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Sara Brasil: "Estou em paz com o meu percurso, tenho dado sempre o melhor de mim"

Sara Brasil em destaque ao serviço do Estoril
Sara Brasil em destaque ao serviço do EstorilArquivo Pessoal, Flashscore
Sara Brasil compete ao mais alto nível em Portugal há mais de uma década e abre o coração ao Flashscore para uma reflexão profunda sobre a sua carreira e a forma como o futebol no feminino está a evoluir no nosso país. Dos sucessos aos problemas salariais cada vez mais presentes no contexto português. Sem filtros.

“Gosto de ser um passarinho livre em campo” 

É desta forma que Sara Brasil descreve a forma como vive o futebol. Solta, criativa, instintiva. Um desabafo que é também uma declaração de identidade.

Começou a jogar futebol com o irmão no terraço de casa, invadindo os seus jogos no intervalo, mesmo que ele morresse de vergonha por ter uma irmã que preferia a bola às bonecas. Hoje, o Carlos é quem mais se orgulha da jogadora em que irmã se tornou.

Num microcosmo de contrastes, Sara fez do seu percurso uma prova de resiliência e coerência. Nunca teve os holofotes dos grandes clubes, e admite que "faltou que um clube de outro patamar acreditasse" nela. Mas isso não a impediu de ser constante, de crescer com cada etapa e de deixar a sua marca por onde passou, mesmo passando por algumas dificuldades.

“Sinto-me realizada. Conquistei as minhas coisas por mérito próprio. E fui sempre eu mesma”. Assim mesmo, sempre, um passarinho livre.

Os primeiros passos foram dados em Felgueiras
Os primeiros passos foram dados em FelgueirasArquivo Pessoal

O início com os rapazes: "Para eles eu era simplesmente a Sara que jogava à bola"

- Quais são as suas primeiras memórias ligadas ao futebol?

- As primeiras memórias que tenho de futebol são de jogar com o meu irmão no terraço de casa. Ele roubava os cones do clube para depois me dar treinos em casa. Essas são mesmo as primeiras recordações que guardo.

Mais tarde, comecei a jogar com os rapazes, lá em Felgueiras. Jogávamos atrás da baliza, porque na verdade não havia muito espaço, e era ali que dávamos uns toques. Mas acho que a memória mais curiosa que tenho é de quando ia ver os jogos do meu irmão. No intervalo, eu saltava para dentro do campo e ele tentava expulsar-me com vergonha. Afinal, a irmã jogava futebol e não andava com bonecas (risos). Hoje já não é assim. Agora tem muito orgulho em mim.

- E quando é que entra pela primeira vez num contexto de clube? 

- Entro muito cedo, com sete ou oito anos, mesmo a jogar com os rapazes. Jogava só por jogar, na verdade nem sabia que era possível uma rapariga jogar com eles. Éramos todos da mesma turma, por isso aquilo para mim era muito bom, muito natural.

- Eles tratavam-na bem?

- Acho que para eles nunca foi uma questão, pois era algo natural, porque eu jogava à bola de forma espontânea, como qualquer um. Nunca houve qualquer tipo de entrave. Se calhar, era mais difícil para os pais do que propriamente para os rapazes. Para eles, desde o primeiro dia, eu era simplesmente a Sara que jogava à bola.

O orgulho de Sara Brasil
O orgulho de Sara BrasilOpta by Stats Perform, Arquivo Pessoal

- Mais tarde entra para o contexto só feminino.

- Tinha doze anos. Foi nessa altura que deixei de poder jogar com os rapazes, uma vez que a partir dos iniciados já não era permitido. Entrei logo num contexto sénior, e aí foi um choque grande. De repente, estava a jogar com mulheres muito mais velhas do que eu. Mas a verdade é que elas acolheram-me mesmo bem.

- Não havia outra jogadora com a sua idade?

- Não, só havia uma rapariga que era um ano mais velha do que eu, e por acaso tínhamos crescido juntas. As nossas mães eram amigas, por isso estávamos sempre juntas. Depois, houve ali uma fase em que nos afastámos um pouco, foi quando eu andava a jogar com os rapazes. Mais tarde, quando entro para a equipa sénior… lá estava ela! E foi tipo: “Uau, alguém para me salvar aqui!” (risos).

Hoje em dia, algumas das minhas melhores amigas são pessoas dessa equipa. Desde o primeiro dia até agora, continuam ao meu lado.

