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Pedro Henriques: "Antigo Conselho de Arbitragem fez maquilhagem, é preciso um diretor técnico"

Pedro Henriques foi árbitro durante 20 anos
Pedro Henriques foi árbitro durante 20 anosArquivo Pessoal

Nesta conversa com Vitor Tomé, o antigo árbitro Pedro Henriques fala sobre o que pode vir a mudar com as experiências que serão feitas no Campeonato do Mundo de Clubes e fez duras críticas ao antigo Conselho de Arbitragem, traçando um cenário negro na atual arbitragem Portuguesa.

Com uma carreira na arbitragem portuguesa de 1990 a 2010, Pedro Henriques reformou-se e passou a ser comentador desportivo e formador. 

- Está afastado há algum tempo dos relvados, sente alguma saudade do cheiro à relva, dos cartões no bolso e do apito?

Em primeiro lugar obrigado pelo convite para podermos trocar ideias. Quanto à pergunta, sou normal na vida em geral, pouco saudosista, tenho uma filosofia de vida muito própria, que é se fizeres as coisas com toda a intensidade, vives com tanta vontade que depois quando olhas para trás já não há saudade, porque te entregaste. Obviamente que quem se entrega 20 anos ao futebol, 10 ao mais alto nível, muitas vezes se recorda dos grandes jogos. Como tenho vídeos de muitos jogos que fiz, às vezes até lanço algumas coisas a anunciar onde vou comentar. A transição da arbitragem para o comentário e formação, não me deu um grande corte com o passado e sou sistematicamente convidado para eventos desportivos. Sou embaixador da Play Children, associação que ajuda crianças com problemas oncológicas, e fazemos jogos com antigos jogadores, treinadores, músicos, etc... e vou arbitrar, mato um pouco de saudades. Houve também o campeonato Legends e no ano passado estive como árbitro. Estou continuamente ligado ao futebol e arbitragem, por isso não houve um corte umbilical.

- Qual é a sua opinião do estado atual da arbitragem em Portugal? 

Podemos fazer um rescaldo do momento atual, mas o mais importante é o futuro. A arbitragem não está bem, temos árbitros que não têm a mesma qualidade no topo da pirâmide de há 15 ou 20 anos, garantidamente. Muitos cuidados na vídeo-arbitragem, em que alguém por cima deles vai resolver o problema, temos árbitros que decidem pior e que estão mais longe dos lances, apesar de haver todas as condições para os árbitros serem atletas com excelentes condições físicas, mas decidem a 20 ou 30 metros que não dão sprints. Não conseguem perceber que estar em cima das jogadas significa liderança, um jogador quando olha para trás e vê o árbitro em cima em vez de a 40 metros, dá outra tranquilidade na tomada de decisão.

A gestão de conflitos
A gestão de conflitosArquivo Pessoal

Mas temos de olhar em termos de futuro, este é um momento importante porque o Pedro Proença ganhou as eleições (na Federação Portuguesa de Futebol), há um Conselho de Arbitragem (CA) novo, o antigo fez muito pouco, fez uma autêntica maquilhagem. Quando pensamos num Clássico só há dois ou três árbitros, no meu tempo tínhamos oito ou nove internacionais e outros não-internacionais com todas as condições para fazer esses jogos, sem medo de decidir ou meio de ajuda. Olhando para o futuro, este novo projeto do Pedro Proença, além do novo Conselho de Arbitagem, inclui uma coisa muito relevante. O Luciano Gonçalves está rodeado de uma equipa que trabalha muito, não aparece ali de páraquedas para projetar a sua imagem, o Luís Estrela fez trabalhos fantásticos na Liga e pouca gente o conhece porque também não quer projetar a sua imagem. O futuro passa pela solução apresentada pelo Pedro Proença, de criar um diretor técnico de arbitragem. Não faz sentido teres os mesmos que nomeiam a avaliar e são formadores e técnicos, é isto que o Conselho de Arbitragem faz e é uma confusão do diabo. É o mesmo que um presidente de um clube, além de tratar da burocracia, também tem de treinar os jogadores. Esta divisão é fundamental, é o modelo inglês, ter alguém que se preocupe com a formação dos árbitros e que a mesma seja igual, de norte a sul e desde o distrital ao nacional. Não pode haver esta divisão clara, que no nacional há outras condições e nos distritais e associações com carolice - e se não fossem eles isto nem existia -, que é dar a formação com a competência que têm. Esta é a realidade.

