- Terceira época como diretor técnico do Shanghai Shenhua. Que balanço faz desta experiência?
- A experiência tem sido gratificante, muito exigente e intensa. Desde a minha chegada, há dois anos e meio, muita coisa aconteceu e com avanços significativos em várias áreas. A gestão do clube tinha mudado em janeiro de 2023 e nós entramos em agosto de 2023. Criámos o departamento técnico, com responsabilidades de decisão em todo o futebol da formação. O balanço destes quase três anos é que foram intensos, com muito trabalho, muitas decisões importantes, com resultados satisfatórios, mas ainda com um longo caminho a percorrer.
- Que clube encontrou?
- A China tem uma cultura muito diferente da europeia e a sua história no futebol ainda é muito recente. O Shanghai Shenhua foi fundado em 1993, ao contrário dos clubes na Europa que têm mais de 120 anos. O Shanghai Shenhua é um clube que está bem estruturado e com valores muito fortes. Tem uma equipa sénior já com alguns troféus e que luta todos os anos para conquistar o título nacional. Tem participação regular na Liga dos Campeões da Ásia e normalmente cede vários jogadores a seleção nacional. Tem tradição na formação e aposta em jogadores da formação. Com a anterior gestão e também com a pandemia, o clube perdeu a organização nas várias áreas e o seu centro de treinos apresentava sinais de degradação.

- Quais foram os objetivos colocados aquando da formação do departamento técnico?
- Com a formação do departamento técnico a responsabilidade aumentou e os objetivos foram bem claros: formar jogadores para a equipa principal e colocar jogadores no trajecto da seleção nacional. Começámos por construir as equipas técnicas multidisciplinares (treinador, adjunto, preparador físico, treinador de guarda-redes, analista e fisioterapeuta) e dar-lhes formação, identificar os talentos em cada equipa da formação, definir um modelo de jogo adequado à dimensão do clube, trabalhar na formação contínua dos treinadores e na metodologia do treino. Paralelamente a isso, investimos no recrutamento de jogadores que pudessem ser mais-valias no futuro e no trabalho sobre os jogadores mais talentosos. Formámos o gabinete de análise e performance, dando formação a preparadores físicos e analistas. O clube investiu na aquisição de materiais e ferramentas tecnológicas para melhorar o trabalho realizado nas equipas técnicas e elevar e monitorizar o rendimento dos jogadores. Temos uma aplicação de gestão de todos os recursos com o controlo de toda a informação de planeamento de treinos, jogos e tudo o que se relaciona com jogadores, jogo e treinadores. Fazemos o controlo do treino e jogo com Gps “catapulte” desde os sub-15 até aos sub-21, temos câmaras de filmar e várias ferramentas de análise de jogo. Durante estes dois anos permitiu-nos ter maior controlo do processo e identificar e potenciar os jogadores mais talentosos. Como consequência, passámos a estar com mais regularidade nas fases decisivas dos vários campeonatos. Aumentar o número de jogadores nas seleções nacionais e, o mais importante de tudo, em dois anos conseguimos fazer a estreia de quatro jogadores na equipa principal, entre os 17 e 20 anos, com dois deles a terem presença regular no onze inicial.
- As condições são muito diferentes das que encontrou na Europa?
- Sim, são. Em 2025 iniciámos obras de renovação no centro de treinos, com uma grande participação na elaboração e acompanhamento do projeto do departamento técnico. Está previsto finalizar em dezembro de 2026. Os 11 relvados estão a ser melhorados, com criação de áreas de treino intensivo, terão iluminação e um novo sistema de regas. Estão a ser construídos dois ginásios, um para a formação outro para o futebol profissional. Todas as habitações dos jogadores, restaurante e estruturas de apoio estão a ser renovadas e outras a serem construídas. O mini-estádio está a ser renovado e estão a construir também um campo indoor de futebol de 8 para treino em dias de inverno e de apoio a todas as equipas. A estrutura de futebol, parte técnica, departamento médico, parte administrativa e diretiva terá novas instalações e apetrechadas com as melhores condições de mercado. Queremos tornar o Shanghai Shenhua um clube de referência na qualidade das instalações, no trabalho desenvolvido nos escalões de formação e um clube que luta por títulos.
