Lembram-se quando a Bola de Ouro era um prémio prestigiante? Uma cerimónia sóbria de celebração dos feitos de um jogador num determinado ano, em que mais do que o número de golos marcados, ou troféus conquistados, premiava-se a qualidade exibida dentro de campo? A partir de quando é que isso deixou de ser a norma e se tornou no circo mediático a que se assistiu na segunda-feira, com youtubers e streamers, num palco digno de Óscares e um argumento mais confuso do que um filme de Christopher Nolan?
O prémio, que já foi apresentado e entregue em conjunto com a FIFA (2010-2015), esteve envolto em polémica, com acusações de compras de votos, alegações de fraude e toda uma nuvem de fumo à volta dos resultados reais e dos critérios utilizados para escolher o melhor futebolista do mundo. Preocupada com isto, em 2021, a France Football, criadora do galardão, alterou o sistema de avaliação: o período em avaliação baseia-se na época desportiva e não no ano civil (portanto de julho de 2022 até agosto de 2023), o número de júris foi reduzido e os critérios clarificados para permitir um maior escrutínio.
Critérios e sistema de avaliação
O júri é composto por 100 jornalistas (um por cada país presente no top-100 do ranking da FIFA), que escolhe os cinco melhores por ordem. O primeiro classificado recebe 6 pontos, o segundo recebe 4 pontos, o terceiro 3 pontos, o quarto 2 pontos e o quinto 1 ponto. Há também a possibilidade de nomear um jogador favorito fora dessas cinco escolhas.
Para uma escolha "mais rigorosa", os critérios também mudaram: "As performances individuais têm agora primazia sobre as honras do clube ou seleção nacional, antes das considerações de fair play", pode ler-se no portal da France Football.
Em caso de empate, é tido em conta o número de citações na posição mais elevada (se um certo jogador tem mais votos em primeiro lugar do que o outro). Se ainda assim não for suficiente, o número total de nomeações para a Bola de Ouro também serve para desempatar.
Tudo muito bonito para permitir o escrutínio, mas se assim é, porque é que a lista final de pontuações só saiu este sábado e não ficou disponível desde logo após a cerimónia, na segunda-feira? E, já agora, como raio é que se soube, com quase duas semanas de antecedência, quem seriam os vencedores da Bola de Ouro masculina e feminina, tornando-se numa verdade absoluta, impossível de ser alterada, verificada ou debatida?
Já que aqui estamos, refiro também os critérios para os restantes prémios: no troféu Lev Yashin, para o melhor guarda-redes, os jornalistas propõe um top-3 dos 10 guarda-redes nomeados. Só o troféu Kopa, de melhor jogador sub-21, tem critérios diferentes, visto que o júri não é composto por jornalistas, mas sim por antigos vencedores da Bola de Ouro, que escolhem o seu top-3 entre os 10 jovens nomeados.
A "primazia das performances individuais"
Fica difícil saber por onde começar... mas vou tentar: porque razão Rúben Dias está em 30.º? Como é que um suplente (Julian Álvarez) fica à frente do indispensável e menino querido de Guardiola, Bernardo Silva? Osimhen teve uma época melhor do que a de Modric? Emiliano Martínez ganhou o prémio de melhor guarda-redes, mas Bono acaba à sua frente no ranking?!
Não nego que algumas destas questões possam ter explicações aceitáveis, mas duvido. Muito. Até porque receber as respostas num dia e a explicação para as mesmas só 5 dias depois dá muito tempo para se pensar em criar narrativas... ou em engenharia matemática para fazer com que os números batam certo. E afinal o que conta? A "primazia individual", os troféus coletivos nos clubes ou o Mundial? Tudo junto não pode ser, porque aí há um caso claro logo no arranque da contagem decrescente.
Vamos a dados: nenhum defesa conseguiu um lugar entre os 20 primeiros - uma questão eterna - e Rúben Dias é indiscutivelmente um dos três melhores centrais do Mundo. Na época passada fez 43 jogos pelo Manchester City, foi fundamental na conquista do triplete e na caminhada de Portugal até aos quartos de final do Mundial-2022. Foi escolhido para a Melhor Equipa da Época da Premier League e para a Melhor Equipa da Liga dos Campeões.
À sua frente ficaram o agora companheiro Josko Gvardiol, que na época passada atuou no RB Leipzig e foi seleccionado para a Melhor Equipa do Mundial-2022 ao serviço da Croácia, e Kim Min-Jae (Bayern de Munique), na altura serviço do Nápoles, conquistou a Serie A e ficou arredado nos oitavos de final do Mundial, goleado por 4-1 pelo Brasil.
