Acompanhe o Paris FC-Benfica no Flashscore
“O futebol não corre por nós, nós é que corremos por ele.”
A idade que consta no Cartão de Cidadão de Rafaela Mendonça em nada reflete a maturidade das suas palavras, nem a profundidade das reflexões que partilha, especialmente para alguém que ainda está no início da vida e da carreira.
Rafaela enfrentou quem duvidava que uma “miúda” pudesse ocupar a baliza e, hoje, é apontada como uma das maiores promessas portuguesas na posição de guarda-redes.
Após oito anos em “casa”, no Sporting, a jovem decidiu procurar o “desconforto” em Paris, onde tem crescido ao lado de algumas das figuras mais consagradas do futebol mundial. Em vésperas de defrontar o Benfica na Liga dos Campeões, recebeu o Flashscore para uma longa conversa.

A nova vida em Paris: "Sinto que me estou a desenvolver em todos os sentidos"
- Há cerca de três meses e meio você mudou-se para Paris, deixando Lisboa e o Sporting, onde esteve oito anos. Como têm sido estes primeiros meses neste novo capítulo da sua vida?
Posso descrevê-los como incríveis. A experiência é completamente diferente da realidade que temos em Portugal. Estou numa equipa muito madura, com jogadoras que já passaram por grandes clubes e até foram nomeadas para a Bola de Ouro. São atletas que, num simples treino, elevam o nível de todas as que estão à volta. Mesmo sem ter ainda o espaço que quero na equipa, sinto que a minha evolução é constante e diária, nota-se claramente a diferença de treino para treino.
Elas ajudaram-me muito a adaptar-me e a estar tranquila. Ainda sou muito nova, é a primeira vez que vivo sozinha e num país diferente, mas ter uma equipa tão presente no dia a dia, que nos faz sentir em casa, tem tornado esta experiência realmente especial e incrível.
- Quando recebeu essa possibilidade de ir para Paris, sair de casa tão nova, como é que encarou essa oportunidade e o que imaginou na altura?
Passaram-me muitas coisas pela cabeça. Recebi a proposta num domingo, durante o verão, e lembro-me de pensar: “Estas são daquelas oportunidades que não aparecem todos os dias. Quando surgem, temos de as agarrar com toda a força.”
Foi uma decisão difícil, porque estava num ano importante - ia entrar na faculdade. Ou ficava em Portugal e começava a construir a minha vida aí, ou mudava tudo para seguir um sonho que tenho desde criança. Os meus pais sempre me apoiaram muito, e hoje sinto que foi a decisão mais certa que tomei. Pelo menos até agora, estou a vivê-la da melhor forma possível.
- Quais são as principais diferenças que encontrou em França? Sabemos que as coisas aí são um pouco diferentes, mas explique-nos, até para quem nos lê e não está a par dessas diferenças, como é o futebol francês e como são as condições nos clubes femininos.
Na minha visão, o jogo em França é um pouco mais rápido. Em Portugal temos jogadoras com uma qualidade técnica incrível. Aqui também há jogadoras assim, mas o jogo é muito mais físico, com transições ofensivas e defensivas muito rápidas. Acho que essa é a principal diferença entre o futebol português e o francês.
Em termos de clube, as condições que nos dão são excecionais. Estamos no mesmo complexo que a equipa principal masculina, com acesso a todos os recursos. Temos quatro fisioterapeutas, às vezes até mais, além de serviços externos de apoio. Podemos escolher entre vários campos para treinar e o acompanhamento dos treinadores é constante, seja através de vídeos, seja em treinos extra, mesmo em dias de folga, quando queremos trabalhar algum aspeto específico.
Também temos acompanhamento psicológico e nutricional de forma regular. Tudo isso faz uma grande diferença. Claro que Portugal está a evoluir e a aproximar-se desse nível, especialmente clubes como Benfica e Sporting, mas aqui nota-se uma estrutura mais completa. Só o facto de termos as mesmas condições que uma equipa sénior masculina já muda completamente a mentalidade e a forma de encarar o jogo.
