Mais

China com Guga: "Vim para o Beijing porque não podia ficar à espera de um grande em Portugal"

Guga Rodrigues em destaque no Beijing Guoan
Guga Rodrigues em destaque no Beijing GuoanArquivo Pessoal, Flashscore
O Flash pelo Mundo é a nova rubrica mensal do Flashscore. Neste espaço, traremos entrevistas exclusivas com portugueses que elevam bem alto a bandeira nacional além-fronteiras. O nosso décimo convidado é Guga Rodrigues, médio do Beijing Guoan, da China.

Acompanhe o Beijing Guoan no Flashscore

Guga Rodrigues deixou marca no futebol português antes de partir para uma desafiante aventura na gigantesca cidade de Pequim. O Beijing Guoan surgiu numa fase em que o nome do médio português fazia capas de jornais em Portugal, mas a vida de um profissional de futebol não se faz de meros rumores ou de contactos que não avançam.

Perante a indefinição de uns, foi o Beijing Guoan quem correspondeu verdadeiramente às expectativas. Guga deu o passo em frente, rumo ao desconhecido, e hoje é um dos melhores médios (se não o melhor) a atuar no competitivo campeonato chinês. E os milhares de adeptos do clube, agora liderado pelo espanhol Quique Setién, pedem insistentemente que o seu camisola 8 renove o contrato, que termina já em dezembro deste ano. Longe de Portugal, mas mais maduro e mais completo, o médio português afirma-se como um dos jogadores mais influentes do campeonato chinês.

Guga Rodrigues termina contrato no final deste ano
Guga Rodrigues termina contrato no final deste anoOpta by Stats Perform, Arquivo Pessoal

Nesta entrevista exclusiva ao Flashscore, Guga assume estar feliz com o que encontrou, sente-se bem e, acima de tudo, sente que evoluiu enquanto jogador. Podemos dizer que estamos perante um ‘Guga 2.0’, uma versão ainda mais completa do que aquela que encantou no Rio Ave.

Durante esta viagem pela sua carreira, o médio português recorda as tropelias na formação do Benfica, agradece a Luís Freire e não esconde as saudades de Portugal — e acreditamos que o futebol português também sente saudades dele.

Os fervorosos adeptos do Beijing Guoan
Os fervorosos adeptos do Beijing GuoanBeijing Guoan Football Club

"O Beijing Guoan é um clube grande, ao nível de um top 3 em Portugal"

- Olhando para trás, que balanço faz destes 15 meses ao serviço dos chineses do Beijing Guoan?

- Em primeiro lugar, agradeço a oportunidade. É verdade, já passaram 15 meses — parece que foi ontem que apanhei o voo para vir para a China. Muita coisa aconteceu e, neste último ano e meio, a minha vida mudou bastante.

- Qual foi o seu primeiro pensamento e o que esperava encontrar na nova aventura?

- A primeira abordagem aconteceu em setembro/outubro de 2023. Na altura, chamou-me a atenção por lá estarem o mister Ricardo Soares e o Fábio Abreu, que conhecia do tempo no Moreirense. No entanto, não imaginava que pudesse realmente acontecer. A verdade é que o interesse foi crescendo. Tive oportunidade de falar com o mister, que me falou muito bem do clube e da sua grandeza.

É certo que só acreditamos nas coisas quando as vemos, e posso dizer que foi uma agradável surpresa o nível de paixão que os adeptos têm aqui na China.

A grandeza do clube, em termos de exigência, está ao nível dos grandes em Portugal. As pessoas vivem intensamente o clube, sentem muito tanto as vitórias como as derrotas. Sinto-me bastante realizado, porque era precisamente isso que procurava nesta fase da minha carreira: exigência, mas também uma componente financeira importante.

- Como descreve as infraestruturas que encontrou no clube?

- A nível de estádio, posso dizer que se equipara ao Estádio da Luz ou a Alvalade. Temos uma média de 52 mil pessoas por jogo, numa capacidade total de 60 mil — o estádio está praticamente sempre cheio ao longo de toda a época.