- Eram tempos completamente diferentes ao nível de futebol no feminino por essa altura. Como é que a Sara pensava que poderia ser o seu futuro?

- Acho que, sinceramente, nunca pensei muito nisso. Andava só a desfrutar de tudo. E, na verdade, ainda hoje não penso muito no futuro, porque, se o fizer, isso entristece-me um bocadinho. Não sei bem que passos estamos a dar enquanto modalidade, enquanto caminho. Por isso, sou daquelas pessoas que prefere aproveitar o presente. Nunca pensei seriamente que podia ser profissional. Não, isso parecia algo totalmente impensável. Era uma realidade muito distante, quase irreal.

Sou uma pessoa que gosta de viver o momento. Talvez por isso é que acabo por sentir tanto os clubes por onde passo, porque me entrego, defendo-os até ao fim, sem pensar demasiado no que vem depois.

Sara Brasil sagrou-se campeã no SC Braga
Sara Brasil sagrou-se campeã no SC BragaArquivo Pessoal

"Recebi uma mensagem no Facebook a dizer que não ia continuar"

- Chega à Liga ali por volta dos dezassete, dezoito anos, certo? Ainda se recorda desse momento?

- Sim, sim, lembro-me perfeitamente. Na altura estava no Freamunde e, quando a época acabou, comecei a receber alguns contactos de clubes da Liga. Lembro-me do Valadares e do Vilaverdense, que eram os que estavam mais próximos. E recordo-me bem de estar super indecisa. Só que, não sei porquê, o Vilaverdense chamou-me muito mais a atenção. Acho que foi a forma como falaram connosco… cativou-me logo. E foi isso que me fez ir para Vila Verde.

A partir daí, foi outro choque, ainda maior do que quando passei dos rapazes para as raparigas. Ali já estávamos para competir a sério. O Vilaverdense era uma equipa muito competitiva, e tinha a Xana como treinadora, que era super exigente, super rigorosa. Tanto ela como o Eusébio puxavam muito por nós.

Lembro-me perfeitamente de um treino com o Eusébio em que só podia usar o pé esquerdo. Se usasse o direito, tinha que… encher (risos). Na altura, sofri imenso com aquilo. Hoje em dia, agradeço-lhe muito, porque agora consigo jogar com os dois pés de forma natural. Mas na altura, foi duro. Lembro-me de chegar a casa e dizer: “Ó mãe, eu não quero mais…”. E ela respondia: “Ah, agora vais!” (risos)

- Seguiu para o SC Braga depois de três épocas no Vilaverdense, para o início de um novo projeto. Sentia que estava a entrar num mundo mais próximo do profissisonal?

- Naquela altura, acho que ainda estava longe de pensar em ser profissional. Até porque, com o que ganhávamos - pelo menos o que eu ganhava - não dava. Mas pronto, para a idade que tinha, era mais do que suficiente. Ganhar dinheiro no futebol já era uma loucura. Por isso, estava ótimo.

Foi o mais próximo do profissionalismo possível, dentro do contexto da altura. Tínhamos um estádio, um roupeiro, roupa lavada, podíamos deixar as chuteiras… Isso já era um mundo. E foi aí que comecei a perceber: “Se calhar, até dá para começar a sonhar com alguma coisa.” Mas lá está… eu nunca fui muito de sonhar com isso. Mas foi aí que, pela primeira vez, começou a surgir a ideia de que talvez fosse possível ser profissional cá em Portugal. 

- Essa passagem pelo SC Braga mudou a sua perspetiva em relação ao que viria a seguir na sua carreira? 

- Mudou um bocadinho, sim, mas não muito. Porque depois, a forma como a época acaba e como saio do SC Braga… não foi a melhor. Aquilo que se sonhou durante a época, quando saio, já não é um sonho... É mais um choque de realidade. Não foi uma saída fácil. Senti que foi injusta e, sinceramente, a forma como tudo aconteceu foi surreal. E foi aí que comecei a pensar: “Se calhar, afinal isto não é para mim.” Percebi que jogar futebol só por divertimento, com leveza, era muito mais fixe.

- Não sei se se sente à vontade para falar sobre o assunto, mas recorde-nos o que aconteceu?

