Mais

Perfil: O carismático Geraint Thomas deixa o pelotão órfão do último clássico

Geraint Thomas terminou a carreira
Geraint Thomas terminou a carreiraDARREN STAPLES / AFP
Com o adeus de Geraint Thomas o ciclismo perde o seu último clássico, o antivedeta que conquistou gerações pelo carisma, mas também pela humildade que manteve após ter ocupado os três lugares no pódio do Tour.

G é um tipo porreiro, apesar de pouco expansivo. Descreve-se como um homem organizado e disciplinado, mas, depois de anos de convívio, são outras as características que melhor o definem: embora goste de passar despercebido, quando confrontado com o foco mediático, é incrivelmente cortês, com o seu sentido de humor mordaz a convertê-lo num inesgotável autor de frases emblemáticas, mas também desconcertantes.

Adepto das denominadas dad jokes (piadas secas, numa tradução livre para português) e de um ciclismo à antiga, que permite o consumo de cerveja (até em excesso) nas férias e que não vive obcecado com cada grama de comida ingerida, conquistou as gerações mais novas – de adeptos e de ciclistas, como os seus incondicionais fãs Tadej Pogacar, Remco Evenepoel ou João Almeida – com publicações sarcásticas nas redes sociais, maioritariamente a rir de si próprio.

“Thomas é especial por várias razões: é um ciclista muito versátil, carismático, resiliente, leal e simples. (…) Tem uma humildade do tamanho dos seus feitos. Isso deverá ser o que mais admiro nele. Apesar de sempre termos sido de equipas rivais, os momentos que partilhámos - que não foram muitos ou que eu gostava que tivessem sido mais -, sempre foram muito divertidos e enriquecedores ao nível desportivo e pessoal”, destacou Almeida, numa declaração escrita enviada à agência Lusa.

A admiração manifestada pelo português da UAE Emirates, que com ele partilhou pódio na Volta a Itália de 2023 – o britânico foi segundo e o corredor de A-dos-Francos foi terceiro, numa edição ganha pelo esloveno Primoz Roglic –, e o elegeu como o companheiro de equipa que gostava de ter tido, é transversal à elite do ciclismo.

O galês de 39 anos nunca evita assuntos polémicos e, com os anos, ganhou um estatuto no pelotão que lhe permite pronunciar-se sobre tudo e mais alguma coisa no podcast que criou com o melhor amigo Luke Rowe - e por onde passaram todos os ciclistas mais famosos do pelotão - e também intrometer-se em temas como os ataques internos à liderança de Sepp Kuss na Vuelta 2023, na qual ergueu a voz em defesa do norte-americano, comparando a situação com a que sofreu por parte de Chris Froome no Tour que ganhou.

A estória de G no ciclismo começou como qualquer outra. Vibrava com o alemão Jan Ullrich na televisão e, aos 10 anos, experimentou um clube velocipédico de crianças de Whitchurch, em Cardiff, onde nasceu a 25 de maio de 1986, e apaixonou-se.

No entanto, como qualquer grande paixão, a sua só se consolidou quando se tornou recíproca: “Suponho que só comecei realmente a acreditar em mim depois de Los Angeles (onde se sagrou campeão mundial júnior de pista na disciplina de scratch). Foi quando vi o ciclismo não como um hobby, mas sim como uma possível carreira”.

Aos 18 anos, mudou-se para Manchester, para a Academia Olímpica britânica, dividindo quarto com Mark Cavendish. Longe de casa, ganhou experiência, percorreu o mundo e viveu as primeiras agruras como ciclista, quando, em fevereiro de 2005, sofreu uma queda grave em Sydney (Austrália) e perdeu o baço.

Recuperado do susto e de volta ao seu nível, foi contratado como estagiário pela Saunier Duval, antes de abraçar o profissionalismo na Barloworld, que lhe deu a oportunidade de ser o corredor mais jovem a alinhar à partida do Tour 2007 – este ano, foi o mais velho a fazê-lo, num encerrar de ciclo perfeito.

Com Pequim-2008 à espreita, o apelo da pista foi mais forte e a aposta foi recompensada com o ouro na perseguição por equipas, um título que haveria de revalidar em Londres-2012, um momento feliz que o fez, finalmente, decidir dedicar-se exclusivamente à estrada e ao seu papel na Sky, a equipa pela qual assinou em 2010 e à qual foi fiel até ao final da carreira, ignorando os sucessivos desrespeitos de que foi alvo nos últimos anos.

Trabalhador incansável, primeiro de Bradley Wiggins e, depois, de Chris Froome, teve a sua oportunidade para brilhar a título individual na Volta a França em 2018, conquistando essa edição com autoridade e protagonizando um dos momentos mais memoráveis nas últimas décadas na prova – o seu mic drop no pódio final, após um sentido Vive le Tour, permanecerá como um dos seus melhores momentos.

Após ter sido segundo no Tour-2019, atrás do colega Egan Bernal – que nunca atacou -, viveu anos difíceis na INEOS, que o deixou fora da edição de 2020 e tardou em renovar-lhe o contrato em 2021, numa tentativa de baixar o seu salário.

A tudo respondeu com a classe que o caracteriza, sem ressentimentos e com dedicação, calando os críticos que o davam como acabado com nova presença no pódio da Grande Boucle em 2022.

“Sempre acreditei. Não houve muitas pessoas que o fizessem, para ser honesto. Tive um final de ano (de 2021) incrivelmente duro por diversas razões, mas sempre acreditei que ainda tinha pernas para fazer algo. Com estes dois (Jonas Vingegaard e Tadej Pogacar) à minha frente, não havia muito que pudesse fazer, mas é bom ser o melhor do resto”, resumiu então.

Não seria o último pódio numa grande Volta deste galês convicto – é fanático do Cardiff City e da sua seleção de râguebi –, já que quase ganhou o Giro-2023 (perdeu a camisola rosa no crono da penúltima etapa) e foi terceiro na edição do ano passado, após protagonizar divertidos momentos com Pogacar.

Embora o Tour tenha significado “tudo” na sua carreira, G despede-se do ciclismo com outras vitórias de destaque, como o Critério do Dauphiné (2018), o Paris-Nice (2016), a Volta à Suíça (2022), a Volta à Romandia (2021) e ainda duas edições da Volta ao Algarve (2015 e 2016), além da Volta aos Alpes (2017) e a Harelbeke (2015).