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Chicharito em queda livre no México: quando o legado se desfaz

"Chicharito" no México
"Chicharito" no MéxicoSIMON BARBER / Getty Images South America / Getty Images via AFP

Elevado a ídolo nacional pela sua humildade e pelo trabalho árduo que o levou às melhores equipas do mundo, o final de carreira de Javier "Chicharito" Hernández está a manchar seriamente essa reputação - dentro e fora de campo - com declarações de teor machista que provocaram a indignação generalizada da Liga MX Feminina.

A idiossincrasia mexicana tem vivido, frequentemente, em estado de negação. Famoso pelas suas rancheras, pelo glorioso tequila e pelo seu saborosamente picante, o México enraizou-se cedo no imaginário mundial como um país profundamente machista, onde os papéis de género estavam rigidamente definidos.

Contudo, apesar de durante muitos anos essa realidade ter sido silenciada e apesar de ainda hoje alguns se recusarem a reconhecê-la, tem sido a visão matriarcal que manteve à tona o melhor de uma cultura aclamada em todo o mundo. Uma cultura que, um dia, se cansou de viver em silêncio e sem o devido reconhecimento.

Entre os vários setores da sociedade mexicana onde as mulheres foram abrindo caminho, alguns mais resistentes do que outros, o futebol profissional feminino conquistou, em definitivo, o seu espaço em 2017, com a fundação da Liga MX Feminina, após várias tentativas genuínas de dar palco às jogadoras.

E enquanto se discutiam formas de permitir que as jogadoras pudessem viver exclusivamente do futebol, sem precisarem de outro emprego, em meio a críticas de um machismo cobarde e dissimulado, o Chivas foi coroado como o primeiro campeão do novo formato da liga. Um símbolo inexorável que consolidou definitivamente a Liga MX Feminina, com uma equipa composta apenas por jogadoras mexicanas a triunfar com grande estilo, construindo uma reputação que, desde então, atraiu atletas de alto nível de várias partes do mundo.

Por isso, quando Javier 'Chicharito' Hernández publicou, há alguns dias, um vídeo onde afirmava que as mulheres "estão a fracassar" e que "têm de aprender a receber e a honrar a masculinidade", para que a sociedade deixe de ser "hipersensível", vários setores da sociedade mexicana juntaram-se ao mal-estar manifestado pela Liga MX Feminina - incluindo jogadoras do próprio Chivas - para condenar as declarações de um futebolista que, ao invés de unir, acabou por surfar a onda de uma ideologia conservadora em crescente ascensão.

Embora o tom usado por Hernández pretenda soar inspirador, o conteúdo do discurso alinha-se com um movimento conhecido como "pílula vermelha", uma corrente que defende que as mulheres têm vantagens injustas nas relações com os homens e que devem regressar ao papel tradicional e submisso de dona de casa.

"Não tenham medo de ser mulheres, de se permitirem ser lideradas por um homem que apenas quer vê-las felizes. Responsabilizá-las pela sua energia também é amá-las", declarou Hernández, antes de apelar a que "encarnem a sua energia feminina cuidando, nutrindo, recebendo, multiplicando, limpando, sustentando o lar, que é o lugar mais precioso para os homens".

Críticas por toda parte

O discurso misógino de Javier Hernández causou tanto alvoroço que até a presidente do México, Claudia Sheinbaum, se pronunciou criticando o futebolista. "Ele tem muito a aprender (com as mulheres)", afirmou a chefe de Estado durante a sua habitual conferência matinal. "Sou mãe, avó, dona de casa e comandante suprema das Forças Armadas", sublinhou Sheinbaum, reforçando que as mulheres podem ser aquilo que quiserem, sem estarem limitadas pelos papéis de género impostos por uma visão machista ultrapassada.

A posição da presidente surgiu após jogadoras do Chivas Femenil manifestarem o seu desagrado nas redes sociais. A pressão foi tanta que o clube acabou por emitir um comunicado, sem mencionar diretamente o jogador, onde classificava o episódio como uma “postura individual” completamente alheia aos valores da equipa, acrescentando que “foram tomadas as ações correspondentes de acordo com o regulamento interno”.

No mesmo tom, a marca alemã Puma, patrocinadora do clube e do próprio Hernández, também se distanciou da polémica, afirmando acreditar firmemente “na igualdade, no respeito e na inclusão”, e esclarecendo que as declarações do jogador, embora não mencionado, “se inserem no âmbito pessoal”.

Foi a própria Federação Mexicana de Futebol que se atreveu a mencionar diretamente Hernández num comunicado oficial, no qual anunciava a abertura de uma investigação contra o jogador. A entidade avisou ainda que, em caso de reincidência, o futebolista será multado e advertido. “Hernández proferiu declarações que promovem estereótipos sexistas, considerados uma forma de violência mediática e que vão contra a igualdade de género no desporto”, lê-se no documento.

Em dois vídeos partilhados nas redes sociais, Chicharito tornou-se uma versão decadente daquilo que um dia representou, um símbolo de esforço, talento e superação que inspirou inúmeros jovens futebolistas a seguir os seus passos. Hoje, as suas declarações foram colocadas no mesmo patamar do seu fraco desempenho no Guadalajara, clube que o acolheu com o respeito que a sua carreira justificava, mas ao qual não conseguiu, nem dentro nem fora de campo, retribuir a confiança e expectativa depositadas nele por adeptos e dirigentes.

Um desfecho que poucos teriam previsto há alguns anos e que lança sérias dúvidas sobre as escolhas pessoais e profissionais que Hernández fez na reta final da sua carreira. Uma carreira que teve, na sua passagem pela Europa, momentos memoráveis e dignos de um dos maiores nomes da história do futebol mexicano, mas que hoje parecem distantes, quase apagados e sepultados por decisões que o afastaram da grandeza que um dia encarnou.