- O que aconteceu foi que recebi uma mensagem no Facebook a dizer que não ia continuar no SC Braga na época seguinte. Na altura, estava de férias com colegas, algumas delas com a renovação assinada, e elas começaram a receber mensagens. E eu pensei: “Se isto está a acontecer com elas, que têm contratos assinados, então comigo vai acontecer de certeza.” A única coisa que fiz foi desligar os dados móveis, bloquear o telemóvel e curtir as férias.  Acho que foi aí que me caiu a ficha: “Não, isto do profissionalismo é uma ilusão. Se mesmo com contrato assinado isto acontece… então não, não pode ser verdade.” Foi um momento infeliz. Muito infeliz, mesmo.

- A verdade é que vai para o Vilaverdense, faz uma grande temporada e regressa ao... SC Braga. 

- Quando estou ainda em Vila Verde, é o Miguel Santos que assume a equipa do SC Braga. E o Miguel já tinha sido meu treinador no Vilaverdense. Assim que ele assume em Braga, em janeiro, tenta contratar-me de novo. Mas o Vilaverdense, nessa altura, disse algo do género: “Agora abrimos-te a porta, estás cá há três meses e já queres ir embora?” E eu também não me sentia bem em sair assim.

- Não sentiu o peso do que lhe tinha acontecido no SC Braga?

- Eu sabia que podia confiar no Miguel e queria acreditar que as coisas estavam diferentes. E era, de facto, uma boa oportunidade. Eu sentei-me com o Monarca (diretor do Vilaverdense) e disse: “O que vocês decidirem, eu aceito. Estou feliz aqui, por isso é-me indiferente se fico ou se vou. Se o clube ganhar alguma coisa com a minha saída, ótimo. Se quiserem que eu fique, também ótimo. Não vou ficar triste ou revoltada por saber que o SC Braga me quer. A decisão é vossa - até porque eu sou vossa jogadora.”

Ele disse que preferiam que eu ficasse até ao fim da época, porque sentiam que eu acrescentava valor à equipa. E o Miguel disse: “Não te preocupes. Voltamos a falar em junho.” E assim foi. Em junho, voltou a ligar-me e é nessa altura que regresso ao SC Braga.

Sara Brasil defendeu as cores do Atlético Ouriense
Sara Brasil defendeu as cores do Atlético OurienseArquivo Pessoal

"Faltou que um clube de outro patamar acreditasse em mim"

- Volta ao SC Braga e depois passa por Amora, Ouriense e Famalicão antes de chegar ao Estoril. Como é que viveu esse período da sua vida?

- Eu sou muito de feelings e, acima de tudo, de conversas. São as pessoas que me conquistam. Fui para o Amora pela forma como falaram comigo e o mesmo para o Ouriense. É isso que me move: o que as pessoas acreditam que posso dar ao clube. Se sentem que posso acrescentar, ótimo. Se acham que posso ajudar, é para isso que lá estou. Agora, se for para ser só “mais uma”… aí já não consigo. Sou uma pessoa que se entrega, que vive as coisas com intensidade e não consigo estar num sítio onde sou só mais um número.

A minha cabeça tem que estar a funcionar, tem que estar envolvida. Por isso, para mim, o que faz sentido é estar onde me sinto bem-vinda e onde sentem que posso mesmo fazer a diferença.

- A verdade é que, ao longo deste tempo todo, tem mostrado uma regularidade impressionante. Já são dez anos a jogar na Liga. Quando olha para trás, como é que se sente em relação a isso? Foram dez anos com bom rendimento, em diferentes clubes e contextos.

- Sinto-me realizada. Sinto que tenho feito o meu próprio caminho e que tenho conquistado as coisas muito por mérito próprio, acreditando sempre no meu valor. Não preciso de estar num grande clube para ser eu. E, se calhar, se estivesse, nem podia ser verdadeiramente eu. Por isso, estou em paz com o meu percurso. Estou bem com a minha carreira, com as escolhas que fiz. E sinto-me confortável em saber que, em todos os clubes que representei, deixei o melhor de mim e, provavelmente, o pior também.

Mesmo não tendo passado por grandes nomes do futebol feminino depois do SC Braga, sei que estive em grandes clubes, com grandes pessoas. E essas pessoas tiveram o melhor de mim, sem dúvida.

- Sente que, ao longo do seu percurso, merecia ter tido novamente essa oportunidade? Que havia espaço e mérito para isso acontecer?

