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O lado sombrio do feminino: "Como se permitiu a inscrição do Vilaverdense é um mistério"

Rita Lang representou o Vilaverdense
Rita Lang representou o VilaverdenseArquivo Pessoal, Flashscore

O protesto das jogadoras do Vilaverdense, no encontro diante o Racing Power (0-7), colocou de novo o foco para aqueles que são os problemas no emblema de Vila Verde. A direção do clube nega a existência de salários em atraso, mas o problema é mais profundo. O Flashscore conversou com duas ex-atletas e ainda com o ex-treinador.

O relógio não parou, mas o foi como se o tempo tivesse parado. As jogadoras do Vilaverdense deram um grito silencioso, ao permanecerem imóveis durante o primeiro minuto do desafio contra o Racing Power (0-7), a contar para a 15.ª jornada da Liga Feminina. 

Uma imagem forte a que faltaram palavras. A direção do emblema de Vila Verde não perdeu tempo a vir a público negar a existência de salários em atraso na equipa feminina, uma dificuldade tornada pública pela imprensa. "Todos os pagamentos foram regularizados de acordo com o previsto", pode ler-se no comunicado.

O fantasma dos problemas voltou. O clube recuperou o verde de esperança no seu emblema após a saída do grupo canadiano LÄNK, que tinha adquirido 90% do capital da SAD em 2020, mas não perdeu o lado sombrio. Uma nova gestão tomou posse, mas a equipa feminina foi o maior exemplo de que as coisas não estavam bem.

Rita Lang esteve três meses em Vila Verde
Rita Lang esteve três meses em Vila VerdeArquivo Pessoal

"Ninguém sabia realmente no que se estava a meter"

O campeonato arrancou a 30 de agosto e nessa altura o Vilaverdense estava apenas a iniciar o seu processo de recrutamento de jogadoras. O clube conseguiu adiar a entrada em competição para o final de setembro e abdicou de participar na Taça da Liga. "Um mistério".

O voto de confiança passado à nova gestão, que garantia que os problemas herdados do passado iriam ser resolvidos a tempo e horas, fez com que o plantel fosse fechado a conta-gotas. O problema é que o relógio nunca marcou as horas certas. 

Rita Lang foi uma das primeiras jogadoras a embarcar nesta nova jornada. A média tinha estado nos Estados Unidos nos dois anos anteriores e "não fazia ideia do que estava a acontecer" em Vila Verde. Depois de uma passagem fugaz pelo Famalicão, assinou pelo Vilaverdense e ficou em "choque" quando percebeu que o clube tinha apenas oito jogadoras e estava bastante limitado em condições de treino.

"Foi um grande choque para mim. Encontrei algo completamente diferente do que me tinham dito. Prometeram-me que iriam trazer mais jogadoras, que iriam fazer todas as mudanças necessárias, que ia ficar tudo bem... É verdade que as jogadoras foram chegando, mas com o tempo percebi que não tínhamos as condições necessárias para evoluir enquanto equipa. Foi realmente brutal", conta Rita Lang, em declarações ao Flashscore.

O testemunho de Rita Lang
O testemunho de Rita LangVilaverdense, Opta by Stats Perform

"Eu até posso tentar entender que há muitas coisas para resolver do passado e que podem estar a tentar recuperar muitas das coisas que perderam... Mas eu só pensava: 'Qual é o objetivo de assumir a equipa feminina se não tens recursos para a apoiar? Por que estão a submeter as pessoas a este tipo de tratamento se não as conseguem tratar de forma adequada?'. Ninguém sabia realmente no que se estava a meter", prossegue.

Os problemas eram transversais a várias áreas. Alojamento, transporte, material de treino, equipamentos... Os chamados mínimos olímpicos exigidos para uma equipa de primeira liga em Portugal não estavam a ser cumpridos. E a resposta era (quase) nula.

"Lembro-me de várias reuniões que tivemos com pessoas do clube e com os investidores e eles acabavam por virar as costas. Faziam como se estivessemos a exagerar e não ouviam o que tínhamos para dizer. Conclusão: não vais realmente melhorar nada ou chegar a algum lado se não estiveres disposto a ouvir as pessoas que fazem parte do clube. E nós fazíamos parte", defende Rita.