- Quais as principais diferenças entre ser treinador e ser diretor técnico?
- São cargos totalmente diferentes no que concerne ao tipo de tarefas a desempenhar, os objetivos a cumprir e a diversidade de áreas que temos de abranger. No que diz respeito a valores e princípios de gestão de equipas, esses são os mesmos. Nas duas áreas colocamos níveis de exigência elevados, a gestão é feita na base do respeito, frontalidade e profissionalismo, os valores do clube estão em todas as nossas ações e todos queremos lutar para ganhar, e cumprir como os objetivos que foram propostas. No que concerne à operacionalização, temos diferenças significativas. O treinador tem intervenção no modelo de jogo para uma equipa, na gestão dos jogadores, gestão da equipa técnica. A acrescentar o planeamento das sessões de treino e jogos com consequente, avaliação constante dos resultados. O treinador tem de gerir também a relação e comunicação com a Direção, com a imprensa e com os adeptos. O nível de exigência e avaliação baseia-se naturalmente nos resultados desportivos associados a dimensão do clube. O director técnico tem uma função muito mais abrangente, e pode e deve orientar toda a filosofia de futebol de um clube. Também tem a sua equipa de trabalho, são coordenadores de várias áreas, quer as equipas técnicas das várias idades, quer também os jogadores de todos os escalões. É uma posição que não está tão exposta ao exterior e ao resultado de um jogo de futebol, mas requer um acompanhamento constante e uma procura de soluções de problemas que nos aparecem todos os dias. Estamos a falar da gestão de sete equipas técnicas, mais de duzentos jogadores, várias instalações comuns, o que requer uma antecipação de planeamento e uma constante preparação e adaptação. Preparar as competições para estas equipas requer também uma preparação antecipada e cuidada. Normalmente a maior parte das competições não são regulares, são jornadas concentradas distribuídas ao longo do ano, e na maioria das vezes realizadas fora de Shanghai, onde requer viagens de avião, acomodação e alimentação, para uma semana a duas de concentração, em comitivas de 30 pessoas. O nível de complexidade e exigência é muito elevado para toda a estrutura e para o departamento técnico.

- Quando falamos em futebol chinês, lembramo-nos imediatamente da aposta que foi feita em grandes nomes, antes do exemplo recente da Arábia Saudita. Como está o futebol chinês atualmente?
- Essa aposta foi muito evidente antes da pandemia, nas décadas de 2000 até 2019. Foram muitos os jogadores e treinadores de alto nível de rendimento que foram recrutados pelos clubes com apoio governamental. Era muito estatuto e o currículo desses profissionais, com salários que desafiavam e ultrapassam os grandes clubes da Europa. Foi uma tentativa de reabilitar o futebol chinês, promovendo o futebol com aumento da qualidade dos espetáculos e por consequência o aumento de espectadores e praticantes da modalidade. Os clubes, apoiados pelo governo, apostaram na construção de centros de treino e de estádios de qualidade e o futebol tornou-se mais competitivo e de maior qualidade, trazendo os adeptos para os estádios. Foi visível a paixão dos chineses pelo futebol, o que se traduziu no aumento de praticantes e no aumento de competições nas várias idades e em várias cidades do país. No entanto, mesmo os clubes que ganhavam títulos não tiveram retorno financeiro, o que provocou a falência de muitos clubes. O investimento feito pelos clubes-empresa, muitas delas associadas ao governo, não tinha retorno e não cobriam os orçamentos iniciais. Além disso havia muita corrupção na sua organização, vindo de dirigentes, treinadores e jogadores. Posto isto, já um pouco antes de 2019, o investimento baixou significativamente, os clubes perderam a capacidade de recrutar jogadores e treinadores com currículo, veio a pandemia e o futebol entrou noutra fase de reestruturação. Estão a ser dores de crescimento de um país que tem muito potencial, mas que as diferenças culturais e a maneira como se vê o processo de crescimento de jogadores está a limitar o desenvolvimento e crescimento sustentado dos talentos e consequentemente do futebol. Posto isto, ainda não foi identificado o melhor modelo de desenvolvimento do futebol, com razões que se prendem com fatores culturais, com a falta de cultura no futebol, com a dimensão do país, com as dificuldades de organização de quadros competitivos, com o sistema de ensino, que é limitador da prática do futebol, com muitas organizações a decidir o percurso dos jogadores (sistema educativo, federações, associações, governo) e também ao negócio futebol. Ainda não é um negócio rentável que traga retorno nas várias áreas envolventes.