Em termos de infraestruturas, tenho uma excelente novidade: o clube inaugurou recentemente o novo centro de estágio, que está muito bem equipado. Antes treinávamos numa base com dois campos e um ginásio, mas não havia espaço para nos equiparmos, nem para refeições ou sala de vídeo. Por isso, ficávamos num hotel a cerca de cinco minutos do campo de treinos, e era necessário apanhar o autocarro sempre que íamos para lá. Agora temos tudo no mesmo local, o que trouxe uma enorme melhoria ao nosso dia a dia. É um clube grande, ao nível de um top 3 em Portugal.

- Alguma dificuldade para se adaptar ao campeonato e ao futebolista chinês?

- A principal dificuldade que sinto aqui é o entendimento deles sobre o jogo. Há qualidade individual, sem dúvida, mas o grande desafio está em eles perceberem o jogo como um todo. Isso tem muito a ver com a formação — ainda falta algum conhecimento nesse sentido, e é também por isso que vêm muitos treinadores estrangeiros.

O que senti no ano passado foi que as ideias propostas — seja em exercícios, seja em alterações defensivas ou ofensivas — levavam muito mais tempo a ser assimiladas. Enquanto em Portugal, ao fim de 2-3 meses, a máquina já está oleada, aqui o processo é bastante mais demorado.

Estava habituado a um contexto em que todos entendiam bem o jogo coletivo, e aqui muitas vezes acaba por se cair num jogo mais individual, em situações de 1 para 1.

Guga destaca grandeza do Beijing Guoan
Flashscore

- Nota-se que está mais adaptado. Sente que agora é muito mais fácil para si jogar este tipo de futebol? Procuram-no mais por sentirem que está acima da média?

- O que sinto é que, no ano passado, tudo era uma novidade para mim. Comecei a época com já 6-7 meses acumulados, depois fiz mais uma pré-época e entrei num campeonato que se prolonga até novembro — numa altura em que, em Portugal, já estaria de férias em junho. Torna-se exigente, sem dúvida.

Agora as coisas estão a correr um pouco melhor, sobretudo a nível de números, porque já estou mais adaptado à liga e aos jogadores. No ano passado, aproveitei e diverti-me muito a trabalhar com o mister Ricardo Soares. E este ano tive a sorte de encontrar um treinador cujo estilo de jogo é precisamente aquele em que mais gosto de jogar. Fico muito contente por estar a corresponder e por sentir essa evolução.

- Como é trabalhar com o Quique Sétien?

- Para um jogador, ter na sua equipa um treinador que já trabalhou com alguns dos melhores do mundo gera naturalmente curiosidade — queremos perceber a sua forma de trabalhar e de estar. Está a ser uma experiência incrível, estou a aprender muito com as ideias que ele traz.

Sempre gostei do futebol espanhol, já o conhecia dos tempos em que esteve no Bétis, e agora poder desfrutar disso de perto é muito bom.

- Ele é próximo dos jogadores?

- Por ele ser espanhol e eu português, há naturalmente uma certa proximidade. Mas mesmo com os jogadores chineses ele faz um grande esforço para estar sempre próximo e criar uma boa relação. Gosta de entrar em brincadeiras, embora nem sempre seja fácil, porque o nosso sentido de ironia não é o mesmo que o deles e, por vezes, a tradução também não ajuda — o que ele quer dizer nem sempre sai da mesma forma quando é traduzido.

O rendimento de Guga nos últimos jogos
O rendimento de Guga nos últimos jogosFlashscore

- Como são os jogadores chineses no dia a dia de balneário?

- Foi muito diferente, até porque antes não tínhamos aquele momento de balneário. Equipávamo-nos no hotel, em quartos de dois — vestíamos o equipamento, tomávamos o pequeno-almoço, fazíamos ginásio e íamos para o campo. Faltava-nos esse momento de convívio no balneário e sinto que, em certos momentos da época, isso acabou por nos atrapalhar um pouco.