"Sinto que as minhas preocupações não foram realmente tratadas ou ouvidas. Até tivemos alguém da Federação a aparecer no nosso clube e a falar connosco sobre o que estava a acontecer. Puderam ser abordadas as nossas preocupações, e partilhámos como nos estávamos a sentir e o que achávamos que precisava de mudar, mas nada mudou. É frustrante quando as pessoas que estão mais acima chegam até ti e dizem 'vamos ajudar', e depois não acontece nada", remata.

Rita Lang começou a temporada no Vilaverdense
Rita Lang começou a temporada no VilaverdenseArquivo Pessoal

"Ainda me devem o mês de novembro"

"Não queria estar lá, mas percebi que tinha de estar". Rita Lang lutou com todas as suas forças contra algo que a levou ao limite. Emocionalmente esgotada, a média pediu a rescisão de contrato no final de novembro, três meses depois de ter chegado ao clube, e sente ao dia de hoje que foi a melhor decisão. Mas o capítulo não está totalmente encerrado.

"Sentia que estava a ser testada para além dos meus limites. Não sabia quanto mais tinha para dar a esse clube, porque estava a receber tão pouco em troca. Foi aí que comecei a pensar que o que eu estava a passar mentalmente não compensava o dinheiro que estava a receber, ou que não estava a receber... Percebi rapidamnete que tinha de sair daquela situação. E foi o que eu fiz, saí", recorda.

"No meu caso, ainda estou à espera do pagamento de novembro, o que é uma loucura, porque já estamos em fevereiro. Isto não é aceitável. Entrei várias vezes em contacto com o clube e perguntei onde estava o meu pagamento. A resposta era sempre mais ou menos esta: 'Ah, isso já passou para além das nossas capacidades, agora está nas mãos dos nossos advogados'", denuncia a jogadora.

"Eu só precisava de sair daquela ambiente, mas, por outro lado, ainda sinto muito pelas minhas companheiras de equipa. Não quero que lidem com as coisas que eu estava a lutar quando também lá estava. (...) Espero que as coisas melhorem e que elas sejam tratadas melhor, porque merecem. Acho que ninguém merece ser tratado da maneira como as coisas estavam a ser tratadas naquele clube", acrescenta.

A forma recente do Vilaverdense
A forma recente do VilaverdenseFlashscore

Rita ficou a par do protesto das suas ex-companheiras através das redes sociais e tem uma mensagem muito clara sobre o assunto.

"Sei que muitas jogadoras lidam com dificuldades mentais no futebol feminino, porque estamos a enfrentar grandes obstáculos. E, num país como Portugal, o futebol feminino não tem a mesma popularidade que o masculino. Mas as coisas não vão mudar se não disserem nada", atira.

"Cresci nos Estados Unidos, onde isto nunca aconteceria. Fui condicionada a entender que este tipo de coisas não está certo, este tipo de coisas não pode acontecer. Depois, vim para uma situação onde as pessoas diziam: 'não podemos fazer nada sobre isso'. Como não!? É bom ver que as pessoas estão finalmente a falar", sublinha.

"Ainda mantenho contacto com algumas colegas e falei com elas depois disto. Elas basicamente disseram-me: 'sim, não mudou muito'", completa.

Íris defendeu a baliza do Vilaverdense
Íris defendeu a baliza do VilaverdenseArquivo Pessoal

"Andava sempre no limite a nível emocional"

Íris Silva começou a temporada com Rita Lang no Vilaverdense, mas também já não faz parte do atual plantel do emblema de Vila Verde. A guarda-redes foi voz ativa contra os problemas, mas também atingiu o limite das suas capacidades.

"Não queria mais fazer parte de uma estrutura que não respeita as suas intervenientes e as pessoas que vieram tentar salvar um projeto que não tinha salvação", explica.

A jovem de 23 anos recorda que só aceitou o projeto por causa do treinador Roger Pinheiro - "uma pessoa que respeito muito" -, mas o primeiro impacto foi revelador das dificuldades que iria ter pela frente. "Tive logo um problema com a questão do alojamento e pensei: 'eu vou-me embora'". Resistiu.

Íris revela que a equipa não tinha, "muitas vezes", campo para treinar ou treinava em duas meias luas atrás das balizas; faltavam equipamentos; não existia roupa de treino apropriada para o frio que se faz sentir em Vila Verde em tempo de outono/inverno; o apartamento onde ficou com mais cinco colegas não tinha inicialmente panelas, pratos e talheres; e que o transporte para o treino também começou por ser um problema. "Deram-me uma carrinha para as mãos que não sei como é que passou na inspeção...".