- Sinto que sim. Houve um momento na minha carreira em que senti que merecia mais e acho que estas duas últimas épocas mostram isso. Mostram que sou uma jogadora consistente, fiável. Em dez anos, nunca tive uma lesão muscular, nada. Sempre fui bastante regular, e acredito que isso devia ser algo valorizado pelos clubes. Por isso, sim, acho que houve uma altura em que isso podia mesmo ter acontecido. Infelizmente - ou talvez felizmente, não sei - não aconteceu. Para já, não aconteceu.

- Ainda pode acontecer?

- Sim, pode acontecer. A Prieto, por exemplo, chegou ao Benfica com 31 anos, por isso, há sempre espaço para continuar a acreditar. Mas sim, sinto que, em algum momento, faltou que um clube de outro patamar acreditasse em mim. Talvez por causa da imagem, ou de algum preconceito, não sei... Mas sinto, de forma honesta, que poderia ter tido essa oportunidade novamente.

- Sara, há pouco disse uma coisa que ficou na minha cabeça: ‘Consegui ser quem quis ser nos clubes por onde passei. Se calhar, num grande clube, não conseguia ser eu.’ Gostava de pegar nisso e perguntar-lhe: como é que a Sara gosta de ser no futebol?

- Gosto que me deixem ser eu, basicamente. Costumo dizer que gosto de ser uma vagabunda no campo. É essa liberdade, essa forma solta de jogar, que me define.

- Liberdade...

- É isso. Não gosto que me digam: “Tens que jogar ali, ou ali, ou ali.” Não. Eu gosto de jogar ali, ali, ali e ali. Porque, se calhar, naquele dia, o espaço certo para mim não está onde me mandaram estar. E aí, tudo começa a tornar-se muito automático. E quando eu entro nesse registo automático… desligo do jogo com facilidade. É por isso que as minhas melhores épocas foram sempre em equipas onde podia ter alguma liberdade dentro do campo.

No Famalicão, por exemplo, jogávamos com duas avançadas e eu andava muito solta: a outra avançada fixava mais, e eu podia circular, explorar espaços. Agora, no Estoril, tanto joguei à esquerda, como à direita, no meio ou na frente. E isso, dependendo do jogo, dá-me liberdade. Dá-me vida. É isso que eu gosto: de ser um passarinho livre dentro do campo.

Não sei se nos grandes clubes há espaço para esse tipo de liberdade, porque nunca estive nesses contextos. Se calhar há, acredito que sim. Mas também sei que há muito mais rigor, e isso é normal, faz parte. Só que às vezes acho que faz mesmo falta haver mais passarinhos livres no futebol.

O ano passado, no Benfica, havia uma Kika Nazareth que era isso mesmo, um passarinho livre. E olha o sucesso que ela tem. Ainda bem que o tem. Acho que o futebol precisa mais disso: menos automatismos, mais liberdade. Mais pessoas a sentirem o jogo, não só a executarem.

- Numa entrevista ao Record, a Sara disse que nem se considera média, nem avançada... É tipo uma dez, não é? E essa posição, tanto no masculino como no feminino, parece estar em vias de extinção. Achas que ainda há espaço para esse tipo de jogadora no futebol de hoje?

- Sim, agora só jogadores muito específicos conseguem fazer essa posição. Hoje em dia, os “dez” praticamente desapareceram, pois passaram a ser “oitos”, ou então jogam num sistema com dois avançados. E isso está a acontecer precisamente porque o futebol se está a tornar demasiado automático, infelizmente.

- Está a ficar tudo muito formatado.

- Exatamente. E isso vem desde miúdas, até lá acima. Já quase não aparecem fenómenos... Aparece um em um milhão. Mas se calhar, se as jogadoras tivessem mais liberdade desde cedo, apareciam muito mais talentos livres, criativos. Muito mais jogadoras autênticas.

Sara Brasil passou pelo Famalicão
Sara Brasil passou pelo FamalicãoArquivo Pessoal

"Os últimos quatro anos têm sido muito desgastantes"

- A Sara acaba de fazer uma boa época do ponto de vista individual no Estoril, mas não consegue evitar a descida de divisão. Como foi viver este ano de contrastes?

- Infelizmente, falhámos o nosso principal objetivo. Acho que o foco era chegar ao playoff. Acreditávamos que a equipa estava estruturada e preparada para isso. Se conseguíssemos algo mais acima, ótimo, mas o essencial era garantir esse lugar. A verdade é que quebrámos em jogos onde não podíamos ter vacilado. Fizemos uma primeira volta espetacular, mas na segunda volta as coisas não correram tão bem.

