Os pais de Alice Marques emigraram cedo para França em busca de novas oportunidades, e foi já em solo francês que a jovem central e os seus irmãos nasceram. No entanto, Portugal nunca deixou de estar longe do coração da família.
Aos cinco anos, Alice deu os primeiros toques no FC Luenaz, antes de dar o salto para o “gigante” Lyon, onde conheceu uma realidade ímpar no futebol feminino. Durante esse período, começou a ser convocada para as seleções jovens francesas, até que surgiu o contacto da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que sondou a abertura para vestir a camisola da equipa quinas. A resposta foi clara: “Sim, estou disponível.”
Hoje, depois de um ano de enorme aprendizagem na competitiva liga espanhola, ao serviço do Valência, Alice Marques partilha as suas perspetivas para o futuro em entrevista exclusiva ao Flashscore.

"As condições no Lyon são ao nível de uma equipa masculina de topo"
- Quais as primeiras memórias que a ligam ao futebol?
- Basicamente, passava os fins de semana a ver os jogos dos meus dois irmãos mais velhos com os meus pais. Também andava sempre com a bola nos pés, a jogar com eles e com o meu pai. E foi assim que o futebol entrou na minha vida.
- Em que idade entra para um clube?
- Com 5 ou 6 anos - a idade possível - comecei a jogar. Assim que pude, assinei pelo clube que ficava perto de casa, o FC Luenaz. Era o mesmo clube onde jogavam o meu pai, os meus irmãos e outros membros da família. Até a minha irmã chegou a jogar lá durante um ano.
- E começou logo a jogar só com meninas?
- Jogava com rapazes. Acho que só havia duas raparigas na equipa. Mas eles tratavam-me sempre muito bem. Jogar com rapazes nunca foi um problema para mim, era algo perfeitamente normal.

- Essa mudança só para o feminino acontece quando? Foi fácil a adaptação?
- Quando entrei no Lyon, tinha 13 ou 14 anos. Houve coisas fáceis, porque as raparigas eram super simpáticas e tudo correu muito bem. Mas a mudança foi enorme. Eu vinha de um clube pequenino, familiar e tranquilo, e de repente estava num clube muito sério, muito grande, com outra dimensão. O futebol deixou de ser apenas uma paixão para se tornar algo mais sério, estruturado e exigente.
- Quando é que se apercebe de que podias seguir uma carreira no futebol?
- Quando era pequena, nunca pensei muito nisso. Gostava apenas de jogar com os meus amigos. Mas quando entrei para o Lyon, os treinadores perguntaram-me quais eram os meus objetivos e foi nesse momento que percebi que queria ser futebolista profissional e alcançar algo no futebol.
- O que sentiu ao partilhar o balneário com jogadoras como Le Sommer, Renard e Diani? Ficou envergonhada ou foi uma motivação extra?
- Impressionante. São jogadoras mesmo de outra dimensão. Tive essa consciência logo no primeiro treino. Nesse momento, olhas para elas e pensas: "Ok, são mesmo de outro nível." São um exemplo: muito exigentes, muito profissionais… é outro futebol.
- Algum conselho?
- São muito acolhedoras. Fazem-te sentir bem desde o início. Lembro-me de algumas virem falar comigo, dar conselhos e ajudar em várias situações, sobretudo dentro de campo.
- Para quem não conhece a realidade da equipa feminina do Lyon, como apresenta o clube?
- As condições no Lyon são ao nível de uma equipa masculina de topo. Tens tudo o que precisas: um staff enorme, campos de treino incríveis - tudo exclusivo para o feminino, sem teres de partilhar com a equipa masculina. Só dependes de ti. Até para viajar, temos o nosso próprio avião. É, de facto, outro nível.

Liga F e Valência: "Abriu-me portas para continuar em Espanha"
- Passou esta última temporada no Valência, emprestada pelo Lyon. Como surgiu essa possibilidade?
- O Lyon é um clube gigante, por isso, para uma jogadora jovem, é difícil ter minutos. E eu estou numa fase em que preciso de jogar e de conhecer verdadeiramente o ritmo da liga profissional. Por isso, achei que um empréstimo era o melhor passo para mim e o Lyon concordou. Surgiu a possibilidade de ir para o Valência. Já gostava do campeonato espanhol e também tinha vontade de descobrir e viver uma experiência diferente noutro país. Achei que era um bom projeto para mim e fui.
Agora que a época terminou, admito que não esperava que fosse tão difícil, sobretudo a nível de resultados. Em momento algum pensei que fôssemos descer, mas agora que tudo está feito, percebo que foi realmente complicado, especialmente no início. Ainda assim, aprendi muito ao longo deste ano. Descobri o que é o futebol profissional, a exigência de cada jogo, e percebi o quão diferente é jogar no Lyon e no Valência.
Isso fez-me entender que o Lyon não é a realidade de toda a gente. Aquele conforto que tinha lá era algo que eu precisava de sair para perceber. Foi importante descobrir esse outro mundo. Aprendi muito em tudo. Dentro e fora de campo.