O testemunho de Íris Silva
O testemunho de Íris SilvaFlashscore

"Andava sempre no limite a nível emocional, porque me via numa situação impossível. Tive várias conversas com o presidente. Tenho muito respeito pelas atletas, que aceitaram um desafio depois de lhes terem dito muitas coisas que não eram verdade. É um desafio impossível, porque não existe nada: apertas, apertas e não sai nada", assegura.

"Eu tive sorte de ser paga, outras não tiveram essa sorte. Tenho conhecimento de atletas que têm dívidas de há 2-3 anos... Portanto, o comunicado deles... Eles sabem que é mentira", atira.

Íris não consegue compreender como é que se permite a inscrição de uma equipa com um histórico de problemas.

"Não consigo compreender. As queixas já existem há muito tempo; esta foi a pior, mas vinham-se acumulando desde anos anteriores, com atletas a enfrentarem processos… Como se permitiu que isto acontecesse é um mistério para mim", justifica.

"Só queria que fossem honestos connosco. A minha ideia era e continua a ser de que a prioridade nunca foi o Vilaverdense feminino. A equipa feminina existia por um objetivo muito claro, que era para tudo o resto existir à volta...", acusa.

Íris Silva deixou o futebol depois da passagem por Vila Verde
Íris Silva deixou o futebol depois da passagem por Vila VerdeArquivo Pessoal

"Saí de consciência tranquila, mas preocupada com as que ficaram"

Íris Silva assume que o futebol faz parte do passado. Virou a página. E só aceitou falar ao Flashscore, não por ela, porque garante que "o meu capítulo está fechado e segui em frente", mas porque não quer que as próximas gerações passem por tudo o que ela passou.

"Estou do lado de todas as atletas e gostava que muitas saíssem da bolha e conseguissem falar. Falo disto, mas não vai mudar para mim. Segui em frente, felizmente a minha situação com o clube está fechada, e tenho outras coisas para fazer na minha vida. Estou a ter alguma paz longe destes problemas todos, mas vem mais gente depois de mim. Há atletas a passar pelo que eu passei e vou achar sempre importante usar a nossa voz, que vai além de nós mesmos. Existem atletas com 15-16 anos a olhar para estas situações e que, quando chegarem aos 22-23, não acharão isto normal e lutarão para que isto não aconteça. Espero que as atletas sejam mais respeitadas", assume.

"Fui aquela que mais lutou para haver mudanças, a que bateu mais o pé. É difícil ter competitividade quando não há nada por trás. Tentei ao máximo das minhas capacidades. Esgotei todas as minhas tentativas. Saio de consciência tranquila, mas preocupada pelas pessoas que ficam lá. Se de fora parece mau, de dentro é 20 vezes pior", destaca.

Clube segue afundado na última posição da Liga, com 14 derrotas em 14 jornadas
Clube segue afundado na última posição da Liga, com 14 derrotas em 14 jornadasFlashscore

Sobre o protesto das antigas companheiras, Íris é muito clara na sua análise: "As atletas não protestam por capricho; Que não se esqueça que há uma tendência para perderem mais do que ganham. É mais um pedido de socorro. 'Por favor, olhem para nós'. É o último recurso de seres humanos que estão cansados e que, todos os anos, passam pelas mesmas situações".

"Todos os anos há as mesmas queixas, problemas e lutas… e não são resolvidos. Havia capacidade para ter impedido que estivéssemos hoje a falar deste problema. Houve uma decisão de não impedir. Uma equipa que desiste da Taça da Liga não pode ser uma equipa capaz de competir", sustenta.

"Assumo sempre as minhas culpas. Não é só culpa dos outros. Eu tomei algumas decisões, algumas das quais podem não ter sido as mais inteligentes, mas estou desiludida com as condições que se oferecem à atleta portuguesa no nosso país. Chegas a um ponto em que já não é digno, ao poderes viver como profissional e não seres paga como tal. O futebol estava a fazer-me muito mal do ponto de vista emocional. O feminino merece mais respeito e dignidade. Lutei sempre por isso nos projetos por onde passei. Nós não somos só peças de xadrez, somos pessoas, com sentimentos, vida e contas para pagar. Quando os clubes não pagam o que deviam ou atrasam salários, tudo é posto em causa", remata.