- Acredito que esta mudança também tenha representado um grande desafio na sua vida, por ter saído do país. De certa forma, estes últimos meses fizeram-na crescer muito, não só como jogadora, mas também como pessoa. Quais foram as principais dificuldades nesse sentido?
A principal dificuldade foi, sem dúvida, viver sozinha. Eu vinha de uma casa cheia de gente e agora chego a casa e é um silêncio, daqueles em que se ouvem as moscas, às vezes até brinco com isso. Antes, as minhas alegrias eram jogar futebol ou tirar uma boa nota num teste; agora fico feliz quando acabo de limpar a casa e ela fica a cheirar bem (risos).
Acho que esse é o maior sinal de maturidade: começar a pensar mais à frente e a lidar sozinha com tudo. Quando vivemos com os nossos pais, um treino menos bom é algo que se resolve com uma conversa ou um mimo. Aqui não. Aqui temos de aprender a interiorizar que há dias maus e dias bons, e que o futebol é mesmo assim. O importante é aguentar, descansar, comer bem e voltar no dia seguinte para fazer melhor.
Sinto que a minha maturidade tem crescido muito. Estou a aprender a lidar melhor com os meus erros, com aquilo de que tenho saudades, e ao mesmo tempo a descobrir uma cidade nova e uma vida completamente diferente da de Portugal. Está a ser um processo muito bom e sinto que me estou a desenvolver em todos os sentidos.

- A Rafaela sai de Lisboa, capital portuguesa, para Paris, outra grande cidade europeia. Como tem sido a vida aí em Paris?
Na verdade, eu nem estou bem em Paris, mas isto é tão grande que parece que estou sempre em Paris. É uma confusão dos diabos em todo o lado. Vivo perto da academia, mas já fui várias vezes ao centro e continuo a preferir Lisboa. Não há volta a dar... Posso conhecer trezentas cidades, mas Lisboa vai ser sempre a minha preferida.
Em termos de caos, Paris é parecida, só que numa escala muito maior (risos). O centro até se compara um pouco a Lisboa, mas tudo o que está à volta é um autêntico caos. Quando andamos de autocarro com a equipa, às vezes demoramos quarenta e cinco minutos para percorrer uma distância de dez. Mesmo para sair daqui, é sempre uma confusão.
- E em relação à sua evolução como jogadora, neste caso como guarda-redes, o que é que tem aprendido nestes três ou quatro meses que já a fizeram evoluir em certos aspetos?
Sinto-me muito lisonjeada por estar a trabalhar com duas guarda-redes muito experientes, com grande maturidade, que já viveram momentos importantes e agora passam isso para mim. Acredito que só conseguimos evoluir quando temos pessoas ao nosso lado que nos ajudam a crescer.
Há técnicas que, em Portugal, se ensinam de uma forma e aqui de outra. Cheguei e percebi que havia exercícios e métodos completamente diferentes. Lembro-me de pensar: “Ui, não sei fazer isto, e agora?” Mas o apoio que tive foi enorme. Dizem-me: “Faz assim, tenta de outra forma.” E quando as coisas não me correm tão bem, estão sempre lá para puxar por mim, para me dizer que é normal e que é preciso continuar.
Esse apoio fora do aspeto físico e técnico faz toda a diferença. Dá-nos confiança, e confiança é o que um jogador mais precisa. Tenho aprendido a ter mais maturidade e calma em jogo. Sinto que a minha evolução tem sido muito mais mental do que técnica. A técnica aperfeiçoa-se com os anos - já jogo há mais de dez -, mas o que realmente separa um jogador profissional de um amador é a mentalidade. E acho que é precisamente isso que está a fazer o “clique” na minha evolução.
- Como é a sua relação com as outras guarda-redes? A Mylène jogou em Espanha, o que talvez ajude por causa do espanhol, e a Inès Marques, que penso ter alguma origem portuguesa - ela fala português?
Em todas as equipas onde joguei, tive a sorte de trabalhar com uma guarda-redes experiente. Antes era a Hannah Siebert, que era quase como uma mãe nos treinos, e agora a Mylène (Chavas) acaba por ter um papel parecido. Ela é um pouco a “mãe” do grupo.