"O jogador chinês tem muito talento"
- A aposta em jogadores consagrados deu lugar à aposta na formação do jogador chinês?
- Sim, tem havido uma tentativa de apostar nos jovens jogadores. Percebe-se que a associação de futebol da China e as federações das cidades estão a ter essa preocupação, tentando encontrar soluções e formas de desenvolver o futebol chinês e potenciar o muito talento que existe. O jogador chinês tem muito talento, muita disciplina e um excelente comportamento competitivo. Existem muitos jogadores talentosos entre os 10 e 15 anos, mas depois, esses mesmo jogadores acabam por não se afirmar e há um contexto de falta de projeto para esses jogadores entre os 15 e 20 anos. Existe muita dificuldade no recrutamento dos melhores jogadores pelas equipas mais fortes. Os melhores jogadores não treinam, nem jogam nos contextos mais competitivos. Falta a proteção dos atletas mais talentosos. Os clubes perdem o seu controlo muito cedo, deixando-os, grande parte do tempo, entregues às federações das cidades, às escolas e à federação, para garantir resultados competitivos, esquecendo-se de que são jogadores em formação e não profissionais de futebol aos 15 e 16 anos. É difícil verificar nas equipas da 1.ª liga e na principal seleção nacional jogadores entre os 17 e 23 anos a jogar com regularidade. Nestas idades, onde seria muito importante ter uma competição forte e regular, é uma competição irregular e demasiado desnivelada, o que deixa de ser desafiante e potenciadora de crescimento. É urgente ter uma competição onde os jovens entre os 18 e 22 anos possam competir com adultos, de forma a aproximar o futebol profissional do futebol de formação. Tenho receio de que algumas medidas que estão a ser pensadas possam aumentar essa distância, o que se será muito prejudicial ao futebol a curto prazo.
- Trabalhou na formação do Sporting e agora está na China. Que diferenças existem nestas duas realidades?
- Do ponto de vista das instalações e condições para o desenvolvimento do futebol, a China está muito à frente do nosso país, quer pequenos e grandes clubes. Existem centros de treino de excelência espalhados por todo o país, quer em escolas, clubes, federações de cidades, associação de futebol da China e entidades privadas. Do ponto de vista da organização interna e dos mecanismos que potenciam e levam os jogadores ao alto rendimento, a diferença é significativa. Em Portugal e particularmente no Sporting, estamos melhor preparados e temos uma cultura de futebol de formação muito enraizada, fruto de muitos anos de erros, de avanços e recuos, de estudo e de estruturas que se modernizaram a criar conhecimento, como as universidades as associações, a federação, os clubes e até entidades privadas. Somos muito fortes a potenciar jovens jogadores, demos um salto qualitativo e quantitativo na criação das equipas B e campeonato de sub-23, e somos muito competentes na formação de treinadores. Tudo isto é visível na qualidade do jogador nacional, a competir nas melhores equipas e nos melhores campeonatos e os treinadores portugueses que além-fronteiras têm mostrado todo o seu talento e capacidade, não só nos melhores campeonatos, mas também em países de menor dimensão futebolística e em seleções nacionais. Concluindo, somos um país pequeno, mas desde a Federação até aos clubes existe um propósito e um sistema que ajuda e potencia os jovens jogadores. Esta interligação entre o sistema de ensino, o treino e a competição, passando pelo recrutamento e seleção dos jogadores talentosos, faz com que, com naturalidade, o talento visível nas idades mais jovens seja potenciado até ao alto rendimento, com grande aproveitamento dos clubes na aposta nas equipas principais e no retorno financeiro que aí advém das transferências desses jogadores.