O diretor técnico é fundamental, tem de ser criado até julho ou agosto para entrar em vigor na próxima época, vai ser desde já responsável pela academia de arbitragem. É preciso ter alguém que dê formação com qualidade, não só para marcar penáltis ou foras de jogo, mas na tomada de decisão, capacidade de liderança, gestão de conflitos, gerir bancos e jogadores... temos árbitros irritados e a gritar, sem capacidade para ler o jogo. Mais do que trabalhar a vídeo-arbitragem ou o penálti e fora de jogo, mas as ciências humanas que são fundamentais. Não concedo que um árbitro não seja atleta e isso implica, além do acompanhamento da parte física, mas sobretudo ao nível da nutrição. Temos de ter árbitros atletas, conhecer o jogo, com cursos de treinadores nível 1, há muito para trabalhar. Os árbitros precisam da separação de poderes, o diretor técnico funciona porque tem um papel importante de uniformizar critérios, padronizar a arbitragem distrital e nacional, ter formadores de qualidade em todos os escalões, para os árbitros que estão a começar têm que ser formatados no bom sentido e saber comunicar. Metem os áudios dos árbitros semanalmente, cinco semanas depois já ninguém se lembra, quem dominar a comunicação ganha tudo. No final de cada semana é preciso saber comunicar os casos mais estranhos, mais complexos, sem problemas de comunicar os áudios, fazer declarações através de canais, trabalhar bem esta questão e mostrar a arbitragem por dentro. O diretor técnico será chave.

Há muitos que aparecem por projeção pessoal e ganhar dinheiro, tem de ser alguém que esteja muito por dentro destes assuntos, uma pessoa que tem elaborado planos e projetos, essa pessoa existe. Espero que não façam o mesmo que há nove anos, quando não envolveram essa pessoa. Estou muito à vontade para falar porque não sou eu essa pessoa, sinto-me à vontade para falar, é uma pessoa com qualidade incrível e se for colocada na Federação vai mudar a arbitragem. Daqui a 10 anos, teremos o dobro dos árbitros que foi prometido, teremos mais quantidade e qualidade. Atualmente, a arbitragem vive um momento que não é bom, de pouca qualidade, o VAR é uma ferramenta fantástica, mas de pouca qualidade de quem a opera, árbitros com dificuldade para ler o jogo, estão a grande distância dos lances, não conseguem impor respeito... O setor não comunica, está fechado, leva porrada de todo o lado... O momento não é bom, mas a minha esperança é com este modelo do diretor técnico. 

- O Mundial de Clubes está aí à porta, qual é a necessidade de adaptar o protocolo do VAR ao que vai ser testado na competição? Aproveito também para pedir que nos explicasse o que vai ser testado

Há duas reuniões por ano do International Football Association Board (órgão que rege as regras do futebol), uma delas, a que normalmente é em março ou fevereiro, são propostas eventuais alterações às leis e, ou rejeitam - como aconteceu com o cartão azul no ano passado -, ou aprovam logo porque vêm que é uma mudança fundamental - como as cinco substituições na altura de COVID-19 -, ou como acontece na maior parte dos casos, que é um período experimental - normalmente nas competições de escalões inferiores. A partir daí, com os respetivos relatórios ao final de uma época, volta-se a discutir a circunstância e depois entra em vigor ou não, se for aprovado entra em vigor no dia 01 de julho de cada ano. Como agora, as épocas têm sempre competições a decorrer (Euro, Copa América, Mundial...) e que começam em junho, aplicam logo nessa competição e fica de montra para o que espera cada país nas competições internas.

Pedro Henriques num FC Porto-Sporting
Pedro Henriques num FC Porto-SportingArquivo Pessoal

Posto isto, algumas coisas que estavam em jogo para esta época, é com os guarda-redes. Há pequenas alterações que não têm um impacto visível, mas há três situações com impacto. A primeira é com o guarda-redes: a regra dos seis segundos com a bola na mão, que já existe, se passar esse tempo era punido com livre indireto onde estivesse com a bola. Agora, em média, os guarda-redes tinham 10 segundos e os árbitros não puniam, porque quando o fazia, toda a gente caía em cima do árbitro e por isso não puniam. No futsal, a reposição do guarda-redes são quatro segundos para o fazer, resolveram isso com o árbitro levantar o braço para fazer a contagem, assim ninguém o chateia porque a contagem é visível e é isso que vai ser importado para o futebol. Vão ser dados oito segundos no futebol, os árbitros serão obrigados a fazê-lo e o guarda-redes tem de se livrar da bola. E como será feito? O árbitro faz uma contagem mental dos primeiros segundos e quando levantar os dedos, faz os últimos cinco segundos. O guarda-redes está a ver e vai punir a situação com um pontapé de canto, em vez do livre indireto, que iria obrigar a fazer barreira e gerar confusão, o que levaria a perder-se mais tempo. A partir do momento em que se começa a fazer a contagem física, nunca mais houve um guarda-redes que não se tenha livrado da bola dentro desse tempo. Se houver uma média de 10 segundos a mais em cada perda de tempo e se houver 30 - são mais - ações dos guarda-redes com bola na mão, isso são cinco minutos que se ganham em termos de jogo jogado. Esta regra vai passar para o nosso campeonato também

Outra situação que vai ser testada, mas não vamos ter ainda nas principais competições (porque implica um custo financeiro), são as chamadas bodycams para os árbitros. É dissuasora porque se o jogador o ofender - ou o próprio árbitro ofender o jogador -, vai ser possível ouvir e criar uma relação mais respeitosa na realidade. Essa câmera pode ser utilizada para imagens do jogo, mas também para situações de processos. Vai diminuir os conflitos com os jogadores, principalmente nos bancos quando se vai ao monitor do VAR que está toda a gente aos gritos e aos saltos. Vai demorar o seu tempo a ser aplicado nas competições internas por uma questão de adquirir o material.