Estava até a comentar hoje que esta é, na verdade, a primeira vez que estamos a viver uma verdadeira experiência de balneário fora dos dias de jogo — e nota-se uma envolvência diferente. Espero que este upgrade que houve nas condições seja benéfico para todos.

- O campeonato é competitivo?

- É um campeonato competitivo — não há jogos fáceis. Não diria que o nível global é muito alto, mas as equipas do top 6 ou 7 têm bons jogadores, tanto chineses como estrangeiros.

Embora o campeonato já não tenha os grandes nomes que teve no passado, ainda se encontram estrangeiros de muita qualidade. Equipas como o Shanghai Port, o Shanghai Shenhua, o Chengdu ou o Shandong são realmente muito fortes.

O ano passado tivemos muitas dificuldades em competir com as duas equipas de Xangai — ficámos a cerca de 20 pontos de diferença. Este ano, o nosso objetivo é claro: queremos lutar pelo título.

- Para já, são a única equipa ainda sem derrotas...

- É verdade que empatámos dois jogos que podíamos perfeitamente ter ganho, mas sinto que temos uma equipa focada, unida e com vontade de fazer algo diferente esta época.

Guga em destaque no campeonato chinês
Guga em destaque no campeonato chinêsArquivo Pessoal

"Evoluí bastante em vários aspetos do meu jogo"

- O que mudou em si graças a esta experiência no Beijing Guoan?

- Houve um período de adaptação, naturalmente. Este ano, as coisas estão a correr bem a nível individual. Sei que pode existir a perceção de que o Guga foi para a China e estagnou em termos futebolísticos, por estar fora dos holofotes. Mas, sinceramente, sinto que evoluí bastante em vários aspetos do meu jogo — sobretudo na vertente ofensiva.

Tive a sorte de poder aprender com o melhor do mister Ricardo Soares e, agora, com o Quique Setién. Em termos de números, tenho conseguido registar estatísticas interessantes para a minha posição, o que também reflete essa evolução.

- Pode existir a ideia que terá ido para a China descansar, mas a verdade é que os números mostram um alto rendimento...

- Estaria a mentir se dissesse que o primeiro pensamento não passou pela vertente financeira — claro que foi um fator. Mas depois encontrei um contexto que me exige muito a nível individual, porque aqui as pessoas são realmente exigentes. Sempre fui muito profissional, tenho 27 anos e sinto que ainda tenho muito espaço para evoluir. E, de facto, aqui tenho evoluído como jogador.

Existe uma grande responsabilidade para quem vem como jogador estrangeiro — espera-se sempre que sejamos uma mais-valia, e sinto essa responsabilidade diariamente. Quero corresponder às expectativas.

Guga elogia Ricardo Soares e Quique Sétien
Flashscore

- Adeptos. É sempre uma questão muito importante: os chineses vivem muito o futebol?

- Em praticamente todos os jogos, os estádios estão cheios ou quase cheios. Uma coisa que achei curiosa é que, ganhes, percas ou empates, os adeptos ficam sempre à tua espera. No final, a equipa da casa dá uma volta ao estádio para agradecer aos adeptos — e eles ficam lá até ao fim. Em Portugal, por exemplo, ao minuto 88 ou 89 já vês muitas pessoas a sair do estádio, e quando vais aplaudir no final, já boa parte foi embora. Só por isso, já valeu muito a pena ter esta experiência.

As pessoas não têm noção — o ambiente aqui é incrível. No próximo jogo em casa, os meus pais vão ter a oportunidade de assistir ao vivo, e tenho a certeza de que vão sentir aquilo que eu sinto em campo. Os adeptos aqui são realmente muito apaixonados.

- O facto de jogar sob mais pressão ajudou-o a crescer em algum aspeto?