Tenho uma relação muito boa com a Mylène. Ela fala inglês, espanhol e francês - só não fala português, o que também já seria pedir demais (risos). O espanhol ajuda bastante e permite-nos comunicar bem. Moramos perto uma da outra, e isso também aproxima. Falamos muitas vezes, já fomos ver jogos juntas, e há dias em que fico na casa dela a ver futebol e a conversar. Sou mesmo grata por essa relação, porque sinto que ela me passa muita experiência, dá conselhos valiosos e me ajuda a crescer não só como jogadora, mas também como pessoa.
Com a Inès é um pouco diferente. Ela não fala português e o inglês dela também não é o mais forte, o que dificulta um bocado a comunicação. Como estou a aprender francês, já conseguimos falar um pouco, mas a relação ainda é mais distante. Mesmo assim, noto que tem vindo a melhorar com o tempo - do início da época até agora já evoluiu bastante.
São duas grandes guarda-redes, e tenho muito prazer em treinar com elas e ver de perto o profissionalismo e a dedicação que colocam em tudo o que fazem.

O Benfica na Champions: "Avisei as minhas colegas de que não vai ser fácil"
- O que é que a levou a optar por este caminho? O que sentiu que precisava nesta fase da sua vida, sabendo das dificuldades que ia enfrentar para jogar, e que projeto lhe foi apresentado?
Quando tomei esta decisão, percebi que precisava do desconforto, porque no conforto não evoluímos. Quanto mais tempo passamos na nossa zona de conforto, menos conseguimos ver para além dela. E eu sabia que vir para um país novo, sem dominar a língua, viver sozinha e integrar-me numa equipa onde não conhecia ninguém me ia obrigar a crescer. Esse tipo de desafio desenvolve coisas que nunca conseguiria aprender num ambiente em que me sentisse totalmente confortável.
A proposta que me apresentaram foi muito aliciante. A presença na Liga dos Campeões é algo com que qualquer jogadora sonha. Mesmo não jogando ainda nesses patamares, poder acompanhar, ver a preparação e estar próxima da equipa nesses momentos é um sonho que estou a viver intensamente. Aproveito tudo o que posso, cada detalhe.
Além disso, aqui tenho condições de trabalho que ainda são diferentes da realidade portuguesa. Em França, o futebol feminino está mais estruturado e isso nota-se no dia a dia. Outro ponto importante é a possibilidade de jogar em diferentes equipas: posso atuar pela sub-19, pela equipa B e, se a treinadora entender, até pela principal. Isso dá-me espaço para evoluir e somar minutos em contextos diferentes.
Mas, acima de tudo, o que me fez escolher este caminho foi saber que ia sentir desconforto e que, ao enfrentá-lo, iria construir o meu próprio conforto num novo lugar.
- Por falar em Champions, o Paris FC vai defrontar o Benfica em breve. Como é que perspetiva esse jogo? O que acha que será mais difícil para vocês e também para o Benfica?
Aqui em França, muitas jogadoras não conhecem bem o campeonato português, e eu avisei-as logo: o Benfica não é um adversário fácil. Vamos ter a vantagem de jogar em casa, porque se o jogo fosse na Luz seria muito mais complicado - o Benfica cresce muito diante dos seus adeptos. Já vi o Benfica fazer grandes exibições, com jogadoras de enorme qualidade técnica, por isso tenho tentado alertar toda a gente para não subestimar o jogo.
Quanto a nós, acredito que o nosso campeonato é mais competitivo, com equipas muito consolidadas há vários anos. No fim de semana passado, por exemplo, fizemos um grande jogo contra o Lyon - não conseguimos a vitória, mas a performance foi muito boa.
Acho que o nosso ponto mais forte pode ser precisamente a mentalidade. É isso que temos vindo a trabalhar e que vamos continuar a preparar nas próximas semanas. De resto, é um jogo de Champions, em que tudo pode acontecer. São duas equipas preparadas e motivadas para competir ao mais alto nível.
- E que tipo de ambiente é que o Benfica vai encontrar aí, na vossa casa? Como são vividos os jogos, sobretudo os da Champions?
