Reportagem: Não há VAR, não há milhões, mas há paixão na AF Porto

Adeptos assistem a jogo da distrital
Adeptos assistem a jogo da distritalD.R.

Nem só de milhões se faz o futebol. O Flashscore acompanha o melhor futebol do mundo, mas também tem espaço para perceber o que está mais abaixo. Vitor Tomé percorreu as divisões organizadas pela Associação de Futebol do Porto e diz-nos como o futebol é vivido por lá. Mudam os vencimentos, quando existem, mudam as camisolas, mudam as condições para treinar e jogar, mas mantém a paixão transversal a todos aqueles que andam com a bola no pé.

Sábados e domingos à tarde, no norte do país, o frio corta, a relva brilha e respira-se futebol. Este é o distrital da Associação de Futebol do Porto: quatro divisões, dezenas de clubes e milhares de jogadores que vivem o jogo por amor.

Da Hyundai Liga Pro até à 1.ª Divisão, o futebol distrital é o pulso do desporto português. Nesta reportagem Flashscore, damos voz a quatro jogadores, quatro realidades diferentes, mas o mesmo coração.

"No futebol é preciso ser resiliente, aceitar a crítica, ser autocrítico"

No topo do futebol distrital está a Hyundai Liga Pro. Aqui, o nível aproxima-se cada vez mais do futebol nacional. Os clubes treinam praticamente todos os dias, e Rui Pedro, jogador do Lousada, confessa que tem todas as condições para praticar bom futebol.

"Sim, é verdade. Falamos da principal divisão de futebol da AF Porto. Na minha opinião, é uma competição que exige um conhecimento profundo do jogo e do próprio futebol. É uma divisão muito competitiva e, acima de tudo, exigente. Esse nível de exigência faz com que as equipas precisem de treinar com uma frequência considerável, mesmo tratando-se de jogadores que não são profissionais", descreve o médio.

"Costumo dizer que me considero um semiprofissional, no sentido em que treino quatro vezes por semana, mais o jogo ao fim de semana. Ou seja, estamos a falar de cinco dias de futebol em sete, o que é bastante significativo. São números simpáticos para quem não vive do futebol. Tem de existir paixão pelo jogo, porque, sem essa motivação, seria impossível manter este ritmo", acrescenta.

Rui Pedro veste as cores do Lousada
Rui Pedro veste as cores do LousadaAD Lousada

O futuro, a Deus pertence. Por agora, Rui Pedro sente-se confortável na divisão onde atua e demonstra uma visão madura sobre o futebol e o seu percurso.

"Sendo sincero, se me fizessem esta pergunta há dez anos, responderia facilmente que gostaria de ser jogador profissional. Hoje, olhando para a fase da minha carreira e até para a minha idade, encaro o futebol de forma totalmente diferente. Tenho uma ideia mais amadurecida do que é o jogo, porque o futebol não são apenas onze jogadores a correr atrás de uma bola. Envolve muito mais. Não basta ter qualidade. É preciso ser resiliente, aceitar a crítica, ser autocrítico. Há muitos fatores que nem sempre é possível reunir numa só pessoa, e é isso que distingue quem chega ao topo de quem fica pelo caminho", analisa.

Com o passar dos anos, a paixão manteve-se, mas o objetivo mudou.

"Hoje, o futebol é, acima de tudo, um espaço onde me sinto bem e onde quero usufruir do tempo que ainda tenho para jogar. Gosto da competição, daquele nervosismo antes dos jogos, das relações que se criam com colegas e treinadores ao longo dos anos. Tudo isso traz uma bagagem de crescimento pessoal e interpessoal muito importante", anota.

"O futebol é a minha paixão, algo que me faz sentir bem. Quero aproveitar cada momento enquanto puder. Se surgirem oportunidades para evoluir, vou analisá-las, mas neste momento não olho para o futebol como uma continuidade de carreira. Vejo-o como aquilo que sempre foi: uma paixão que me acompanha e me realiza", sublinha.

"O Freamunde é um clube profissional no distrital"

Logo abaixo da Hyundai Liga Pro está a Divisão de Elite, um campeonato onde se cruzam veteranos experientes e jovens à procura de espaço. O Sport Clube Freamunde é um dos clubes mais emblemáticos dessa realidade: histórico, habituado a outros palcos, mas que desceu ao inferno das distritais. Agora, tenta regressar, passo a passo, escalando de novo a montanha.

João Figueiredo veste a camisola do Freamunde e é treinado por Antunes, antigo internacional português, campeão pelo Sporting Clube de Portugal e com passagens por clubes como a AS Roma. O jogador fala-nos do peso e do orgulho de representar o Freamunde neste contexto.

"Falamos muitas vezes que representar esta estrela ao peito não é para qualquer jogador. A massa associativa é incrível, tanto em casa como fora. Para o momento que o clube vive, a presença e o apoio dos adeptos são incomparáveis. Costumo dizer que o Freamunde é um clube profissional no distrital", defende o médio.