- Foi uma mudança drástica. Por muito respeito e carinho que tenho pelo Rio Ave — e adoro o clube —, a média de público rondava os 3 a 4 mil especadores. De repente, mudei para uma realidade em que jogo regularmente perante 50 mil pessoas, e isso é uma diferença enorme. São experiências que nunca vou esquecer.

- Eles estão muito satisfeitos consigo, ao ponto de pedirem que o Guga renove o contrato que termina no final deste ano...

- Estando tão longe do país, é muito bom sentir esse reconhecimento por parte dos adeptos. Fico muito contente, porque é sinal de que estão a gostar do meu trabalho. Agora é continuar a dar o meu melhor e vamos ver o que o futuro nos reserva.

- Alguma bandeira portuguesa nas bancadas?

- Sim, porque os cartazes podem ser tanto para mim como para o Fábio (Abreu). Há sempre muitos cartazes — vejo imensos. E todos os dias, no final dos treinos, há sempre 20 a 30 pessoas à porta a pedir autógrafos. É uma autêntica loucura! Mas é muito bom sentir esse carinho.

Quique Sétien é o treinador do Beijing Guoan
Quique Sétien é o treinador do Beijing GuoanBeijing Guoan Football Club

"Há tanta gente que algumas pessoas nem sabem que o Beijing Guoan existe"

- Como é viver numa cidade gigante com mais de 20 milhões de habitantes? Costuma ser abordado na rua?

- Quando chegas à China para viver, precisas de, pelo menos, um mês para te adaptares a 100%. É tudo diferente. Tens as aplicações deles, todas em chinês. Não há WhatsApp — fazes tudo através das aplicações locais: pagamentos, carregar o telemóvel, contas da casa… tudo mesmo!

Em termos de abordagens, claro que quando estou perto das infraestruturas do clube há muitas abordagens por parte dos adeptos. Mas se vou passear ao centro da cidade, já é raro alguém abordar-me. É um país com tanta gente… há muitas pessoas que seguem o futebol, mas também há outras que nem sabem que existe o Beijing Guoan. É engraçado perceber essas diferenças.

- Aqui em Portugal, num Benfica ou Sporting, isso seria impossível...

- Sim, sim. Por exemplo, um jogador do Benfica ou do Sporting, se for jantar fora, toda a gente vai reconhecê-lo. Aqui, eu posso ir jantar fora e ninguém sabe quem sou. (risos) É um contraste engraçado!

Beijing Guoan segue sem derrotas esta época
Beijing Guoan segue sem derrotas esta épocaFlashscore

- Tem tido curiosidade em visitar e conhecer a cultura deles?

- Desde que cá estou, tentei sempre visitar as coisas que qualquer turista deve fazer quando vem a Pequim. Fui à Grande Muralha e aquilo é mesmo imponente — é enorme! Mas só o facto de estares lá e pensares em toda a história que aquilo representa… é incrível. Também gosto muito de experimentar os restaurantes chineses — faz parte da experiência e tem sido uma descoberta muito interessante.

- E é fácil comunicar com eles?

- No meu dia a dia com a equipa é super fácil. Toda a gente percebe inglês e muitos até falam português, porque alguns jogadores já passaram por Portugal ou tiveram colegas brasileiros por aqui. Agora, no dia a dia fora do clube, na rua, é um pouco mais complicado — especialmente com as pessoas mais velhas, na restauração ou quando se trata de receber encomendas. Aí a barreira da língua ainda se sente bastante.

- O Guga já sabe algumas palavras em mandarim?

- Só sei algumas palavras. É mesmo muito difícil. Já sei dizer 'obrigado', 'um', 'dois', 'três'... mas é uma língua bastante complicada de aprender.

Guga cumpre segundo ano em Pequim
Guga cumpre segundo ano em PequimArquivo Pessoal

Do Algarve a Lisboa, com o 'assalto' no centro de estágios: "Ainda hoje me rio imenso"

- Vamos até ao início da sua carreira. Com 11/12 anos, o Guga deixa o Algarve e muda-se para Lisboa. Como foi esse momento?