Tanto a nível de performances individuais, como de títulos, nenhum fez melhor que o português formado no Benfica, portanto... qual é o critério? O Mundial-2022? Se assim for o caso, pode-se conceder Gvardiol que foi, de facto, o melhor central do torneio. Mas Rúben fez um melhor torneio do que Kim Min-Jae que, no entanto, está à frente dos dois.
À sua frente temos os casos de Odegaard (28.º) e de Saka (24.º), ambos vice-campeões da Liga inglesa numa corrida até à meta com o City. Presentes no melhor onze do campeonato, foram as duas grandes figuras na época passada do Arsenal. É certo que o norueguês não participou no Mundial, mas ainda assim não fez uma melhor época do que Musiala? Ou até Randal Kolo Muani?
O caso do inglês é ainda mais incompreensível. A jogar como extremo, Saka fez 15 golos e 11 assistências no clube, juntando mais três remates certeiros em quatro jogos no Mundial. Mais golos, mais jogos e mais assistências do que Kvaratskhelia, por exemplo, que também não participou no torneio das seleções. Se a justificação tem a ver com a presença na Liga dos Campeões - o Nápoles chegou às meias-finais, os gunners competiram na Liga Europa -, aceita-se, mas não é o mesmo critério utilizado com Rúben Dias, por exemplo.
O Mundial vale mais... mas só para alguns
Adiante... Griezmann teve um ano soberbo e foi o maestro da seleção francesa vice-campeã mundial, fechando a época com 18 golos e 24 assistências em todas as competições (67 jogos). No entanto, está no 21.º lugar, cinco posições atrás do ex-Bola de Ouro e compatriota Benzema (45 jogos), que não foi ao Mundial devido a lesão, fechou a campanha com 31 golos (apenas um pela seleção) e cinco assistências ao serviço do Real Madrid, conquistando o Mundial de Clubes e a Taça do Rei.
Nos guarda-redes, Courtois foi completemente ignorado entre os 30 primeiros apesar de ter sido o melhor guarda-redes da Liga dos Campeões, além de vencer o Mundial de Clubes. É certo que ficou arredado da fase de grupos do Mundial, mas pelo menos participou, ao contrário de Onana que ao final do primeiro jogo abandonou o estágio dos Camarões. O agora guardião do United fez uma soberba campanha na Champions e na Serie A, mas em nenhum dos critérios superioriza Courtois.
O incompreensível está ainda mais à frente. Emiliano Martínez foi um dos obreiros do título argentino no Mundial e merece ser reconhecido por isso, daí ter sido agraciado com o troféu Lev Yashin, de melhor guarda-redes da época. Mas então, porque é que está na 15.ª posição e Bono está na 13.ª? Recorde-se que, apesar do excelente Mundial, o antigo guarda-redes do Sevilha representou uma equipa que lutou para não descer da Liga espanhola. E os números não mentem:
Bono sofreu 67 golos(!) em 46 jogos (por Sevilha e Marrocos), Emiliano Martínez sofreu 47 golos em 48 jogos (Aston Villa e Argentina) e Onana sofreu 38 golos em 43 jogos (Inter de Milão e Camarões). Portanto, entre os três guarda-redes no top-30 ficou em melhor posição aquele que sofreu mais golos e tem a pior média de golos sofridos por jogo entre os 10 nomeados ao prémio Lev Yashin. E já que falamos no galardão, Ederson ficou em segundo lugar, mas não aparece nos 30 melhores. Não dá para entender...
E o que dizer sobre a posição de Bernardo Silva (4.649 minutos na época)? Elogiado vezes sem conta por Guardiola, o médio fulcral em todas as manobras do Manchester City ficou no nono lugar. Aparentemente não fez o suficiente para ficar à frente de Victor Osimhen (3.346), nem do suplente Julian Álvarez (3.131). O nigeriano, apesar de ter sido o melhor marcador da Serie A - apontou 31 golos no campeonato, mais dois no resto das competições -, não foi ao Mundial. O argentino brilhou no torneio, mas não foi, nem de perto nem de longe, tão fundamental como o português na conquista do triplete.
Atrás de todos estes ficou Luka Modric (4.481 minutos) que, aos 38 anos, carregou o Real Madrid na Liga espanhola, Liga dos Campeões, Mundial de Clubes e produziu mais um excelente torneio ao serviço da Croácia, mas ficou atrás de um jogador que só atuou na Serie A e outro que foi suplente de Haaland. Ora, olhando para os critérios da "primazia individual", não faz sentido que Modric e Bernardo Silva fiquem atrás de Álvarez.