Quanto à minha época, tenho sido uma jogadora bastante consistente ao longo dos anos, e os números refletem isso. Não sou uma jogadora de lesões, e é essa regularidade que me tem permitido manter um bom registo, em golos, em assistências, em presença. E aqui no Estoril, mais uma vez, consegui ser aquilo que gosto de ser: um passarinho livre. Essa liberdade deu-me condições para manter um bom nível individual. Fica, no entanto, um sentimento agridoce. Porque, apesar de ter sido uma boa época a nível pessoal, quando olho para o coletivo… o Estoril está na segunda divisão.

- E custa?

- Custa… Acho que só quando sair, ou se assinar por outro clube, ou quando saírem as listas das equipas da próxima época… é que vou conseguir assimilar tudo. Não deixa de ser triste. Principalmente porque acreditámos mesmo que era possível.

- O desfecho desta época muda a forma como encara o futuro?

- Costumo não pensar muito, é verdade, mas acho que este ano quero parar e refletir um bocadinho. Gostava de estar num contexto onde jogasse para competir. Os últimos quatro anos têm sido muito desgastantes, sempre em equipas a lutar para não descer. Quando fui para o Famalicão, acreditei que ia integrar um projeto para andar ali a meio da tabela, ou até chegar a umas meias-finais… Mas infelizmente isso não aconteceu. Agora, gostava de ter uma época mais tranquila. Desfrutar mais do futebol e não estar constantemente a olhar para a tabela, com essa pressão contínua. Porque isso cansa, desgasta muito. O que eu quero mesmo é competir. Sou uma pessoa extremamente competitiva, às vezes até demais (risos). Por isso, para o futuro, é esperar. Ver o que os clubes querem e, acima de tudo, sentir que me querem.

Sara Brasil capitaneou o Estoril-Praia
Sara Brasil capitaneou o Estoril-PraiaArquivo Pessoal

Salários em atraso na Liga: "Há muito mais jogadoras a viver a realidade que eu vivo"

- Fala-se muito em evolução, em crescimento, mas a verdade é que ainda há muitas coisas que não mudaram. Há áreas que continuam paradas, muitos problemas por resolver… O que é que a preocupa mais neste momento?

- Demos um salto, mas não se pensou bem como é que se ia manter esse salto. Como é que se ia ficar lá em cima. E acho que temos mais do que provas de que, na verdade, as coisas não estão assim tão bem. Tivemos o Vilaverdense com salários em atraso. Temos o Estoril ainda com salários em atraso. O Damaiaense também passou por isso e é um clube que, há dois anos, ficou em quarto lugar.

Portanto, sim, houve crescimento. Mas as coisas não estão tão estáveis como deveriam estar. Foi um salto grande, talvez até demasiado rápido, e eu não sei até que ponto é que esse crescimento está mesmo a ser pensado. Pensado está, mas será que está a ser bem pensado? Será que está a ser pensado para todos? Sinceramente, não acredito muito nisso. Porque temos provas concretas de que esse crescimento não está a acontecer de forma equilibrada.

Basta olhar para a Seleção: ora faz algo extraordinário, ora tem os resultados que tem neste momento. Nem sei bem em que modo vamos ao Europeu. Há jogadoras que são chamadas, jogam, e depois no estágio seguinte já não estão. Há decisões que, honestamente, não entendo. Mas pronto... quem está lá é que sabe.

Estoril caiu de divisão
Estoril caiu de divisãoFlashscore

Agora, do meu ponto de vista, de quem vive estes contextos, vejo que as coisas estão a acontecer… mas como estão a acontecer? Isso é que me preocupa. E acho que há muita gente, nos clubes grandes - Benfica, Sporting, SC Braga, Torreense, Racing - que talvez não tenha real noção do que se passa cá em baixo.

Ainda há dias, na apresentação do documentário da Generali e Tranquilidade, pensava nisso. Não sei se, quando as pessoas virem aquilo, não vão ficar em choque com a minha vida… ou com a vida da miúda do Cadima. Essa é a realidade. Essa é que é a realidade do futebol feminino em Portugal. Não é a realidade do Benfica, do Sporting, do SC Braga. Porque há muito mais jogadoras a viver a realidade que eu vivo do que a viver a realidade dos três grandes.

- O que vamos poder ver nesse documentário?