Desta vez vamos jogar no estádio da equipa masculina, por isso o ambiente vai ser um pouco diferente. É um espaço mais fechado, o som propaga-se mais, o barulho é maior e tudo à volta ganha outra dimensão.
Acredito que vai ser uma atmosfera incrível. Vamos tentar dar um pouco dos dois mundos: mostrar a nossa cidade e, ao mesmo tempo, deixar claro que quem manda em casa somos nós. É com essa mentalidade que queremos entrar em campo e viver o jogo.

"Lutei contra todos os treinadores que não queriam que uma miúda fosse à baliza"
- Rafaela, voltando agora ao início do seu percurso no futebol, quais são as suas primeiras memórias que a ligam a este desporto?
Lembro-me bem do tempo no meu primeiro clube. Costumávamos jogar muito no Sabugal, em torneios pequenos, e um dia decidi: “Porque não jogar um bocadinho mais à frente?” Os meus pés nunca foram os mais mágicos, mas arrisquei. Nesse dia os meus pais estavam os dois a ver - normalmente só ia o meu pai - e acabei por marcar um golo.
Na altura, acho que era 2016, e o Gareth Bale tinha acabado de marcar um golo e festejado de uma forma específica (fazendo um coração). Então lá fui eu, com um metro e meio, a imitar o Bale na celebração! A minha mãe ainda hoje tem o vídeo e rimo-nos sempre muito disso.
Mais tarde, já mais crescida, a entrada no Sporting foi outro momento marcante. Todo esse primeiro ano foi de viragem para mim, pois foi aí que percebi realmente o que queria fazer e o quanto o futebol significava para mim.
- Mas antes de chegarmos a essa fase no Sporting, quando é que decidiu que queria ser guarda-redes?
Hoje em dia tenho uma mentalidade diferente da que tinha na altura, mas na época foi simplesmente o que mais me agradou. Sempre brinco que tenho dois pés direitos - sou esquerdina, por isso imagina (risos). Para a frente a bola não andava grande coisa, então acabei por experimentar a baliza.
E agradeço à “mini Rafa” por essa escolha, porque correr não é mesmo para mim. Correr um bocadinho tudo bem, mas noventa minutos? Não! Prefiro mil vezes sofrer na baliza, gosto dessa parte.
Na altura, lutei muito contra todos os treinadores que não queriam pôr uma miúda na baliza. Mas a minha loucura era maior do que a deles, e acabei por conseguir convencer toda a gente.
- Então, depois acaba por ir, lá está, continuando o que dizia, para o Sporting...
Ir para o Sporting foi uma experiência incrível. O primeiro ano correu muito bem. A equipa técnica era fantástica - o treinador de guarda-redes, a treinadora principal, todos. Tive das melhores experiências até hoje. Gostava muito da equipa, era um grupo muito unido e já jogavam juntas há algum tempo, o que ajudou muito na adaptação.
- Mas onde tudo começa é no Algueirão, ainda a jogar com os rapazes, não é verdade? Foi bem recebida?
No início, tinha um grupo de amigos nessa equipa que realmente gostava de me ter lá e que não via problema nenhum em jogar comigo. Mas estamos a falar de há dez, doze anos, e a mentalidade era um pouco diferente da de hoje.
Tinha os dois lados numa só equipa: havia quem me apoiasse imenso - as mães adoravam, diziam que eu era “a filha delas” -, e havia também alguns pais que não achavam bem. Comentavam que eu não devia estar ali, que o filho deles devia jogar no meu lugar. E, claro, os miúdos acabam por reproduzir o que ouvem em casa.
Por isso, vivi um bocadinho dos dois mundos. Felizmente, o meu treinador, o mister Paulo, tinha a mentalidade certa. Dizia: “Ela vai jogar se treinar melhor do que os vossos filhos.” E isso fez toda a diferença.
Sou-lhe imensamente grata até hoje. Foi ele quem me acompanhou e me ajudou a crescer no Algueirão, quem me defendeu e acreditou em mim, mesmo quando era mais fácil ter cedido à pressão. Ele ouviu muitos comentários por pôr uma miúda a jogar entre rapazes, mas nunca recuou e eu nunca vou esquecer isso.
