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Madalena Marau: "Estamos a construir coisas muito bonitas no Racing Power"

Madalena Marau ao serviço do Racing Power
Madalena Marau ao serviço do Racing PowerArquivo Pessoal
O Flash Feminino está de volta. Esta é uma rubrica quinzenal do Flashscore, dedicada a destacar as principais protagonistas da Liga Feminina. Neste espaço, traremos entrevistas exclusivas com as jogadoras que brilham nos relvados nacionais. A nossa 24.ª convidada é Madalena Marau, defesa do Racing Power.

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O início com Oliver & Benji: "Entrava naquele balneário muda e saía calada"

- Quais as primeiras memórias que a ligam ao futebol?

Em casa, com o meu tio, no pátio dele. Víamos o Oliver e Benji e eu estava sempre a chateá-lo porque queria jogar no pátio.

- Quando percebe que queria jogar num clube?

Comecei no Soccer Cascais, que era muito perto da minha casa. Nada profissional, jogava com rapazes, tinha seis ou sete anos. Depois fui para o Malveira da Serra, que é literalmente onde nasci e cresci. Mas com 13 anos ingressei no 1.º Dezembro, mais a sério, já só feminino. Jogava nas sub-18, mas competíamos contra seniores na segunda divisão. Eu, no meio das mais crescidas.

Marau está feliz no Racing Power
Marau está feliz no Racing PowerOpta by Stats Perform, Racing Power

- Como foi o início com os rapazes e essa mudança para o feminino?

Com os rapazes era tudo muito novo. Havia aquela questão de não passarem a bola às raparigas, mas cedo começaram a ver que eu tinha algumas qualidades interessantes e que não era assim tão diferente deles. Foi uma adaptação natural. No Malveira já olhavam para mim de igual forma. Mas o verdadeiro “boom” foi quando fui para o 1.º Dezembro: percebi o que era competir, jogar a sério, ter objetivos como equipa. Foi totalmente diferente.

- O 1.º Dezembro era o topo na altura…

Cheguei a treinar algumas vezes com as seniores e, na altura, havia grandes nomes que ainda hoje estão no futebol nacional. Era incrível. Com 13, 14 anos, entrava naquele balneário muda e saía calada (risos). No meio das veteranas, fazia o meu trabalho tranquila, e isso bastava.

- Como foi viver isso aos 13 anos?

Cresci muito e aprendi a respeitar as mais velhas. Estava a entrar num meio completamente novo e comecei a perceber que queria chegar à idade delas, fazer disto vida e contribuir para o crescimento do futebol. Acho que tenho vindo a fazê-lo de forma saudável.

- Em 2010, como via o futebol feminino em Portugal?

Eu pagava para jogar, para podermos ter os fatos de treino todos iguais. Parece descabido, mas essa era a realidade.

Marau no jogo do Racing Power contra o Benfica
Marau no jogo do Racing Power contra o BenficaArquivo Pessoal

A pausa para os estudos: "Morria de saudades"

- Durante esse percurso, quando percebe que era possível fazer disto vida? Sendo que aos 17 sofre uma grave lesão…

Na altura estava no CAC e as condições estavam muito longe das de hoje. Era segunda divisão e não se ambicionava ser profissional, ser mulher e viver do futebol. Lesionei-me, voltei e fui para o Estoril, onde percebi que o nível estava a aumentar e que era possível. Na minha geração havia dois caminhos: ou se desistia completamente e se seguia por outras áreas, ou lutávamos, lutávamos e acreditávamos que um dia seria possível.

- Há épocas em que não tem registo…

Sim, uma época e meia. Depois da lesão, regressei, mas fiz uma pausa para dar prioridade aos estudos. No último ano de faculdade ingressei no Estoril, já na Liga, e desde então tenho estado sempre na primeira liga.

- Recorda-se de como viveu esse período de afastamento?

Tive sempre claro que queria ter uma segunda opção, porque a carreira de futebolista, seja no masculino ou no feminino, é incerta. Decidi tirar a licenciatura (em Desporto), terminar os estudos e foi nesse momento que comecei a perceber que era possível fazer vida do futebol, porque começaram a surgir os chamados “grandes”. No Estoril, já na primeira divisão e perto de casa, foi o culminar de muitas coisas. Regressei muito feliz, voltei a ser aposta com o mister Gonçalo Nunes, e esse regresso deve-se muito a ele.

- Como foi voltar?

É como andar de bicicleta: não se esquece. Voltei entusiasmada, cheia de saudades. Ao mesmo tempo, continuava a estudar - estava no terceiro ano da faculdade.

- Como foram os anos que se seguiram, com uma passagem ainda por Espanha?