"Portugal ganhou o respeito do mundo do futebol"
- Passou também pela Seleção Nacional. Como tem visto a afirmação de Portugal? É uma das favoritas ao Mundial-2026?
- Representar a seleção portuguesa foi uma grande oportunidade e um grande orgulho. Sinto-me um privilegiado por fazer parte desta elite do futebol português. Fiz o meu melhor com muito profissionalismo e dignidade. Conheci todo o funcionamento das seleções, dos quadros competitivos, dos vários campeonatos e trabalhar com os jogadores de seleção acabas mais por aprender do que ensinar. Foram 4 anos com uma participação no Campeonato da Europa e uma participação num Campeonato do Mundo. Foram experiências e memórias inesquecíveis. Neste momento temos uma seleção que ganhou o respeito do mundo do futebol. Estamos com regularidade nas fases decisivas das grandes competições. Já ganhámos um campeonato da Europa e duas Ligas das Nações. E, mais importante de tudo isso, as grandes seleções do mundo reconhecem e respeitam a nossa história e a nossa competência. A nossa seleção é formada por jogadores ambiciosos e habituados a lutar por títulos. Estão desde muito jovens em equipas que lutam por trofeus e habituados à pressão dos grandes jogos. Numa mistura entre jovens talentos e jogadores maduros, ainda temos o melhor do mundo, podemos ser candidatos a estar na fase decisiva, que é a final. É uma prova muito especial, que requer, dentro e fora de campo, uma harmonia muito grande para se poder ganhar. Não somos favoritos, mas somos candidatos e com trabalho, boa preparação e sem criar problemas, dentro da complexidade que é uma seleção desta natureza, podemos sonhar. É necessário que nos momentos cruciais que se tenha a cabeça fria e o coração quente e que os líderes da equipa se assumam no sentido do objetivo comum.
- Somos favoritos?
- Favoritos, neste momento, parece-me que serão a Argentina, França, Alemanha, Espanha e Brasil, com uma segunda linha de países como Portugal, Inglaterra, Itália, a poder ter um papel decisivo.

"Tenho proposta de renovação por mais dois anos"
- E quanto ao Leonel Pontes treinador, faz parte do passado ou ainda pondera um regresso a essas funções?
- Sinto-me treinador todos os dias e ambiciono voltar aos relvados. Tenho como exemplos bons treinadores que passaram por esta função e mais tarde tiveram a oportunidade de realizar grandes trabalhos ao mais alto nível. Estou bem preparado para a função. Tenho 40 anos de futebol. A minha vida desde os 8 anos foi dedicada ao futebol. Nunca tive dúvidas de que queria seguir esta paixão e estou nela de corpo e alma. Jogar foi sempre a minha paixão, apesar de não ter atingido o alto nível de rendimento, mas trabalhei como treinador num dos melhores clubes formadores do mundo, fui treinador adjunto, treinador principal, fui treinador nacional, fui treinador principal na 1.ª liga de vários países, trabalhei dois anos em outras divisões inferiores, diferentes contextos, mas mais do que tudo ajudei muitos jovens a chegar ao alto rendimento, apostei e potenciei muitos jovens jogadores e foi com os melhores que aprendi a ser melhor treinador. Sei que a minha oportunidade vai chegar. Neste momento o meu contrato está a finalizar, mas já tenho proposta de renovação por mais dois anos. Estou cá e quero deixar trabalho feito e ajudar os jovens jogadores e os treinadores do Shanghai Shenhua a terem uma carreira virada para o alto rendimento. Quero deixar um legado no clube que se propague por muitos anos. Mas a oportunidade de voltar ao campo está sempre presente. Não queria terminar esta entrevista sem deixar um agradecimento ao clube pela oportunidade profissional que me proporcionou, como também a experiência de vida que é viver e sentir a China e a cidade de Shanghai. Um agradecimento especial ao José Pratas, que iniciou esta aventura, durante mais de um ano e que ajudou com a sua experiência e profissionalismo a construir o departamento técnico. Ao Ricardo Sequeira, que se juntou este ano à equipa de trabalho, e que com a sua juventude e irreverência acrescentou qualidade e novas dinâmicas ao departamento técnico.
