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Exclusivo com Gaspar: "O Jorge Costa ensinou-me a ser um líder"

Gaspar, antigo jogador do Rio Ave
Gaspar, antigo jogador do Rio AveArquivo Pessoal, Flashscore

Gaspar Azevedo, ex-jogador de FC Porto, Rio Ave, entre outros emblemas do futebol português, abre o baú das memórias numa conversa intimista com o Flashscore. Entre histórias de balneário, momentos marcantes e lições aprendidas dentro e fora de campo, o antigo central recorda um percurso recheado de desafios e conquistas. A entrevista, conduzida por Vítor Tomé, revisita o passado e fala do presente, que passa pelo comentário desportivo e por uma escola de formação com o seu próprio nome.

- Como começou a sua ligação ao futebol?

- Começou como qualquer outra criança: gosto pelo futebol, estar com os amigos, todos com o mesmo gosto. A partir daí, aos meus sete anos, no futebol de escola, transportado depois para o Trofense, nada a ver com o pensamento de ser jogador de futebol. Coisa muito simples de uma criança normal em relação a todos.

- Que memórias guarda da temporada 1997-98 no FC Porto, quando conquista o campeonato e a Taça, a chamada dobradinha?

- Se é verdade que o Trofense me deu ferramentas e a oportunidade de ser jogador de futebol, o Vitória FC e o Tirsense abriram-me as portas da Liga Portugal, o mais alto nível do futebol em Portugal, o Vitória FC deu-me a continuidade e a afirmação, o FC Porto, nessa época, deu-me a possibilidade de saber o que era conquistar algo. Isso ficará para sempre na minha memória. Ver a Avenida dos Aliados completamente cheia de adeptos do FC Porto, com a emoção à flor da pele, ter esse privilégio, que poucos têm, guardo na minha memória e vai perdurar para toda a vida esse sentimento e alegria, que é difícil de explicar por palavras, por muito que tente. Para se ter verdadeiramente uma noção, só mesmo vivido. Felizmente, tive a felicidade de ter este sentimento.

- Como era o ambiente no balneário do FC Porto naquela altura? Alguma história curiosa que possa partilhar?

- O ambiente era fabuloso, era um ambiente saudável. Dentro do campo, no treino, lutava-se para se ser titular, mas com a amizade e foco no coletivo, porque só assim se conseguia ser campeão. Isso construiu-se desde cedo. Se houvesse uma zanga no treino, não valia a pena pensar em mais nada: toda a gente teria de ligar para as suas mulheres ou família e dizer que já não iria almoçar. Ou seja, íamos todos almoçar em equipa e depois, à tarde, mesmo que não tivéssemos treino, era marcado um treino para se fazer as pazes entre elementos. Era um treino muito engraçado e motivador. Também tínhamos as nossas chamuças e o nosso Guaraná depois do treino, ficávamos na conversa, a contar anedotas, a partilhar experiências e também a falar do campeonato, dos jogos, e era assim que o tetracampeonato nasceu. Não foi desse ano, mas de anos anteriores; também foi assim que o pentacampeonato, único em Portugal, se conseguiu. Foi com essa amizade e conexão. Estávamos em casa e tínhamos sempre uma conexão à equipa.

Gaspar venceu a Liga e a Taça com o FC Porto
Gaspar venceu a Liga e a Taça com o FC PortoArquivo Pessoal

"Jorge Costa ensinou-me a ser um líder"

- Recentemente, perdeu-se Jorge Costa, que foi seu companheiro de setor e balneário no FC Porto. O que recorda com mais saudade dele?

- A notícia caiu-me como uma bomba. Não que tivesse uma ligação de amizade - tenho amizade com outros jogadores do FC Porto, também fruto da proximidade ou dos Legends do FC Porto -, mas caiu como uma bomba. Não passei bem esse dia, passei mesmo mal. Custou-me a digerir pela idade, pelo que partilhámos como um todo e, depois, como portista, pelo legado que ele deixou. Por muito que se diga que as pessoas passam e o clube fica, o que é verdade, um clube é aquilo que as pessoas fazem, e o Bicho foi um desses. Essas histórias de que acabei de falar eram ele próprio que tinha esse incentivo e fazia essas coisas. Era para ir almoçar e acabou, nada a dizer. Fazíamos a praxe a jogadores novos também.