- E a entrada no feminino dá-se, então, agora sim, no Sporting...
É uma história muito engraçada que tenho com a mister Beatriz Teixeira, e toda a gente que nos conhece já a ouviu contar. Eu tinha uns onze anos e fui a uma loja comprar luvas. Ela estava lá com o irmão, e eu, sem pensar muito, comecei a dar conselhos: “Olhe, essas luvas não são muito boas, desgastam-se rápido. Aquele outro modelo é melhor, ajusta-se melhor à mão.” Era uma miúda de onze anos a dar dicas a um homem de vinte e tal (risos).
A mister Bia achou aquilo curioso, acabou por falar com os meus pais e, algum tempo depois, recebi o convite do Sporting para ir fazer treinos e os testes de captação.
Na altura, já estava a perceber que não podia continuar muito mais tempo a jogar com rapazes e que precisava de encontrar um clube onde pudesse evoluir. Tinha duas opções: ficar mais um ano no Algueirão ou mudar e dar o salto. Quando surgiu a proposta do Sporting, percebi logo que era o momento certo.
O projeto era muito avançado para o contexto do futebol feminino naquela altura. Tínhamos uma equipa só de meninas, com boas condições de treino, campo próprio e material de qualidade, mas jogávamos no campeonato dos rapazes. Para a época, era algo mesmo fora do comum.

- Foram oito anos no Sporting. "Oito anos não são oito dias", como você própria escreveu. Olhando agora, ainda sem muita distância, como resumiria esses oito anos no Sporting?
(suspiro) Foram casa. O Sporting foi verdadeiramente casa para mim. Conheço a Academia de uma ponta à outra, conheço as pessoas que lá trabalham, os fisioterapeutas, os treinadores de guarda-redes, os profissionais de nutrição - todos contribuíram para que a minha experiência no clube fosse única.
As pessoas costumam dizer que “o Sporting são as pessoas”, e eu acredito mesmo nisso. São elas que nos ajudam a crescer todos os dias e a alcançar o nosso melhor nível. Passei muito tempo com a equipa médica, com os técnicos, e levo as melhores memórias de todos.
Dentro e fora de campo, o Sporting foi casa e é exatamente isso que eu quis dizer quando escrevi aquela frase. Resume perfeitamente o que o clube representou e continua a representar para mim.
- Tornou ainda mais difícil a decisão de sair?
Tornou, sim. Porque, no fundo, o desconforto que eu precisava era exatamente aquilo que mais me assustava não encontrar. Sair de um lugar que já é casa, onde me sentia segura, onde conhecia tudo e todos, não é fácil.
Mas a vida é isso mesmo - crescer, arriscar e abrir asas para novos desafios. E, ao mesmo tempo, saber que aquelas pessoas e tudo o que vivi no Sporting vão estar sempre comigo. Porque as pessoas ficam, não são apenas os cargos ou os lugares que ocupam.

Do "sonho" principal ao Mundial sub-20: "É um objetivo!"
- Você saiu de Portugal, mas continua ligada ao país através da Seleção. Há pouco tempo esteve cá a jogar contra os Estados Unidos. O que significa para si vestir as cores de Portugal?
É um sonho - mais do que um sonho, na verdade. Desde criança que imaginava este momento. Da primeira vez que vesti a camisola, senti o peso de Portugal. Pode parecer estranho dizer isto, mas é mesmo isso: vestir aquela camisola é sentir o peso e o orgulho de representar um país inteiro.
Quem nunca passou por essa experiência pode achar exagero, mas só quem veste é que entende o que significa. A primeira convocatória, o primeiro estágio, o momento em que percebes que vais mesmo jogar… até chegares ao dia do jogo e ouvires o Hino... É aí que a ficha cai. É mágico. É um orgulho. É a nossa Seleção.
- Para já está nas sub-19, mas certamente imagina e sonha um dia chegar à Seleção principal. É algo que a motiva muito também?
Neste momento estou muito focada neste ano e feliz com o papel que tenho na Seleção sub-19, mas o meu grande objetivo é, no futuro, chegar à Seleção A e representar Portugal ao mais alto nível.