- Admito que, na altura, essa mudança para o Benfica foi um grande salto. Fui para o centro de estágio com 12 anos e, sinceramente, não tinha noção do que era a vida. Com o passar dos anos — as primeiras internacionalizações, as pessoas a começarem a falar de mim — comecei a olhar para as coisas de forma diferente. Já não era apenas o miúdo de 12 anos que tinha deixado os pais para ir jogar para Lisboa.

As coisas correram bem, tínhamos uma geração muito talentosa e, com o tempo, fui percebendo que podia mesmo fazer carreira no futebol.

- Como foi para um miúdo ver que alguns colegas iam ficando pelo caminho à medida que o tempo ia passando?

- O que nós sentíamos era que já sabíamos, de antemão, que no final da época vinha a famosa ‘carta das dispensas’. Havia sempre aquela expectativa sobre quem iria continuar e quem não. Na altura, não compreendíamos muito bem, mas hoje percebo. Havia sempre algumas surpresas: jogadores que jogavam com regularidade e acabavam dispensados, e outros que quase não jogavam, mas recebiam a carta para continuar. Ou seja, os treinadores viam potencial ali — era preciso paciência e perceber que, com trabalho diário, os frutos poderiam ser colhidos mais à frente.

O melhor exemplo disso era o Bernardo Silva. Não era titular, mas no último ano de juniores foi aquilo que todos vimos. É a prova de que às vezes é preciso tempo e acreditar.

Guga recorda brincadeiras na formação do Benfica
Flashscore

- Agora com alguma distância, o que é que o Benfica lhe deu?

- A minha educação como pessoa, a base da minha personalidade, foi moldada dentro de um centro de estágio, a conviver diariamente com 30 ou 40 miúdos, a aprender um pouco com todos, de vários cantos do mundo. Aprendi imenso durante os anos que lá estive.

O Benfica prepara os jogadores não só para corresponderem em campo, mas também fora dele. Muitas das coisas que, pela idade, naquela fase mais rebelde da adolescência, poderia ter feito noutras circunstâncias, acabei por vivê-las e aprender a geri-las dentro do ambiente do centro de estágio.

- Alguma história que possa ser contada?

- Com 13 ou 14 anos, tivemos a brilhante ideia de assaltar a cozinha do centro de estágio, todos encapuzados. (risos) Na altura, o Powerade era a bebida da moda — era 'a' bebida! A equipa A recebia paletes, nós descobrimos onde as guardavam, juntámo-nos todos e fomos lá ‘roubar’ umas quantas. Era este tipo de brincadeiras que fazíamos. Ainda hoje me rio imenso quando me lembro disso. (risos)

Guga destacou-se ao serviço do Rio Ave
Guga destacou-se ao serviço do Rio AvePATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

O calvário das lesões e Luís Freire: "Sou-lhe muito grato"

- O Guga sofreu três lesões graves numa fase muito importante da sua carreira, aos 19/20 anos, numa altura de afirmação em contexto sénior... Como recorda essa fase?

- Sentia que não havia explicação. Duas lesões gravíssimas, mais um pé partido, tudo num espaço de tempo tão curto… As pessoas à minha volta sentiam que depois disso eu não ia conseguir atingir o nível que mais tarde viria a alcançar. Mas, na minha cabeça, sempre tive o objetivo muito claro: recuperar bem e, quando voltasse, mostrar a todos que era possível regressar em grande forma.

Estive um ano e meio a recuperar de lesões. Conheço poucos casos semelhantes ao meu, nesse sentido, e estou muito grato ao Benfica por todo o apoio que me deram, tanto na reabilitação física como a nível psicológico. Foi um momento-chave na minha carreira. E o meu maior orgulho foi mesmo ter conseguido recuperar de todas essas lesões, chegar ao nível que atingi no Rio Ave e voltar a pôr as pessoas a falar de mim em contextos de topo.