- Foi difícil estar longe da família?
- Sim, foi difícil. Mas tive a sorte de contar com o apoio da minha família. Foram ver-me muitas vezes: os meus pais, irmãos, primos, amigos… e isso ajudou-me imenso. Falava todos os dias com a minha mãe ao telemóvel, ou com a minha irmã. Esse apoio foi essencial para aguentar os momentos mais complicados.
- O que achou da Liga F?
- É uma liga super competitiva. Tem 16 equipas, por isso há muitos jogos e tudo pode acontecer. Tirando o top 3, acho que qualquer equipa pode ganhar a qualquer adversário. Todos os jogos são difíceis e, mesmo que a diferença entre os dois ou três primeiros e o resto seja grande, este ano vimos que até contra o Barcelona ou o Real Madrid - mesmo que as probabilidades sejam poucas - tudo pode acontecer.
- Gostou de jogar contra Real Madrid e Barcelona? Terminaram a época com o empate frente ao Real Madrid...
- Os nossos resultados foram complicados, mas contra as grandes equipas nem correram assim tão mal. São jogos que eu gosto, mesmo sendo difíceis. Mesmo quando quase não tocas na bola e estás sempre a defender. Gosto de jogar contra as melhores, dá-me uma motivação extra. São jogos que te marcam e que te dão experiência.
- Em que aspetos sente que evoluiu mais este ano?
- Fisicamente, é muito mais difícil jogar como joguei no Valência, numa equipa que não tem tanta posse de bola. Não podes errar tanto numa equipa como o Valência, porque os erros pagam-se logo. Não te podes permitir falhas, os detalhes fazem mesmo a diferença. Tens de estar sempre focada e não podes baixar os níveis de exigência. No Lyon, até podes sofrer um pouco, mas acabas por marcar três ou quatro golos em 20 minutos. É uma realidade completamente diferente.

- De que forma sente que esta época pode influenciar os seus próximos passos?
- Acho que me deu visibilidade. Abriu-me portas para continuar em Espanha, regressar a França ou encontrar um novo projeto.
- E o que espera que aconteça? Ainda tem contrato com o Lyon.
- O mais importante é encontrar um espaço onde possa ter minutos. Depois da época que fiz, tenho de continuar a mostrar o meu valor e manter essa visibilidade. No fundo, preciso de um espaço onde possa confirmar o que fiz este ano e ir ainda mais longe.
- Para quem não a conhece, como se apresenta enquanto defesa?
- Não gosto muito de falar de mim, mas acho que sou uma jogadora que tenta pensar muito o jogo, jogar com a cabeça, antecipar as jogadas. Dou sempre tudo em campo e tento puxar pelas pessoas à minha volta para que também deem o máximo. Sinto que tenho uma boa saída de bola e gosto de ter responsabilidade nesse momento do jogo.