Vejo jogadoras que hoje estão lá e que não são muito mais velhas do que eu. Aquilo que ainda é um sonho para mim já é a realidade delas e isso mostra que é possível. Por isso, este objetivo tem de estar sempre claro. Podemos ter outras metas, mas esta tem de estar sempre presente. E, acima de tudo, temos de estar prontas para quando o momento chegar.
- Na última convocatória, estiveram três jogadoras com quem certamente tinha alguma proximidade no Sporting - a Maísa, a Érica e a Carolina Santiago. O facto de ver jogadoras tão próximas a chegar à Seleção A também dá algum conforto e confiança de que as portas estão abertas para a sua geração?
Em Portugal há jogadoras muito preparadas para dar esse salto, e eu quero estar entre elas. É uma honra ver quem está lá agora, ver o nível a que jogam, mas o objetivo é continuar a trabalhar para, quando chegar a nossa oportunidade, estarmos prontas.
Elas têm mais maturidade e mais anos de carreira, claro, mas o importante é trabalhar para estar cada vez mais perto desse nível, mesmo sendo mais nova. Assim, quando chegar o momento de entrar na Seleção A, vai ser algo natural, uma consequência do trabalho e da preparação.
- Como é que avalia as guarda-redes portuguesas? Quais diria que são as principais características da guarda-redes portuguesa?
Vejo a guarda-redes portuguesa como alguém com uma paixão enorme pelo que faz. Vive o jogo intensamente, está sempre ligada, sempre presente. Quer tanto fazer parte que acaba por estar num ritmo altíssimo durante os noventa minutos.
Vejo isso na Inês (Pereira) e na Patrícia (Morais), que acompanho há muito tempo - ainda as via quando estava no Sporting e continuo a observar agora, tanto na Seleção como nos clubes. São jogadoras que colocam muita energia no jogo: têm agressividade, confiança e um excelente jogo de pés, algo que tem evoluído muito em Portugal nos últimos anos.

Não são guarda-redes muito altas - e isso é uma característica geral da mulher portuguesa -, mas compensam com trabalho. A forma como desenvolveram o corpo e a técnica para serem fortes nos cruzamentos, rápidas nas saídas e eficazes em bolas mais altas é admirável.
Acho que a principal característica da guarda-redes portuguesa é essa mistura de paixão e confiança. É algo que também sinto em mim e que tenho vindo a desenvolver ainda mais aqui em França. A paixão já estava lá, mas agora sinto que estou a crescer no lado técnico e mental. Há muito para melhorar, claro, mas é isso que procuro todos os dias no clube. As mais experientes já fazem tudo com uma naturalidade incrível - quase mágica - e é esse nível que quero alcançar.
- Mundial sub-20. É um objetivo?
Eu faço o meu trabalho: treinar bem, jogar bem e cuidar de mim. Tento manter o corpo a cem por cento, evitar lesões, alimentar-me bem e fazer tudo o que estiver ao meu alcance para ter uma carreira longa e saudável. O futebol feminino tem enfrentado muitos problemas com lesões nos últimos tempos, por isso esse cuidado é fundamental.
Na minha cabeça, o objetivo é dar sempre o máximo para estar num nível que me permita ser escolhida e representar Portugal no Mundial sub-20. O Mundial é o Mundial - todos sabemos o peso que tem. Representar o nosso país numa competição com tanto prestígio seria um sonho e, sem dúvida, mais um grande objetivo na minha carreira.

As referências e o ritual: "Dou um salto, bato na trave e faço a pose do Homem-Aranha"
- Antes de entrarmos um pouco mais na especificidade da sua posição, gostava de saber quais são as suas principais referências. São todas guarda-redes ou também há outras jogadoras que sempre admirou?
Tenho três guarda-redes que me marcaram muito. A primeira é a Hope Solo - não há ninguém como ela. Mesmo já não jogando, continua a ser uma referência. A diferença dela para as guarda-redes atuais ainda é enorme.