Guga teve três lesões graves no início da carreira
Flashscore

- O que foi mais difícil: físico ou psicológico?

- A parte mais difícil foi mesmo a componente mental. Não era tanto o que tinha de fazer para recuperar — isso eu sabia e estava focado. Mas, por vezes, o mais duro era sentir que a porta da equipa A se tinha aberto naquele momento para mim… e depois, por causa do contratempo, acabou por se abrir para alguns colegas meus. Ficava genuinamente feliz pelo sucesso deles, claro, mas ao mesmo tempo não conseguia evitar aquele pensamento: ‘podia ter sido eu’. Essa foi sempre a parte mais difícil de controlar a nível emocional.

- Seguiu para a Grécia e passou por Famalicão e Rio Ave. Quando percebe que as pessoas voltaram a reparar em si?

- Quando cheguei ao Famalicão, fui titular até outubro e senti que as pessoas voltaram a falar de mim. Mas depois não tive a continuidade necessária para fazer uma época regular. Seguiu-se a saída para o Rio Ave, e houve uma pessoa que foi muito importante no meu percurso: o Luís Freire.

Nos primeiros seis meses, acabámos por descer de divisão. Depois veio todo o processo de decidir se iria sair ou ficar. E lembro-me perfeitamente de uma conversa que tive com ele — disse-me que via em mim capacidade para voltar ao patamar onde tinha sido formado. E eu, naquele momento, olhei para ele e pensei: ‘Mas o que é que estás a dizer? Venho de uma descida de divisão, vamos entrar num contexto de Segunda Liga… e tu estás a dizer que vês potencial para eu voltar a um contexto de Liga grande?’.

Ele disse-me: ‘Se ficares, vamos ser campeões. E eu vou trabalhar para que sejas o melhor jogador da liga.’ E a verdade é que foi exatamente isso que aconteceu — fomos campeões, fui considerado o melhor jogador da Segunda Liga e, no ano seguinte, as coisas correram muito bem. Senti que estava novamente perto do nível que me permitia sonhar com uma equipa grande em Portugal. Sou-lhe muito grato pela insistência. Se naquela altura não tivesse aparecido um Luís Freire no meu caminho, se calhar a minha carreira teria tomado outro rumo.

Guga destaca papel de Luís Freire
Flashscore

- Houve ou não possibilidade de ir para um grande? O que era verdade?

- A verdade é que essa possibilidade existiu. Eu próprio cheguei a reunir-me com pessoas de um determinado clube... mas as coisas acabaram por não acontecer. É o futebol — há aspetos que não conseguimos controlar. O que posso controlar é fazer uma grande época e colocar o meu nome em cima da mesa. Depois, as decisões que são tomadas não dependem só de mim. Não aconteceu e, a partir daí, tive de tomar outras decisões para a minha carreira — e não me arrependo de nada.

- Quando surge a possibilidade de ir para a China, não pensou que o caminho para um grande em Portugal poderia ficar mais difícil a partir dessa decisão?

- Também pensei nisso. Foi curioso, porque dei o meu 'sim' logo depois do jogo na Luz, onde fiz um bom jogo e marquei um golo. Claro que podia ter ficado naquela expectativa e esperança de que alguém aparecesse, mas o que senti foi que, no mercado de verão, essas oportunidades não surgiram. Já estávamos a 15 de janeiro e continuavam sem aparecer. E pensei: não posso ficar eternamente à espera de um grande ou de uma equipa da Europa.

Para mim, teria sido mais confortável continuar em casa, mas há muitas equipas no mundo que conseguem oferecer não só boas condições financeiras, mas também um projeto desportivo interessante. É verdade que estou um pouco mais longe dos holofotes da Europa, mas aqui é todo um outro mundo, na Ásia — e são experiências que vão ficar para sempre.