- Vamos ver como é que se chega ao treino. Vamos ver que, além disso, tenho de fazer alguma coisa extra, porque o salário do Estoril não chega. Ou então não é certo. É isso que temos de ver: Uma pessoa que acorda às sete da manhã, deita-se às onze da noite e no meio disto tudo ainda vai treinar. Como é que se pode ser profissional assim, se nem sequer há tempo para descansar? Isto é a realidade. Esta é a realidade de mais de 80% das jogadoras em Portugal. Não é a realidade de quem vai para o clube, toma o pequeno-almoço lá, treina com tudo preparado. Não é assim. Pelo menos, não é assim para a maioria.

- Como é que podemos viver uma situação destas em pleno 2025?

- Em primeiro, acho que é importante dizer isto: a Federação dá ajudas. Isso é uma realidade e toda a gente sabe. Mas para essas ajudas chegarem, primeiro o clube tem que cumprir determinados requisitos. E, para clubes que não têm dinheiro, ou que querem apostar no futebol feminino mas não têm estrutura… isso torna-se muito difícil. Há clubes a fazer contas com dinheiro que ainda não chegou. E quando esse apoio só aparece mais tarde, a situação complica-se.

A profissionalização é bonita no papel. Mas exige capacidade. Exige apoio. A liga espanhola, por exemplo, é profissional, mas tem muito apoio da Federação Espanhola. E teve luta. Uma luta forte por parte das jogadoras. Mas quem é que se uniu? As jogadoras do Barcelona, do Atlético de Madrid, do Real Madrid. Não foram as jogadoras do Levante, do Sevilha ou de clubes mais pequenos. Foram as jogadoras dos clubes grandes. Porque são essas que têm a visibilidade, os contratos, o espaço mediático.

A reflexão de Sara Brasil
A reflexão de Sara BrasilOpta by Stats Perform, Arquivo Pessoal

As jogadoras é que têm que lutar pelas jogadoras. E eu acredito que, em Portugal, temos uma comunidade que se apoia mutuamente, mas também acho que não se tem real noção do que é estar neste tipo de contextos. Não se entende bem o que é viver a realidade fora dos grandes clubes.

- Sente algum tipo de revolta?

- Não é revolta. Não é isso. Fico, aliás, extremamente contente por elas, por quem está nos grandes clubes e tem condições que muitas de nós não temos. Não sinto inveja, nem nada que se pareça. O que eu sinto é que precisamos de olhar para dentro. Nós, jogadoras. Precisamos de olhar umas para as outras. E lutar umas pelas outras. Porque, se não formos nós… não vai ser ninguém.

- Não querendo entrar em muitos pormenores, o que pode falar mais sobre a sua situação?

- Nós avançámos agora para o Sindicato. E eu sei que, se calhar, não devia estar a falar sobre isto… Mas se ninguém falar, será que as pessoas têm mesmo noção da realidade? Ligámos. Procurámos respostas. Mas não tivemos nenhuma. Nenhuma. E eu tenho de continuar a defender as minhas colegas. Andámos a tentar resolver, a insistir, a pressionar. Até que desistimos. Atirámos a toalha ao chão… porque nem sequer nos atendem o telemóvel. Agora recorremos ao Sindicato. E graças a Deus que o temos. Porque, se não fosse o Sindicato, estaríamos ainda mais desamparadas do que já estamos. Temos de agradecer ao Sindicato.

Sara Brasil gosta do papel de treinadora
Sara Brasil gosta do papel de treinadoraArquivo Pessoal

Olhar para o futuro: "Sempre tive o sonho de ser treinadora"

- A Sara é claramente uma pessoa que gosta muito do treino, do jogo, da dinâmica do futebol. Queria perceber: qual é a sua ideia para o futuro nesse sentido? Depois de terminar a carreira como jogadora, quer seguir como treinadora? Já tem isso claro na tua cabeça?”

- Quando me perguntavas sobre o futuro, o meu pensamento é este: eu nunca tive, desde cedo, aquele sonho claro de ser jogadora profissional. Quer dizer… esse sonho foi-se construindo com o tempo. Mas o de ser treinadora… esse esteve cá sempre. Desde miúda que dizia que queria ser treinadora. Estava sempre a dar indicações, a falar, a corrigir. Sempre. Era a única coisa de que eu tinha mesmo a certeza: “Eu quero ser treinadora de futebol.” Se era possível na altura? Não. Mas na minha cabeça, eu ia ser a primeira… e a melhor do mundo.