Roger Pinheiro assumiu a equipa no arranque da temporada 2024/25
Roger Pinheiro assumiu a equipa no arranque da temporada 2024/25Arquivo Pessoal

Treinador Roger Pinheiro incomodou e foi despedido

Roger Pinheiro foi o treinador escolhido pela nova administração para abraçar o projeto Vilaverdense em 2024/25. O técnico foi contactado na última semana de agosto, numa altura em que o clube tinha "zero atletas".

'Vamos começar tarde, mas queremos fazer alguma coisa'. Foram as primeiras palavras que ouviu da boca de quem queria levar o clube para a frente.

Aceitou o desafio de forma "completamente emocional", impulsionado pelo desejo de ajudar uma instituição com pergaminhos no futebol feminino e pela qual sempre nutriu profundo respeito.

No entanto, o que inicialmente parecia ser um caminho promissor alterou-se com a entrada na estrutura do clube de "alguém que não pareceu com a mesma vontade de desenvolver o projeto".

"Foram-se somando as dificuldades, desde o espaço de treino não ser o adequado, às condições estruturais, material de treino e uma série de contingências com as quais fomos lutando para melhorar, porque, no mínimo, precisávamos de ter os básicos assegurados. Pelo menos, para garantir o mínimo de conforto para as atletas, de modo a poderem cumprir com a sua profissão", confirma Roger, em declarações ao Flashscore.

O testemunho de Roger Pinheiro
O testemunho de Roger PinheiroArquivo Pessoal, Opta by Stats Perform

"E acho que me tornei chato ao ponto de eles perceberem que eu era uma pessoa para não continuar no meu clube, porque era chato demais. Precisavam de alguém mais calado, ou pelo menos de alguém para que as coisas corressem sem grandes sobressaltos. E o que percebi é que os três primeiros pilares - dignificar as atletas, a instituição e a competição - não pareceram estar assegurados. E isso levou à rutura, naturalmente", acrescenta.

"As pessoas têm que ter o mínimo de condições para estarem confortáveis no seu dia-a-dia. Pessoas felizes produzem muito mais", remata.

Roger refere ainda que os responsáveis pelo clube, apesar do seu entusiasmo inicial, "não possuíam o conhecimento necessário sobre as exigências das competições", agindo muitas vezes com base em "achismos". Este facto culminou na concretização de uma série de problemas que comprometeram o projeto, tanto a nível de infraestrutura como de apoio emocional às atletas.

E quando os pilares fundamentais definidos pelo próprio – "dignificar a instituição, as atletas e a competição" – se desvaneceram, o caminho tornou-se insustentável, levando, inevitavelmente, à rutura. "A nossa missão era clara, mas quando os compromissos essenciais não se confirmaram, não houve alternativa senão dar o fim a esta etapa", lamenta.

Agora à distância, Roger faz uma análise ao protesto das suas ex-jogadoras: "Aquela imagem é muito forte. Transmitem a ideia de terem desacreditado completamente, porque, se ainda houvesse crença em dias melhores, acredito que aquilo não teria acontecido. Mas, neste momento, não faço parte disso; é apenas a leitura que faço de longe e posso estar equivocado."

Os próximos jogos do Vilaverdense
Os próximos jogos do VilaverdenseFlashscore

O treinador revela ainda que a sua saída "não foi feita" de forma honesta por parte dos dirigentes do Vilaverdense e é taxativo quando confrontado com eventuais incumprimentos salariais: "Não cumpriram com a equipa técnica. Mas o caso está entregue às instâncias legais".

Apesar da experiência difícil, que enquadra nas "dores de crescimento" do desenvolvimento do futebol feminino em Portugal, Roger Pinheiro mantém a esperança de que este episódio sirva de lição e que algo efetivamente mude no futuro.

Fonte ligada à FPF assegurou ao Flashscore que o órgão que organiza a Liga Feminina tem assumido uma postura proativa e de sensibilazação junto do Vilaverdense, mantendo as reuniões semanais com o clube para que sejam asseguradas as condições necessárias às atletas.

O Flashscore tentou contactar a SAD do Vilaverdense por várias vias, mas não obteve resposta até à data de publicação da reportagem.

Reportagem de Rodrigo Coimbra
Reportagem de Rodrigo CoimbraFlashscore