. Como o Gonçalo teve a oportunidade de referir, aquela por ser um reconhecimento também para aquilo que tem sido feito pelo Torreense esta época. O que lhe pergunto é o que é que a Bárbara pode acrescentar à Seleção?
- Antes de falar da Bárbara, não poderia deixar de fazer uma pequena nota ao nosso selecionador nacional, Francisco Neto, pelo arrojo de olhar para outros clubes que não os denominados grandes. Acho que esta chamada da Bárbara será também um alento para todas as outras jogadoras, e há mais jogadoras fora dos grandes que merecem acompanhamento e oportunidade. Essa é uma marca importante desta convocatória. Hoje foi ela, amanhã pode ser outra.
Em relação à Bárbara, dentro do nosso balneário, é o culminar de um trabalho coletivo. Certamente, ela estará grata às colegas também, pois só há destaque individual quando o coletivo funciona.
O que pode oferecer? Uma panóplia de recursos que considero muito úteis para qualquer treinador. Para quem teve a oportunidade de ver o jogo contra o Sporting, terá uma ideia mais clara do que é a Bárbara: uma jogadora que pode executar muito bem vários papéis na equipa. Tem cumprido muito bem as suas funções e, em virtude da sua formação, tem uma qualidade técnica muito grande, um conhecimento de jogo excelente, e dá também um acréscimo importante no processo ofensivo. Tem sido uma jogadora extremamente competente. Parece-me inteiramente justa a sua chamada, apesar de eu ser suspeito para falar sobre isso.