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O início no futebol: "Os rapazes acolheram-me super bem"
- Quais são as primeiras memórias que a ligam ao futebol?
As primeiras são fáceis: jogar à bola com os meus primos, porque sou filha única. Jogava sempre com eles, com o meu pai e com os meus tios. Por volta dos seis anos disse à minha mãe que queria jogar futebol, mas era muito tímida e tinha vergonha e ela dizia-me: "Mas como é que tu queres jogar se tens vergonha das pessoas?" (risos). O meu tio acabou por me levar para o Ponterrolense, aqui perto de Torres Vedras, onde os meus primos jogavam, e foi aí que tudo começou. Dos seis aos doze anos joguei sempre com rapazes.
- Como foram esses primeiros tempos?
Foram muito bons. No início tinha receio de como os rapazes iam reagir, porque uma coisa era jogar com os meus amigos, outra era entrar numa equipa onde não conhecia quase ninguém. Mas acolheram-me super bem, tratavam-me como “a protegida”. Sempre que jogávamos contra outras equipas, defendiam-me. Isso ajudou-me bastante, porque era muito envergonhada, e fez-me ganhar confiança.
Aos doze anos, os meus treinadores criaram a equipa feminina no Torreense, e joguei lá até aos dezasseis. Depois fui para o Sporting durante uma época, regressei ao Torreense, joguei duas temporadas no Damaiense e voltei ao Torreense, que é o clube do meu coração.

- O futebol no feminino estava no início do seu grande crescimento. Foi difícil a transição para o feminino?
Sim, foi um choque, não vou mentir. Jogar com rapazes tinha uma intensidade muito maior, e quando entrei na equipa feminina havia jogadoras mais velhas do que eu, mas com pouca experiência. Eu era das mais novas, mas tinha mais bases. Custou no início, mas com o tempo a modalidade evoluiu rápido. Começaram a aparecer mais treinadores no feminino, trouxe mais tática e organização. Para teres uma ideia, quando comecei nem sabia quem eram as jogadoras da Seleção Nacional. Isso mostra bem como era o cenário na altura. Felizmente, aqui em Torres Vedras foi criada a equipa do Torreense. Era algo que faltava aqui na zona.
- E quando percebest que podia fazer carreira no futebol?
Foi por volta dos doze ou treze anos. Joguei o meu primeiro jogo oficial contra o Fófó e, na semana seguinte, fui chamada para a Seleção Distrital de Lisboa... Nem sabia que existia. Participei em torneios interassociações, e percebi que a Seleção Nacional olhava para esses torneios. Ainda assim, nos primeiros dois, três anos, jogava por diversão.
O clique aconteceu quando fui chamada pelo Sporting. Lá percebi que se eles me queriam, era porque eu tinha qualidade. O Sporting era campeão nacional na altura e percebi que podia fazer do futebol a minha vida.

O maior elogio que Raquel recebe: "Ela transborda Torreense"
- Fica apenas uma época no Sporting e volta ao Torreense, na altura na 2.ª divisão, para ajudar o clube a afirmar-se no panorama do feminino. Como foi esse regresso?
Foi um sentimento difícil de descrever. No Sporting, tive apenas um ano e optei por não continuar, apesar de os treinadores quererem que ficasse. Na altura, havia muita qualidade no plantel - lembro-me da Andreia Jacinto, da Mariana Rosa, da Vera Cid e de muitas outras. Eu até tinha minutos na equipa B e nos Sub-19, mas sentia que precisava de mais espaço para crescer.
O Torreense estava a apostar forte no futebol feminino e convidou-me para voltar. Eu tinha apenas 17 anos e aceitei, porque era um projeto ambicioso, com o objetivo de subir à 1.ª divisão. Além disso, estando perto de casa, com a escola e tudo o resto, fazia sentido. Representar o Torreense, o clube da minha terra, é um orgulho enorme.
- É a jogadora com mais jogos na história do Torreense e vai ultrapassar a centena de jogos esta época. Como se sentes com esse feito?
É um orgulho enorme. Nasci e cresci aqui, e vestir esta camisola tem um significado especial. Gosto de mostrar às novas jogadoras o que é ser do Torreense e de Torres Vedras. Quando ouço colegas dizerem que “a Raquel transborda Torreense”, isso é dos maiores elogios que posso receber. Nunca pensei chegar aos 100 jogos pelo clube, ainda mais mantendo-me no mais alto nível do futebol português. É a cereja no topo do bolo.
- E o que é “ser Torreense” e “ser de Torres Vedras”?
Os adeptos são muito apaixonados pelo clube. Aqui, o Torreense é o maior símbolo da cidade. Um bom exemplo é o Carnaval de Torres Vedras: a cidade pára completamente, mas se o Torreense joga, o Carnaval vai ao estádio! (risos) Isso mostra a ligação enorme entre a equipa e a comunidade. Ser Torreense é ter orgulho na terra e sentir que carregamos o Oeste no peito.