Nos cinco primeiros, a questão é como se justifica o primeiro lugar de Messi. Porque, se olharmos para trás, só o Mundial não chega. E prova disso são as posições de Rúben Dias, Luka Modric ou Griezmann. Também Enzo Fernández, que fez meia época arrebatadora no Benfica e foi o motor da Argentina no Mundial, ficou de fora dos 30 nomeados. Portanto, se no caso de Álvarez houve valorização em excesso pelo Mundial, porque não houve para Enzo? Podem dizer que foi porque também ganhou o triplete e é mesmo aí que quero chegar no próximo capítulo.
A inconsistência do topo
Enquanto todos os outros 30 nomeados fizeram uma época sólida, Messi só precisou de jogar três meses, até ao final do Campeonato do Mundo. É certo que fez um torneio excecional, sete golos (quatro de grande penalidade) e três assistências, contando com o apoio de Di Maria, Enzo Fernández e Julian Álvarez. Mas, com o PSG celebrou apenas a conquista da Ligue 1 - disputada até à última -, tendo ficado arredado desde cedo da Taça de França e da Liga dos Campeões.
De recordar ainda que a época no clube não foi de boa memória. A eliminação da Champions frente ao Bayern de Munique e os tropeções sucessivos no campeonato trouxeram as nuvens e afastou o arco-íris da conquista do Mundial. O argentino terá saído mais cedo de um treino depois de ser assobiado no final da derrota caseira com o Rennes.
Para piorar a situação, no auge da novela da renovação do contrato, Messi faltou a um treino e viajou para a Arábia Saudita sem autorização para fazer uma campanha de publicidade no país, valendo-lhe um castigo - cortado a metade pelo pedido de desculpas e pela necessidade em garantir o título da Liga. O craque despediu-se do clube com um derrota em casa diante do modesto do Clermont e foi premiado com um coro de assobios por parte dos adeptos.
Por outro lado, houve Haaland que fez uma campanha estratosférica (57 golos e 10 assistências em 56 jogos) na primeira época em Inglaterra, que culminou na conquista da Liga inglesa, Taça de Inglaterra e Liga dos Campeões. Mais golos e mais troféus, mas sem presença no Mundial.
Também Mbappé fez uma época incrível (56 golos e 14 assistências em 60 jogos), com 8 golos apontados no Mundial e um hat-trick na final(!), algo inédito. O francês também viveu uma autêntica novela, mas como foi durante o verão e já finda a época desportiva 2022/23, não tem - ou não deveria ter - impacto nas escolhas para o galardão.
Recuando a 2010, Messi ganhou a Bola de Ouro porque tinha mais contribuições para golo do que Iniesta (vencedor do Mundial) e o neerlandês Wesley Sneijder (vencedor do triplete com o Inter, jogador com mais participações em golos da Champions, vice-campeão e melhor marcador do Mundial-2010 - em conjunto com Muller e David Villa). Portanto, nesse ano prevaleceu a "primazia individual".
Em 2018, Cristiano Ronaldo fechou o ano com mais contribuições para golo apesar de um péssimo ano na Juventus - que ainda assim foi campeã italiana -, mas Modric ficou com o troféu por ter vencido a Champions e ter carregado a Croácia até à final do Mundial-2018. Aqui prevaleceram os troféus.
Agora, em 2022/23, ganhou o argentino que venceu o Campeonato do Mundo e a Liga francesa. O vencedor do triplete e melhor marcador da época ficou em segundo e Mbappé, que juntou o melhor dos dois mundos, ficou no terceiro lugar. Aqui prevaleceu... o Mundial?
Conclusão... até à próxima edição
Messi conquistou a oitava Bola de Ouro porque ganhou o Mundial e estaria tudo bem se o critério tivesse sido uniforme ao longo de toda a votação e de todas as votações também. E o problema desta edição não é simples, porque não há apenas uma contradição, há várias, conforme vimos ao longo deste texto.
Se vale mais o Mundial, Benzema e Kvaratskhelia não podem ficar entre os 20 primeiros, nem Osimhen no top-10 , nem Rúben Dias e Griezmann tão abaixo. Se valem mais os feitos de um jogador numa época, o vencedor terá de ser Haaland porque dizimou toda a concorrência e ganhou as competições mais importantes em que esteve inserido. Se é a junção da performance nos clubes e no Mundial, Messi, apesar de ter vencido a competição, não foi tão decisivo e importante como Mbappé em ambos.
Assim sendo, esta oitava Bola de Ouro - e todo o top-30 - tem um sabor comemorativo e não competitivo. Escrito, entre rascunhos e rabiscos, para assentar a narrativa do melhor jogador de sempre. Um título que não me parece descabido, mas que deve ser provado dentro das quatro linhas e não fora das mesmas, ao sabor do vento dos homens de fato que definem os seus próprios critérios.
E isto vale tanto para a Bola de Ouro, que vai ser coorganizada pela UEFA a partir de 2024, como para o The Best, da FIFA.