Entrei no Damaiense, um clube que apostava muito em jogadoras jovens, com uma proposta muito boa para a realidade do feminino. Decidi arriscar, sair da zona de conforto que era o Estoril, também muito pelo mister João Videira, que tinha sido meu treinador no CAC. Depois do Damaiense, surgiu a primeira oportunidade de ser profissional fora de Portugal, em Espanha, onde estive meia época...

- O que aconteceu em Espanha?

Fui para a segunda divisão, onde o nível era superior ao da Liga. Mas prometeram muitas coisas que não cumpriram: não pagavam a tempo, as condições não eram as que tinham sido prometidas. Ainda joguei um jogo da Taça, mas foi a gota de água. Cresci muito como jogadora e pessoa, mas não dava mais. Voltei para o Valadares, na Liga, e foi uma lufada de ar fresco, com um grupo e treinador fantásticos. A partir daí, acho que tenho vindo sempre a subir.

Marau recuperou de duas lesões graves
Marau recuperou de duas lesões gravesRacing Power

O recomeçar após lesão: "Ainda hoje penso no que me foi roubado"

- Vai para o Lank Vilaverdense, faz uma grande época, segue para o SC Braga e sofre uma grave lesão, dez anos depois da primeira, numa altura em que se falava que podia ir à Seleção...

Falo disso as vezes que forem precisas, nem que seja para inspirar outras jogadoras que passem pelo mesmo. É um tema sensível, mas parece que acontece sempre na melhor fase. Vinha da minha melhor época de sempre, estava a dar seguimento a esse trabalho no SC Braga e sabia que podia estar perto da Seleção… e acontece a lesão. Num momento em que estava a crescer.

- Qual foi a reação quando percebeu a dimensão real da lesão?

Estava a fazer a ressonância e soube o diagnóstico. Não dá para explicar. É um cliché, mas só quem passa por isso entende. Foi muito difícil. Houve momentos em que pensei em desistir, que não queria mais. Mas tive as pessoas certas do meu lado, que me ajudaram a continuar. E tive um regresso feliz, com golos, minutos e a certeza de que ainda era possível.

- Sentiu dificuldade em encontrar o foco para se reerguer e regressar?

Duríssimo. Mais do que físico, o mental foi o mais difícil. Na parte física, tive a “sorte” de me lesionar estando num clube como o SC Braga, que tem todas as condições para uma jogadora recuperar a 200% e voltar a ser feliz. Lesionei-me no "sítio certo". Estava há muitos anos longe de casa, da família, a lutar por um sonho, e de repente encontrava-me sem poder realizá-lo. Foi complicado, difícil de gerir, mas tive as pessoas certas ao meu lado. Hoje estou aqui, a lutar pelo meu sonho, feliz, sem desistir.

- Já passou algum tempo. Que lição retirou?

É muito difícil tirar coisas positivas de uma segunda lesão deste calibre, ainda mais tendo em conta o contexto. Já passou quase um ano desde que regressei após a alta, e ainda hoje penso no que me foi roubado. É complicado de gerir. Mas trabalho todos os dias nisso e sigo em frente. Sinto-me felizarda por continuar a viver do futebol e ser uma referência. Tenho uma grande resiliência. É tropeçar, cair e levantar. Sei que sirvo de inspiração para as mais novas, recebo muitas mensagens, e só isso já é gratificante.

- Quando regressa, como passou a encarar o futuro?

Sabia que, quando voltasse, teria de regressar ao meu melhor eu. Mostrar a mim própria e aos mais próximos que era capaz. E a verdade é que consegui recuperar em tempos muito bons. Só tenho a agradecer ao staff do SC Braga pelo trabalho incansável que fizeram comigo.

Marau abraçou novo desafio na carreira
Marau abraçou novo desafio na carreiraRacing Power

Novo capítulo no Racing Power: "Estou em casa e faço o que gosto, estou feliz"

- Fechando o capítulo em Braga, a Madalena muda de vida profissional e volta ao sul, para casa. Como surgiu esta possibilidade?

Depois da lesão, que me afetou muito psicologicamente, sabia que tinha de voltar para casa. Já estava há quatro anos a jogar longe e priorizo muito a família. Desde que saí de casa, o meu objetivo sempre foi regressar, estar perto dos meus e fazer disto vida. Na altura em que saí, não era possível ter isso no sul, então arrisquei e fiz o meu caminho até surgir a oportunidade. O Racing dá-me todas as condições para ser profissional e tenho a certeza de que esta vai ser uma época incrível. Estamos a construir coisas muito bonitas no clube. Para mim é como um sonho concretizado: estou em casa e faço o que mais amo. Todos os dias acordo ao lado da pessoa com quem quero partilhar a vida e vou para o meu “trabalho”, que nem considero trabalho (risos).