Guga deu um salto no seu jogo
Guga deu um salto no seu jogoArquivo Pessoal

"Sempre que joguei contra os grandes, nunca me senti inferior a ninguém"

- O Guga está em final de contrato. Se lhe ligasse alguém de Portugal...

- Estou numa fase da carreira em que estou aberto a ouvir todas as possibilidades. Faltam seis meses para terminar o meu contrato, que acaba a 31 de dezembro, por isso não fecho portas a ninguém. Em Portugal, sinto que deixei uma boa imagem e uma marca positiva por onde passei — por isso, quem me conhece sabe o que pode esperar de mim. Também sinto que evoluí bastante como jogador, por isso vamos ver o que o futuro me reserva.

Portugal é o meu país e digo isto muitas vezes: só damos verdadeiro valor quando saímos. Tenho sempre muitas saudades.

- Muitas saudades do futebol português?

- Tenho, claro. Fui muito feliz nos clubes por onde passei, especialmente no Rio Ave — encontrei uma cidade que me fez sentir em casa. Sempre que tenho oportunidade, gosto de acompanhar o futebol português. Às vezes ouço dizer que já não tem a qualidade de há uns anos, mas eu penso exatamente o contrário. Acho que continua a haver muito talento e um futebol bastante competitivo.

Guga falou sobre a capacidade para jogar num grande em Portugal
Flashscore

- Neste momento, sente que tem capacidade para jogar em qualquer clube de Portugal?

- O que posso dizer é que este ano não joguei contra as equipas grandes de Portugal, por isso não posso responder diretamente a essa pergunta. Mas olhando para trás, sempre que joguei contra os grandes, nunca me senti inferior a ninguém. Aliás, se pensar bem, os jogos em que mais me destaquei foram precisamente contra as equipas grandes, especialmente contra o Benfica. Na altura, isso até me fez pensar nessa possibilidade (de jogar por um grande). Neste momento, teria de voltar a jogar contra eles para poder avaliar novamente.

- Mas a saída é possível de acontecer sair antes do final do ano?

- Não sei, com os mercados abertos… a nossa época aqui está a meio, enquanto na Europa as épocas estão em stand-by. A verdade é que não sei o que poderá acontecer. Estou disponível, claro, mas o clube também terá uma palavra a dizer. Nunca estive numa situação assim, por isso estou entusiasmado para ver o que poderá surgir.

- Sente-se na plenitude das suas capacidades?

- Sim, sinto que em Portugal poderá haver clubes interessados, ainda mais estando em final de contrato. Mas é algo que terei de analisar com a minha família e com o meu empresário, porque são decisões importantes para a minha carreira. Quero escolher o melhor caminho, com cabeça e ponderação.

Os próximos jogos do Beijing Guoan
Os próximos jogos do Beijing GuoanFlashscore

- De que forma o nascimento do seu filho influenciou a sua visão sobre a carreira e o futuro?

- Claro. Falo muito sobre isso com a minha esposa. Aqui estamos longe da família, estamos só os três, sem qualquer tipo de ajuda. E já criar um filho com apoio não é fácil, imaginem estando num país tão distante do nosso, só eu e ela a cuidar de um bebé de nove meses. Tem de haver muita entreajuda entre nós.

Por isso, a próxima decisão será pensada em função da nossa família e do que for melhor para nós. Estar longe não é fácil e, quando se está assim, tem mesmo de valer a pena.

- Guga, o que gostaria que dissessem sobre si no dia em que decidir terminar a carreira?

- Espero, acima de tudo, que digam que fui um profissional de excelência em todos os clubes por onde passei. Tenho conseguido deixar um pouco de mim em cada um deles e, ainda hoje, guardo recordações de todos. Gostava que me vissem como um bom amigo, um bom profissional, uma boa pessoa… e, claro, um bom pai.

Mais sobre o Flash pelo Mundo

Entrevista de Rodrigo Coimbra
Entrevista de Rodrigo CoimbraFlashscore