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Reportagem: Os bastidores da estratégia do Catar - do legado do Mundial, às regras e sustentabilidade

Akram Afif e Roberto Firmino do Al-Sadd
Akram Afif e Roberto Firmino do Al-SaddProfimedia

Quando o mundo deixou Doha em dezembro de 2022, o Catar já estava a planear os próximos passos. O Mundial não foi um ponto final, foi o ponto de partida. Para um país que há muito vê o desporto como um projeto nacional e um motor regional, a questão nunca foi se o ímpeto continuaria, mas sim como.

O Flashscore visitou os escritórios da Liga das Estrelas do Catar, a principal divisão do país, para conhecer melhor a estratégia desportiva do país e perceber em que se distingue dos grandes investidores vizinhos, como a Liga saudita, que tem sido o centro das atenções nas últimas janelas de transferências.

A palavra "sustentável" talvez não seja a primeira que surge quando se fala do Catar, dos seus arranha-céus luxuosos e do ar condicionado em todo o lado, mas associada à sua estratégia futebolística, faz sentido. Nem sempre foi assim.

"Há vinte anos, precisávamos de ser vistos, por isso trouxemos nomes como Batistuta ou Effenberg. Mas já ultrapassámos essa fase. Respeitamos o que a Arábia Saudita está a fazer, mas seguimos um caminho diferente", recorda Ahmed Abbassi, diretor-executivo de Competições e Desenvolvimento de Futebol da Liga.

Em todo o Golfo, a Liga saudita tem estado nas manchetes com contratações de destaque como Cristiano Ronaldo e Neymar, e pelo investimento mediático que acompanha essas transferências.

O Catar também conta com nomes conhecidos das principais ligas europeias, mas optou por um modelo mais discreto. Graças à sua estratégia, o valor de mercado da QSL subiu de 150 milhões de euros em 2020/21 para 450 milhões na temporada atual.

"O que nos importa é um futebol atrativo, competitivo e sustentável. Sustentável no crescimento da Liga e da nossa seleção nacional, e também a nível financeiro. É um aspeto fundamental na forma como construímos a nossa governação, regulamentos e como protegemos os jogadores locais, ao mesmo tempo que trazemos estrangeiros que acrescentam valor", afirma Abbassi.

Ahmed Abbassi a falar numa mesa redonda em que o Flashscore participou
Ahmed Abbassi a falar numa mesa redonda em que o Flashscore participouQSL

Isso também significa que o Catar não pretende ser um destino de luxo para jogadores em final de carreira.

Cerca de 35% dos jogadores estrangeiros da QSL têm menos de 25 anos. Alguns são nomes conhecidos; outros são jovens promessas. Por exemplo, o Al-Sadd, o clube desportivo mais titulado do país, tem o experiente Roberto Firmino como referência, mas um dos seus reforços europeus é Pau Prim, formado em La Masia e com apenas 19 anos.

"O nome por si só não chega; o desempenho é o que conta," sublinha Abbassi.

Regulamentos financeiros únicos

A QSL não está sujeita ao Fair Play Financeiro (FFP), já que esse regulamento foi criado pela UEFA. Em vez disso, implementou o seu próprio conjunto de regras, denominado "Controlo Financeiro".

Cada clube define o seu orçamento com base em patrocínios e receitas de transmissões. Esse orçamento é transferido diretamente para uma conta gerida pela Liga, garantindo total transparência à QSL.

"Assim, garantimos que todos recebem exatamente a tempo. Treinadores, jogadores, todos. Atrasos nos salários acontecem até nas principais ligas europeias, e quisemos evitar isso," explica Abbassi.

Marco Verratti, ao serviço do Al-Duhail, é um dos nomes mais reconhecidos da QSL
Marco Verratti, ao serviço do Al-Duhail, é um dos nomes mais reconhecidos da QSLQSL

As regras são simples: Sem liquidez? Não há contratação.

"Não pode contratar um jogador ou treinador se não tiver o orçamento disponível na conta. No FFP, pode encontrar-se formas de financiar algo ao longo dos anos. Aqui, tem de ter o dinheiro já. Não há margem para manobras", afirma Abbassi.

O resultado não é apenas dívida zero em toda a Liga, mas, talvez mais importante, a credibilidade crescente no ecossistema global do futebol: "Esta regra ajudou a nossa imagem no mundo do futebol. Mostrou que temos uma estrutura profissional", acrescenta Abbassi.

Fazer o que for preciso

O antigo árbitro da FIFA Hani Ballan é diretor-geral da QSL há mais de uma década e está entre os líderes que procuram transformar o Catar num centro desportivo mundial. Não só no futebol, embora seja a sua principal área de atuação.

"Temos um lema aqui: não fazemos apenas o nosso melhor, fazemos o que for preciso. Isso aplica-se à organização do Mundial de futebol, ao crescimento da nossa Liga, a qualquer evento futuro", diz Ballan.

A próxima fase já está em marcha. O Catar vai receber o Mundial de Basquetebol 2027 e as autoridades já manifestaram interesse em candidatar-se aos Jogos Olímpicos de 2036. Ambos encaixam num plano nacional que vê o desporto como um investimento de longo prazo na imagem e identidade, mas também nas infraestruturas.

O Estádio Lusail recebeu a final do Mundial FIFA 2022 e é apontado como possível palco da Finalíssima
O Estádio Lusail recebeu a final do Mundial FIFA 2022 e é apontado como possível palco da FinalíssimaHasan Zaidi / Alamy / Profimedia

Os estádios construídos para o Mundial 2022 continuam a ser utilizados atualmente para o futebol e para a Liga Diamante (atletismo), e um deles vai mesmo acolher parte do torneio de basquetebol daqui a dois anos.

"Havia muitas dúvidas antes do Mundial. Mas no fim, foi incrível. Ninguém pode questionar a nossa capacidade de organizar, a hospitalidade... Foi um evento gigantesco para nós e só nos permitiu crescer", recorda Ballan.

O sentimento dominante entre os dirigentes desportivos em Doha é claro: querem aproveitar o modelo do Mundial FIFA, que lhes deu maior visibilidade no mundo do desporto, e construir a partir daí para garantir que adeptos e atletas fiquem satisfeitos por participar num torneio no Catar.

"Não impomos hierarquias. Trabalhamos todos juntos para o crescimento comum do país e da região", garante Ballan.

Veja as entrevistas exclusivas da Flashscore durante a nossa visita à Liga das Estrelas do Catar nos links abaixo:

Roberto Firmino | Marco Verratti | Presnel Kimpembe | Aleksandar Mitrovic | Luis Alberto | Rodrigo Moreno