Gaspar esteve duas vezes no Alverca
Gaspar esteve duas vezes no AlvercaArquivo Pessoal

-A mim custou-me porque tivemos uma conversa pouco tempo antes. Uma conversa entre ex-colegas a reviver essas memórias do passado, a falarmos das tais chamuças, do bacalhau com as batatas. A mim custou-me bastante. Não haja dúvida de que o Jorge, a mim, enquanto pessoa e também como jogador, deu-me bagagem. Aprendi muito com ele e ensinou-me o que é ser um líder. Um líder não é aquele que aponta, é aquele que faz e que diz 'faz isso', e se a outra pessoa diz que não faz, ele diz 'então deixa estar, não faças, eu faço'. O Bicho era muito isso. Toda a equipa sentia isso. Ao lado, sentia que tinha ali uma pessoa pronta a ajudar-me e a equipa toda estava com tranquilidade, sabendo que, se falhassem, estava lá o Bicho para os salvar, sabendo que, pelo meio, iam levar uma dura. Pessoalmente, guardo muito boas recordações. Ensinou-me bastante.

"O Rio Ave é o meu outro amor"

- No Rio Ave, viveu alguns dos melhores momentos da carreira. O que mais o marcou em Vila do Conde?

- O Rio Ave é o meu outro amor, por assim dizer. Posso dizer, com a devida comparação, que tenho dois filhos, o Bernardo e o Miguel, que são gémeos, e é perguntarem qual é que eu gosto mais. É exatamente igual entre FC Porto e Rio Ave. O FC Porto deu-me a ribalta do futebol português, o Rio Ave deu-me a estabilidade profissional de que necessitava e deu-me, acima de tudo, tranquilidade. Passei por muitos clubes com dois, três, quatro anos de contrato e, ao fim de um ano, já estava a pedir para sair ou iam-me buscar porque eu já tinha conquistado o meu espaço. Estava a sentir-me confortável e queria outro desafio: ir para um clube onde os defesas-centrais estavam confortáveis, e para mim era um desafio ir para lá lutar para ser titular. No Rio Ave aconteceu isso.

- Na altura, o Rio Ave não ficava cinco anos na Liga Portugal e esse foi o meu desafio, e consegui fazê-lo. Mas aquela subida de divisão… não fosse o Chidi a falhar o golo, no período de compensação, no jogo da Feira… se marcasse, éramos campeões. Ficou esse amargo de boca, mas a subida de divisão do Rio Ave foi o ponto alto para mim. No ano anterior, tinham morrido na praia e o fantasma pairou sobre todos. Aos 86 minutos, não subíamos de divisão e, passados quatro minutos, tínhamos subido de divisão e com a possibilidade de sermos campeões. Isso, para mim, foi fabuloso, uma alegria imensa.

Escola de Formação Gaspar Azevedo
Escola de Formação Gaspar AzevedoArquivo Pessoal

"A escola era um sonho que tinha há muito tempo"

- Tem uma escola de formação com o seu próprio nome. É um projeto de vida?

- A escola, que não deixa de ser um clube, surgiu por três bases. Era um sonho que eu tinha há bastante tempo. Sonhava com uma escola de futebol diferente das demais, focada na formação de jogadores de futebol, obviamente, mas, acima de tudo, com futebol para todos, independentemente de tudo: tivesse jeito para jogar, tivesse problemas físicos, mentais, etc. Eu gostava de ter essa escola com um caráter social muito forte, sabendo que, se tivesse 10 vagas, as 10 primeiras crianças a chegar eram aquelas que ocupavam essas vagas e não pela qualidade futebolística, mas sim porque é futebol para todos. Tinha esse sonho e as coisas acabaram por acontecer.

- Depois, aliado ao sonho, tinha a parte de ter uma associação onde eu também pudesse puxar os meus filhos para lá e, assim, estar mais tempo com eles e partilhar o grande amor da minha vida, que é o futebol. Foi por aí que nasceu a escola de futebol com o meu nome. Pensei: 'porque não utilizar o meu nome?'. Utilizar os contactos, as minhas conquistas e tudo o que está à volta, puxar para dentro de um clube e fazer com que as pessoas olhem para o nome e para o projeto. Poderia chamar-se outra coisa qualquer, mas foi mais por isso. No início, era o Gasparinho, fui sempre tratado assim pela família. Por muitas conquistas, o que fez com que eu fosse jogador de futebol não era a camisola, era, pura e simplesmente, o interior, o caráter, a humildade, todos esses valores que estão por baixo dessa camisola - é isso que se ensina nos desportos coletivos. Também é por aí que a escola nasceu.

- Se pudesse descrever a sua carreira numa só palavra, qual seria?

- Sem muitos rodeios, numa só palavra, a minha carreira foi completa.