Sempre quis muito isso e talvez por isso esprema tanto os treinadores que tenho. Se calhar até demais (risos). A última, a Liliana, que esteve aqui no Estoril… coitada, não houve um treino em que eu não dissesse: “Mister, tenho uma pergunta.” Acho que ela se cansou de mim!

Eu gosto de pessoas e acho que um treinador é isso: saber lidar com pessoas. Não estamos a lidar com máquinas que fazem ‘direita’ ou ‘esquerda’ quando se diz. São pessoas e isso fascina-me. Neste momento já estou a dar treinos individuais e, por exemplo, tenho uma miúda do Sporting comigo e dá-me um prazer enorme ver o crescimento dela. Ver o quanto evoluiu ao longo dos meses. E eu gostava de conseguir fazer isso com mais gente.

- Então o sonho de jogadora nunca existiu? 

- Não é que o sonho de ser jogadora nunca tenha existido… Acho que foi um sonho que se foi construindo ao longo do tempo, à medida que fui conquistando pequenas coisas. Agora… o sonho de ser treinadora, esse sim, sempre esteve presente e acho que isso se deve muito aos treinadores que tive na formação. Devia ser uma miúda querida (risos), porque eles gostavam muito de mim e eu estava sempre a fazer perguntas. Desde pequena que perguntava: “Porquê que é assim?”“Porquê que não é de outra forma?” Sempre quis perceber tudo. Sempre quis aprender. Por isso, acho que espremi todos os treinadores que tive ao máximo. Sempre olhei para eles com curiosidade, respeito e vontade de aprender. E é isso que hoje me faz querer, um dia, estar desse lado.

Os últimos resultados do Estoril
Os últimos resultados do EstorilFlashscore

- Então como é que será uma equipa da treinadora Sara Brasil?

- Quero uma equipa que goste de ter bola, que goste de jogar o jogo, de competir o jogo. Não sou apologista de autocarros lá atrás. Sou apologista de, seja contra quem for, jogar olhos nos olhos. Essa é a minha forma de ver o futebol. E se calhar, por isso, às vezes também perco a noção do jogo (risos), porque não sigo muito as regras tradicionais. Mas é assim que eu sou, e é assim que vai ser a minha equipa: uma equipa que joga de frente, com coragem, com ideias pensadas, com organização, mas, acima de tudo, com alma e com vontade de estar dentro de campo. Porque é isso que eu sou. E claro… com uma número dez, certamente.

- Portanto, há espaço no onze para o passarinho livre?

- Claro! Por exemplo, na altura do Guardiola no Bayern, eu gostava muito e ainda gosto, apesar de ele já estar mais velhinho, do Müller. O Müller era um verdadeiro passarinho livre. Lembro-me que o Guardiola punha dez peças no campo e dizia que o Müller podia fazer o que quisesse. A forma como aquilo funcionava era absurda. Incrível. E eu acredito muito nisto: se uma equipa tiver um jogador - ou uma jogadora - com uma cabeça pensante dentro de campo, que esteja sempre ligada ao jogo, essa equipa está muito mais perto de ganhar. Porque tem alguém com capacidade para cronometrar, para antecipar. É quase um treinador dentro do campo. Um verdadeiro adjunto. Por isso, a minha equipa será assim. Ou, pelo menos… nos meus sonhos, ela é assim.

- Por fim, o que gostaria que dissessem sobre si no dia em que decidir terminar a carreira?

- Gostava que as pessoas dissessem que a Sara Brasil foi uma pessoa feliz no campo. Que, quando olhavam para mim, viam felicidade. Felicidade por estar a fazer o que mais gosto. Porque é realmente isso que sinto. No dia em que deixar de sentir essa felicidade, é o dia em que pouso as botas. No dia em que deixar de ter vontade de ir para o treino, vou pousar as botas. Ou, pronto… se me doer muito o corpo, também (risos). Mas, acima de tudo, gostava mesmo que as pessoas lembrassem isso: que a Sara Brasil era felicidade em campo.

- E ainda sente essa felicidade?

- Sinto, muita. Estou de férias, mas a cabeça continua ligada ao futebol. Estou sempre a pensar nisso. Acho que nem sei ter uma conversa sem ser sobre futebol. Às vezes as pessoas devem até cansar-se de mim, porque estou sempre, sempre a falar de futebol (risos).