A última questão, já foi vista no último Mundial-2022, que é a de só o capitão de equipa poder falar com o árbitro em certos e determinados lances. Vai ser eficaz, juntamente com a bodycam. No Mundial correu bem, porque toda a gente não queria ser punida e os jogadores cumpriram, quando se importou isso para as competições nacionais, resultou numa jornada ou duas, depois foi um deboche total. Nem os árbitros faziam cumprir, nem os jogadores se lembraram disso. Além disso, o próprio capitão tem a responsabilidade de retirar os jogadores dali. Isto vai ser posto em cima da mesa para as federações levarem isto a sério, no Mundial de Clubes vai correr bem, mas nas competições nacionais espero aconteça o mesmo. Estas são as três mudanças mais visíveis nas regras de jogo.

 

- Fez muitos jogos, mas certamente houve um qual o tenha marcado mais...

Tive vários jogos relevantes, à medida que fui subindo de escalões, finais de taças e assim. Sobretudo no futebol profissional, houve quatro jogos que marcaram bastante a minha carreira. A final da Taça de Portugal de 2002/2003, o FC Porto de Mourinho, com aquela equipa fantástica que ganha a Taça UEFA e, na época seguinte, ganha a Liga dos Campeões. Esse jogo é mítico por ser a Taça de Portugal, independentemente do clube, ir ao Jamor é único para qualquer árbitro. Já em 2005, o jogo do título, na última jornada, o Boavista-Benfica, o Benfica precisava de um ponto para ser campeão, já não o era há nove anos, com o Trappatoni como treinador, é fundamental e importantíssimo porque era o jogo do título, o FC Porto precisava de ganhar à Académica no Dragão. O Benfica empatou 1-1, o FC Porto empatou, foi um jogo fundamental e que me correu bem. 

Pedro Henriques num Sporting-Benfica
Pedro Henriques num Sporting-BenficaArquivo Pessoal

Depois, a estreia num Benfica-Sporting, é sempre marcante, qualquer árbitro sonha em fazer um Clássico, correu-me bem também, foi em 2005/06. Se não estou em erro, o Sporting ganhou na Luz, foi um jogo importantíssimo para mim, correu-me bem. Destaco ainda, em 2006/07, numa época muito boa para mim, tenho dois jogos que decidem títulos num espaço de um mês, um Benfica-Sporting e o FC Porto-Sporting e este último, na minha primeira vez num Clássico com o FC Porto, mostrei apenas um cartão amarelo, o Sporting ganhou no Dragão e já não ganhava lá há imenso tempo. É um ano em que o título cai para o FC Porto, com um ponto de diferença para o Sporting e o Sporting com um ponto de diferença do Benfica, estava tudo engalfinhado perto do fim, se cometesse um erro iriam dizer que a culpa era minha. Estes foram os momentos mais importantes na minha carreira.

- Para finalizar, o facto de ter sido militar ajudou na arbitragem?

Eu diria que sim, fui militar durante 27 anos e quando comecei na arbitragem já tinha 25 anos, hoje em dia é difícil começar com essa idade e chegar à primeira liga. Cada vez querem árbitros mais jovens, mas a arbitragem tem muito de maturidade e experiência. Ser militar ajudou-me por causa da base que é a regra. Fiz a base militar, fui oficial do quadro, desde cedo temos horários para tudo, especialmente na fase de formação, que é muito rígida e levas isso para a vida. Chegar a horas, ter rigor, disciplina, distinguir o que é sério do que não é, o fundamental do acessório, gostar de treinar, a motivação, tomada de decisão, liderança... No fundo tem parecenças com ser árbitro.

No fundo, ser árbitro é gerir conflitos, ter capacidade de leitura para saber quando é para ser rígido ou quando fazer um sorriso, a liderança, a motivação. ter componente física que te acompanhe, a imagem, o músculo... O facto de ter essa profissão, mesmo em campos da terceira ou segunda divisão, ajudava a criar uma imagem pela positiva de alguma disciplina e respeito, tirei algum partido disso. Mas os valores que adquiri como militar, e trouxe para a minha vida pessoal, trouxe também para a arbitragem. Isso ajudou. Não quer dizer que não existam os mesmos valores noutras profissões. Fui para academia militar em 1985, com 11 anos de separação da guerra colonial, havia ainda os meus formadores e instrutores que eram capitães de Abril, havia uma atitude que ainda estava presente.