"Hoje em dia, as equipas já olham para o Torreense com mais respeito"
- Na época passada, o Torreense teve a melhor campanha da sua história: 4.º lugar na Liga e campeão da Taça de Portugal. Como explica este sucesso?
Foi uma época histórica a todos os níveis. Conseguimos superar todos os nossos objetivos e expectativas. Focámo-nos sempre competição a competição, jogo a jogo, e isso fez a diferença. Ninguém imaginava o Torreense a conquistar a Taça de Portugal, mas acreditámos. Claro que houve percalços pelo caminho, mas nunca perdemos a mentalidade de querer fazer mais e melhor. O segredo foi a união do grupo e o trabalho diário.
- Depois de uma época tão boa, vai ser difícil fazer melhor?
Sim, vai ser complicado, mas é esse o nosso objetivo: continuar a crescer. Hoje em dia, as equipas já olham para o Torreense com mais respeito, e isso muda muito as coisas. A Liga vai ser mais competitiva, com menos equipas e mais equilíbrio, mas estamos focadas no nosso trabalho.

"Não vamos à Supertaça só para marcar presença"
- A temporada começa logo com a Supertaça contra o Benfica, atual pentacampeão. Como tem sido a preparação?
Temos consciência de que o Benfica é favorito em todas as competições, mas não vamos à Supertaça só para marcar presença. Queremos ser competitivas e criar dificuldades. Reforçaram-se muito bem, têm jogadoras da Seleção Nacional, mas nós também temos qualidade.
A pré-época tem sido exigente, com muitos treinos, jogos e integração das novas jogadoras. O foco é consolidar os nossos processos para chegarmos fortes ao primeiro desafio.
- Sem revelar a estratégia: o que podemos esperar do Torreense na Supertaça?
Uma equipa bem organizada, defensiva e ofensivamente, com cada jogadora a saber o que fazer. Defensivamente, teremos de ser sólidas: o Benfica tem muita qualidade com bola, desde as centrais às avançadas. Com bola, queremos ser fiéis ao que fizemos na época passada: lutar pela posse, ser audazes e não ser passivas. Temos dinâmicas que queremos preservar e fico por aqui para não revelar mais. (sorriso)
- E a nível individual, quais são os seus objetivos para esta época?
Quero ter tantos ou mais minutos do que na época passada e melhorar as minhas estatísticas individuais: mais golos, mais assistências. Mas, principalmente, eu quero que a equipa jogue tão bem ou ainda melhor do que na época passada. Para além disso, tenho o sonho de chegar à Seleção A. Já não posso jogar nos Sub-23, por isso o próximo passo é esse. Se acontecer esta época, perfeito; se não, vou continuar a trabalhar para lá chegar.
- O Torreense já teve jogadoras chamadas à Seleção Nacional. Sente que pode ser a próxima?
Assinava já! (risos) Já tivemos a Bárbara, a Carolina e a Samara a representar Portugal, e isso mostra que o Torreense está cada vez mais no radar da Seleção e já não é aquele sonho distante. Saber que olham para nós é motivador. Se for chamada, será um sonho; se não, fico feliz pelas minhas colegas.
- Há muita qualidade na Seleção para a sua posição.
Sim, existe muita qualidade. Sei que é difícil, mas o sonho é o último a morrer. A competitividade nas minhas posições é enorme e isso faz-me trabalhar ainda mais. Não chega estar a 50%, tenho de ir além dos 100% para competir com quem lá está.