Ligação a Portugal: "Estou pronta para uma oportunidade com a Seleção"
- A Alice é filha de pais portugueses, mas nasce em França. Explique-nos a sua relação a Portugal.
- Os meus pais nasceram no norte de Portugal, entre Braga e Barcelos, numa freguesia muito pequenina chamada Igreja Nova, onde tenho grande parte da minha família. Eu e os meus irmãos nascemos e crescemos em França, mas a ligação a Portugal sempre foi muito forte. Agora a minha irmã até vive em Portugal, tenho lá a minha sobrinha, os meus avós...
Desde que nasci, passava quase dois meses em Portugal todos os verões. Agora, com o futebol, é mais difícil, mas sempre que podia ia mais do que uma vez por ano. Mesmo quando tinha fins de semana livres, aproveitava para ir a Portugal.
- Em casa falavam em português?
- Não, nunca. Falávamos em francês, até para a minha mãe aprender a língua. Os meus irmãos falam português melhor do que eu, porque os primos com quem cresciam falavam português. Como sou a mais nova, os meus primos mais novos também já nasceram em França, então falávamos mais em francês.
- Que lugar ocupam França e Portugal no seu coração?
- São duas coisas diferentes. Cresci em França, tenho muitos amigos lá, joguei pelo Lyon e também pela seleção francesa - essa é uma parte de mim. Mas depois tenho a educação portuguesa, a ligação a Portugal, que sempre foi muito especial. É difícil explicar… só quem está na mesma situação percebe realmente. Só tenho boas memórias de Portugal.
- A Alice representou as seleções jovens de França em vários momentos, mas é público que abriu a porta a uma possível chamada à seleção principal de Portugal...
- Gostei muito de jogar por França. Vivi experiências incríveis - participei em dois Europeus, num Mundial… Foi realmente especial. Aprendi muito com essa camisola. Foi algo natural, até porque estava a jogar no Lyon. Mas, tendo dupla nacionalidade, Portugal esteve sempre na minha cabeça. As pessoas que me conhecem perguntavam-me muitas vezes por que seleção ia jogar… E essa ligação a Portugal esteve sempre presente em mim.
- Os seus pais incentivaram a seguir algum caminho em termos de seleção?
- Por acaso, nunca me disseram diretamente o que devia fazer. Eu sei o que eles pensam, mas nunca me disseram qual era o caminho a seguir. Lembro-me que, quando fiz o meu primeiro jogo pelas sub-17 de França, a minha mãe estava na Suécia e estava a gravar o hino. Estava também lá a irmã dela, que vive em Portugal, e nesse momento a minha mãe disse à minha tia: "Se fosse o hino de Portugal, até dava para chorar." Depois vi esse vídeo…
Mais tarde, na altura do Mundial sub-20, em que acabei por não ir por causa de uma lesão, já tinha começado a pensar mais seriamente que Portugal podia mesmo ser uma opção. Jogar por Portugal também era um sonho. Representar França foi um orgulho enorme, mas vestir a camisola de Portugal seria diferente - é algo muito forte para a minha família. Comecei a pensar nisso com mais clareza, e achei que era o momento certo. Já não tinha nada de muito importante com as seleções jovens e sentia que era altura de dar esse passo.
- A FPF já a abordou sobre a possibilidade de representar Portugal?
- (risos) Sim, sim...
- E a Alice está disponível?
- Sim, as portas estão abertas para quando surgir a oportunidade - e acho que estou pronta para esse momento.
- Pronta para ouvir o Hino Nacional?
- Sim... Para que a minha mãe possa gravar esse momento (risos).

Benfica e Sporting? "Não fecho nenhuma porta"
- Qual é a sua opinião sobre a seleção portuguesa?
- É uma boa seleção e, nestes últimos anos, a evolução foi enorme. Há três ou quatro anos, a realidade era completamente diferente da que existe agora. As outras seleções já não olham para Portugal da mesma forma. Acho que é uma seleção com um bom nível - ainda é difícil competir com as seleções mais fortes, como vimos agora, mas há muito potencial para continuar a crescer.
- E a Alice sente que tem capacidade para jogar por Portugal?
- (risos) Não sei… Não sou eu que tenho de dizer isso. Eu faço o meu trabalho, dou o meu melhor, e depois cabe às pessoas decidirem.
- Que tipo de Europeu acha que vamos ter este ano?
- Acho que pode ser um Europeu bonito, com muita visibilidade e muitos adeptos a assistir aos jogos. Do lado de Portugal, os últimos resultados foram difíceis, mas a equipa tem jogadoras com muita qualidade e capacidade para fazer algo especial. Portugal está num grupo complicado, mas já mostraram que são capazes de tudo. Espero que aconteçam coisas bonitas.

- Já se falou aqui sobre a possibilidade de jogar por Portugal, mas e jogar em Portugal? No Benfica ou Sporting...
- Sim, pode ser uma possibilidade. Não vou fechar nenhuma porta. Estou numa fase da carreira em que uma experiência num clube desse tipo pode ser muito positiva para mim. Não sei se essas oportunidades vão mesmo surgir, mas estou aberta a tudo.
- O que gostaria que dissessem sobre si no dia em que decidir terminar a carreira?
- Sobretudo, espero que as pessoas se recordem de mim como uma jogadora que deu sempre o seu melhor. E, mais do que isso, como alguém que queria que todos seguissem na mesma direção, com respeito pelos outros. No fundo, uma pessoa que valorizava o espírito de equipa e o compromisso.