Depois, a Inês Pereira, que acompanhei desde que chegou ao Sporting e durante vários anos. Tenho a sorte de ainda hoje manter contacto com ela, também por causa da agência e de experiências que já partilhámos. Sempre a admirei pela forma como cresceu e pela personalidade que tem dentro e fora de campo.
E, mais recentemente, a Mary Earps, que tenho seguido com muita atenção. Vou jogar contra ela em breve - ou pelo menos estar nas bancadas - e confesso que estou um bocadinho nervosa (risos). Desde o Europeu que admiro muito o percurso dela. Identifico-me bastante com a sua personalidade e com a forma como lida com as críticas. Ela tem sido muito aberta em relação às emoções e à saúde mental, e acho isso admirável.
Quanto a jogadoras de campo, sempre tive uma admiração especial pela Lucy Bronze. Não há um motivo muito específico. Simplesmente acompanhei-a, gostei do estilo, da garra, e quando tive a sorte de estar no mesmo campo e falar com ela, percebi que fazia mesmo sentido essa admiração.
- É incrível perceber o que o futebol lhe tem dado, não é verdade?
Completamente. Eu costumo dizer uma frase a toda a gente: “A vida não dá voltas, a vida capota.” E a minha vida tem capotado várias vezes (risos).
Quando eu menos esperava ter uma equipa feminina para onde pudesse seguir, apareceu o Sporting - e a vida capotou. Deixei o futebol masculino, comecei a jogar no feminino, em Lisboa, e num clube como o Sporting. Tudo era novidade.
Depois, quando achava que ia fazer mais uma época tranquila, consolidar-me em casa, aparece o Paris FC e a vida voltou a capotar. De repente estou noutro país, a viver sozinha, com uma rotina completamente diferente. Mas é isso que torna o futebol tão incrível: as coisas mudam do dia para a noite.
- A posição de guarda-redes é muito exigente mentalmente, e você já falou várias vezes sobre a importância da mentalidade. Como se trabalha a confiança, a concentração e a forma de lidar com o erro?
Acho que há três pontos fundamentais para a confiança de uma guarda-redes: família, equipa e mentalidade.
A família é a base. Ter esse apoio dá tranquilidade, porque sabemos que, mesmo num mau jogo ou depois de um erro, há sempre alguém à espera para nos apoiar e também para nos corrigir. Sempre valorizei mais uma crítica construtiva do que um elogio fácil.
Depois, a equipa. Ter colegas e staff que nos ajudam a melhorar, que apontam o que está mal, mas de forma positiva, faz toda a diferença. Mesmo quando ainda não há total confiança, sentir que o grupo acredita em nós dá segurança para jogar.
Por fim, a mentalidade. Ser guarda-redes exige personalidade forte, resiliência e até um toque de loucura (risos). Há sempre pressão, há competição dentro da própria posição, e é preciso saber lidar com isso sem perder o prazer de jogar.
- E apesar dos seus "dois pés direitos", não se arrepende de ter escolhido ser guarda-redes?
Nada, não me arrependo de nada. Aliás, fico cada vez mais feliz com essa decisão. Não me imagino a correr o treino inteiro (risos). Às vezes ainda questiono a minha escolha, principalmente quando levo aquelas boladas que ficam marcadas como tatuagens.
Mas a dor passa, a adrenalina também, e no fim percebo sempre: é isto que eu gosto de fazer. Sou completamente louca por esta posição e acho que a pequena Rafa fez uma ótima escolha.
- Algum ritual ou superstição antes dos jogos?
Antes do jogo não tenho grandes rituais - faço a minha vida normal, falo com quem quiser, estou tranquila até ao último segundo antes do aquecimento.
Mas há uma coisa que faço sempre: assim que tiramos a foto de equipa, eu dou um salto. Nem sei bem porque comecei a fazer isso, mas agora virou tradição (risos). Normalmente começo na área, vou até à marca de penálti, dou uma volta, bato na trave e faço a pose do Homem-Aranha.
É muito estranho, eu sei (risos), e os apanha-bolas fartam-se de rir comigo. Mas é algo que faço em todos os jogos, esteja ou não a ser filmado, em treino ou em competição.