"Sinto-me privilegiada por viver esta fase do feminino"
- Olhemos agora para o campeonato? Com Rio Ave e Vitória SC, a liga fica mais difícil?
Sim. Jogar em estádios com grande massa adepta vai ser duro e isso é bom para a modalidade: traz mais gente, mais conversa, mais visibilidade, mais marketing. É um efeito bola de neve. Com menos equipas e reforços mais equilibrados, a Liga será competitiva do início ao fim. Já não há “elo mais fraco” à partida; tudo se decide em campo. Aproxima-nos do nível de imprevisibilidade do masculino.
- Tem 23 anos. Como vê o seu futuro? Gostaria de ter uma oportunidade no estrangeiro?
Sinto-me privilegiada por viver esta fase do feminino. Sou uma sortuda porque tive a sorte de poder arrancar no feminino ainda com algumas dificuldades e em que ainda não penssava que iria conseguir fazer disto vida. Portanto, quero aproveitar ao máximo todos os anos que ainda tenho pela frente e, claro, tenho ambição. Por muito que o Torreense seja o meu clube do coração, tenho de ambicionar sempre mais. Ou dar um passo acima em Portugal ou experimentar o estrangeiro, que seria muito enriquecedor.

- Do ponto de vista mais pessoal, a Raquel vive um momento muito feliz no Torreense e nota-se que é uma apaixonada pela modalidade. Mas o que eu pergunto é se consegue desligar-se do futebol em algum momento da sua vida?
Consigo, mas passo grande parte do tempo a pensar no futebol. Treinamos de manhã e duas a três vezes por semana há ginásio à tarde; em pré-época há até bi-diários. Estou a estudar Ciências do Desporto na FMH; nem sempre consigo ir às aulas, por isso organizo-me para estudar sozinha e fazer os exames. Vejo muitos jogos, mas de forma saudável. E arranjo tempo para amigos e para a equipa, pois temos um grupo muito unido. Conclusão: sou obcecada, mas sou de uma forma saudável (risos).
- Ainda bem que toca na questão da faculdade. Sabemos que em Portugal as jogadoras ainda não ganham o suficiente para viverem dos rendimentos no pós-carreira. É importante pensar num plano B?
Quando terminei o secundário, aos 18 anos, tive de decidir se continuava a estudar ou se fazia uma pausa para trabalhar e jogar ao mesmo tempo. Optei, desde logo, por estudar. Tinha acabado de chegar à 1.ª Divisão e, na altura, todos sabíamos como eram as remunerações. Era impossível viver apenas do futebol. Sempre tive em mente que precisava de um plano B e escolhi uma área ligada ao desporto, porque essa é a minha paixão desde miúda.
A faculdade prepara-me para um futuro a longo prazo, enquanto, no presente, vivo o futebol. Estar ligada ao desporto e, idealmente, ao próprio futebol, deverá tornar a transição no fim da carreira menos dura, ainda que saiba que haverá sempre um período de adaptação. Esta foi sempre a minha ideia e também algo incutido pela minha família: “Foca-te no futebol agora que és jovem, mas não deixes os estudos.” Infelizmente, ainda é complicado viver exclusivamente do feminino em Portugal; talvez demore alguns anos até ser diferente.
- Vê-se como treinadora no futuro?
Treinadora principal, talvez não. Vejo-me mais como preparadora física ou na área da fisiologia. Não descarto treinar um dia, mas não é o meu foco agora.

"Serei sempre extremamente grata ao Torreense "
- Para terminar: o que gostaria que dissessem sobre si quando decidir pôr fim à carreira? O que esperas construir, dentro e fora de campo?
É uma boa pergunta. Gostava que dissessem que eu era alegria e energia em pessoa. Sinto-me uma privilegiada por fazer o que adoro todos os dias, e tento levar sempre boas vibrações para o balneário e para o relvado, mesmo na pré-época, quando o cansaço aperta, sou aquela que puxa pela equipa.
Quero ser lembrada por isso: pela alegria com que jogo e pelo impacto positivo nas colegas, para lá do técnico e do táctico. Que não seja “aquela com quem quase já ninguém se lembra de ter jogado”, mas alguém que deixou marca. Claro que também quero ser reconhecida como boa jogadora e como a atleta com mais jogos pelo Torreense, isso assenta-me bem.
- E o Torreense: o que representa para si, hoje?
A palavra é gratidão. O clube fez tudo para que o futebol feminino crescesse, sobretudo aqui na nossa região. Serei sempre extremamente grata ao Torreense por tudo o que me deu.
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