- Qual o retrato que fez destas primeiras semanas no clube?

Fui muito bem recebida. Somos muitas jogadoras novas e, sendo sincera, saindo do SC Braga, com o estádio 1.º de Maio e todas as condições que havia, vinha com as expectativas em baixo. Mas estou a ser surpreendida todos os dias pela positiva. Tratam-nos quase como um clube grande, esforçam-se ao máximo. É um clube que, ano após ano, trabalha para se aproximar dos outros. Trabalham muito para nós e por nós. Só tenho coisas boas a dizer.

Racing Power arrancou campeonato com empate
Racing Power arrancou campeonato com empateFlashscore

- Começam a época com um empate frente ao pentacampeão Benfica. O que vos dá? Mais responsabilidade? O que podemos esperar no resto da temporada?

Não é segredo para ninguém: tivemos apenas cinco treinos com o novo treinador. Ele chegou, tentámos adaptar-nos ao máximo às ideias e levá-las para o campo. E foi isso: união. A união fez com que conquistássemos aquele ponto. Defensivamente estivemos muito bem e agora podem esperar um Racing Power a lutar em todos os jogos.

- E em termos de qualidade, como descreve o plantel?

O plantel tem muita juventude, mas também jogadoras com experiência, o que cria um grupo equilibrado. Nós, as mais experientes, tentamos passar a nossa bagagem de jogo, e as mais novas trazem qualidade. Juntando tudo, estamos a formar um grupo muito interessante. Vamos ver frente ao Rio Ave o que conseguimos mostrar.

- O que espera desta época na Liga?

Este ano não vai haver jogos fáceis. Não há aquele jogo em que se pense “este é acessível”. O Damaiense ganhou ao SC Braga, e todos sabemos o que aconteceu à volta desse jogo. Acho que, nestas três primeiras jornadas, ficou provado que vai ser uma liga super competitiva. Das dez equipas, qualquer uma pode acabar em qualquer posição.

- E onde pode terminar o Racing Power?

Adorava e espero que terminemos nos primeiros três lugares. Seria incrível. Claro que temos de ser realistas e olhar para o contexto global, mas tudo é possível.

Marau jogou na seleção sub-23
Marau jogou na seleção sub-23FPF

"Seleção? O objetivo ainda continua aqui"

- O que espera desta temporada em termos individuais?

Espero que seja a época do regresso a sério da Marau, com golos e assistências. Quero que seja como a época que tive no Lank, ou seja, espero voltar a ser consistente.

- E a Seleção continua como objetivo?

Sim, continua. O objetivo está cá. Quero chegar ao nível, manter o nível… Acho estranho quando uma jogadora não tem esse objetivo. Claro que ficou um bocado “morto” com a lesão, mas com o meu regresso acredito que pode ser possível. É um capítulo por escrever.

- Olhando para a Seleção, como encara esse caminho até à possível chamada?

Tenho a sorte de ser pé esquerdo, e isso é sempre positivo. Descobri também no SC Braga que posso jogar a central pelo lado esquerdo. Agora é ver onde pode haver espaço para mim (risos).

- Aos 28 anos, como encara o futuro?

Espero ter ainda muitos e bons anos pela frente. Enquanto o corpo permitir, quero continuar a levar isto em frente e ser feliz como profissional de futebol.

Os próximos jogos do Racing Power
Os próximos jogos do Racing PowerFlashscore

- Olhando para trás, para a Madalena que começou aos 13 anos, com a evolução do futebol em Portugal e no mundo, o que sente?

É um privilégio e, acima de tudo, orgulho de acompanhar e ter feito parte deste crescimento. A palavra é orgulho: olhar para trás e ver o que não tínhamos e perceber que hoje é possível. Muitas jovens de 14, 15, 16 anos já fazem disto vida, e na minha altura isso era impensável.

- Como perspetiva o futuro da modalidade?

Espero que continue a crescer. Claro que com dores de crescimento, mas que a curva continue sempre ascendente e nunca estanque. O caminho tem de ser sempre para cima.

- Para terminar: o que gostaria que dissessem sobre si quando decidir pôr fim à carreira? O que esperas construir, dentro e fora de campo?

Quero que se lembrem de mim como alguém que lutou para que o futebol feminino crescesse. Uma jogadora aguerrida, que lutou pelos sonhos e objetivos, e que acima de tudo cumpriu. Podem lembrar-se das lesões, mas que olhem para mim como uma inspiração, alguém que superou… duas vezes!

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