"O futebol não corre por nós, nós é que corremos por ele"
- Como é que você, Rafaela, olha para o seu futuro? É algo que a tranquiliza ou que ainda lhe causa alguma ansiedade?
Tal como disse, o futebol é muito imprevisível. É difícil ver o futuro com clareza, porque tudo pode mudar de um dia para o outro. Há seis meses eu imaginava o meu futuro no Sporting e agora estou em Paris.
Por isso, pensar a longo prazo é complicado. O que consigo ver claramente são estes dois anos que tenho pela frente aqui. Vejo-me a crescer, a desenvolver-me e a atingir os objetivos que tracei. Sinto que posso ser feliz aqui e, acima de tudo, levar comigo uma grande bagagem de experiência.
Se tudo correr bem, gostava de continuar e representar este clube por mais tempo. Mas, se o caminho for outro, quero sair daqui preparada, com tudo o que aprendi, para levar essa experiência para o meu próximo desafio.
- Que conselhos daria às raparigas mais novas que estão agora a começar, talvez até no Algueirão, e que sonham um dia chegar à Primeira Liga, jogar no estrangeiro ou representar a Seleção?
No futebol, o talento já não chega. É preciso trabalho - muito trabalho - físico, psicológico e até nutricional. Também é preciso saber que se vai perder algumas coisas da adolescência: momentos com amigos, com a família... mas, se é isto que se ama, vale a pena. Como a minha mãe sempre me diz: “Enquanto for o que te faz feliz, vai atrás.” O futebol não corre por nós, nós é que corremos por ele.
Nem todas começam num clube grande, e é verdade que isso às vezes facilita. Mas mesmo quem começa em equipas mais pequenas deve acreditar, porque há sempre alguém a ver - em todos os jogos, em todos os treinos. Há muito a acontecer nos bastidores que nós nem imaginamos.
Por isso, o conselho é simples: trabalhem, apareçam, deem tudo e sejam felizes em campo. Porque no fim do dia, apesar do cansaço, o futebol é o que mais nos desgasta, mas também o que mais nos acalma.

- O futebol no feminino tem crescido muito nos últimos anos. O facto de ter agora 18 anos e pensar “ok, isto já cresceu tanto, mas daqui a dez anos vai ser ainda maior” dá-lhe algum conforto, por sentir que a sua geração está a começar nos anos áureos do futebol feminino?
Quando éramos sub-13, já dizíamos que a nossa geração ia apanhar o melhor do futebol e é verdade. Hoje estamos a viver uma fase muito boa, mas acredito que não seremos nós a colher todos os frutos. Quem vai beneficiar mais é, provavelmente, a geração que agora está nas sub-10, que está a começar e vai encontrar um desporto ainda mais desenvolvido.
O crescimento tem sido enorme, não só nas condições, mas também na qualidade das jogadoras. As miúdas de hoje são treinadas de forma muito mais completa, têm mais recursos e oportunidades. Quando chegarem à nossa idade, vão ser craques, com uma preparação que nós ainda não tínhamos há dez anos.
A nossa geração está a construir a base, a abrir o caminho. Ainda vamos colher alguns frutos, sim, mas acredito que as próximas gerações é que vão viver as maiores fases do futebol feminino.
- Para fechar, costumo perguntar: “Se o futebol fosse uma pessoa, o que é que lhe diria?” Mas no seu caso vou adaptar: se a baliza fosse uma pessoa, o que é que lhe diria?
(risos) Nós falamos tão mal com a baliza às vezes… “Pá, diminui! Aumenta! Mexe-te!” (risos). Tudo o que nos vem à cabeça quando algo corre mal. Mas, no fundo, é ela que tantas vezes nos salva.
Acho que o que faria seria agradecer. Agradecer por tudo o que me tem feito viver, porque se não fosse a baliza, se jogasse noutra posição talvez não estivesse aqui hoje. A baliza deu-me experiências únicas, permitiu-me conhecer outros países, outras jogadoras, treinadores e pessoas incríveis dentro do futebol. Por isso, se a baliza fosse uma pessoa, eu diria só: obrigada. Por tudo o que me deu e por tudo o que continua a dar.