"Para qualquer jogador, jogar no Freamunde é motivo de orgulho e reconhecimento. Sabemos que é um clube com história nas competições nacionais e profissionais, e por isso, mesmo estando num contexto distrital, sentimos um peso diferente ao representar estas cores. Basta olhar para a exigência dos adeptos. Percebem-se as expectativas, o contentamento ou o descontentamento. Estão habituados a outros patamares, e nós, jogadores, sentimos a responsabilidade de devolver o clube ao nível a que pertence. É um peso extra, sim, mas é um peso com muito orgulho", confidencia.

João Figueiredo num jogo do Freamunde
João Figueiredo num jogo do FreamundeSC Freamunde

Antunes é o homem do leme. Depois de uma carreira de topo, habituado a outros palcos, outros estádios e outro luxo, o antigo internacional português abraçou o desafio de liderar o Freamunde nas distritais. A experiência e o carisma do técnico rapidamente conquistaram o balneário. 

João Figueiredo sublinha a importância de ter um treinador com o percurso de Antunes.

"Sem dúvida que, quando vemos alguém com o currículo do mister a chegar para nos liderar, é um motivo de orgulho enorme. Todos gostaríamos de fazer metade, ou até um quarto, da carreira que ele fez. Mais do que qualquer tática, o que o Mister mais nos transmite é a parte humana: o caráter, a forma de estar em campo e a maneira como nos motiva", apresenta.

“O facto de ter sido jogador faz com que consiga cativar-nos de forma diferente. A comunicação é mais próxima, mais natural. Nos treinos, nota-se uma visão de quem entende o jogo por dentro, seja na ocupação de espaços, nos apoios ou na leitura das jogadas. Isso torna tudo mais fácil de compreender e serve de verdadeiro gatilho motivacional para nos tornarmos melhores jogadores", sustenta.

"A comunicação do mister é muito franca e direta, tanto nos treinos como nos jogos. E nós sentimos isso. Existe uma abertura grande entre a equipa técnica e os jogadores. Entre todas as suas qualidades, o que mais destaca é mesmo o lado humano. É isso que nos inspira e nos faz querer dar sempre mais", conclui.

"Futebol distrital também precisa de valorização e reconhecimento"

A Divisão de Honra é o coração do futebol distrital. Aqui cruzam-se histórias de quem sonha subir e de quem apenas quer continuar a jogar. Nos relvados sintéticos e nos cafés ao lado dos campos, o futebol é mais conversa, mais paixão, mais autenticidade. É o jogo pelo jogo, o equilíbrio entre a vida real e o sonho que ainda não morreu.

Jorge Silva, jogador do Barrosas, partilha a sua experiência neste escalão da Associação de Futebol do Porto.

"Antes de mais, gostava de agradecer a iniciativa de promover o futebol distrital nestas plataformas que normalmente só olham para o futebol de topo, nacional e internacional. Isto merece destaque, porque o futebol distrital também precisa de valorização e reconhecimento", enaltece o defesa.

Jorge joga no Barrosas
Jorge joga no BarrosasBarrosas

“Relativamente à minha experiência na Divisão de Honra, e de forma mais ampla no futebol distrital da AF Porto, posso dizer que tem sido um percurso curioso e enriquecedor. Já tive a oportunidade de jogar nos quatro escalões da associação, o que me deu uma visão muito completa da realidade do nosso futebol", destaca.

Para muitos, o futebol distrital é sinónimo de jogos duros, de marcações cerradas e contacto físico constante. Jorge Silva confirma essa ideia.

“Sim, totalmente. O futebol nestas divisões é duro, e há muitos fatores que contribuem para isso. A componente física é enorme, os jogos são muito competitivos e intensos, com muitos contactos e ritmo elevado. E quanto mais alta é a divisão, mais se nota essa exigência. Este ano, por exemplo, o clube onde jogo tem cinco ou seis dérbis, e nesses jogos sente-se ainda mais a dureza e a rivalidade que caracterizam o futebol distrital", complementa.

"Aqui estão os jogadores que jogam verdadeiramente por amor à camisola"

No fundo da pirâmide está a 1.ª Divisão, o ponto onde tudo começa. Aqui, as equipas são formadas por amigos, vizinhos, trabalhadores e estudantes. O futebol é jogado com o coração, sem filtros nem artifícios... é o futebol na sua forma mais pura.

Bruno Ferreira, jogador da Associação Desportiva de Carvalhosa, de Paços de Ferreira, é o exemplo perfeito desse espírito. Além de jogar, trabalha e ainda assume o cargo de coordenador da secção juvenil do clube.

“Sou coordenador do departamento juvenil, jogo na equipa sénior e ainda arranjo um tempinho para trabalhar. É uma agitação constante, tenho muito pouco tempo livre, mas é algo tão desafiante quanto compensador. A paixão pelo futebol dá-me a energia para continuar", explica o médio.

“Há dias em que o corpo está cansado ou a mente não acompanha, mas é o bichinho e a paixão pelo jogo que me motivam a seguir em frente, a tentar sempre dar o melhor, seja como jogador, seja como coordenador. E depois há o privilégio de chegar ao campo e ver os miúdos felizes, a correr atrás dos sonhos. Isso faz tudo valer a pena. Todo o sacrifício é recompensado pela alegria deles", enumera.

Bruno Ferreira joga na 1.ª divisão da AF Porto
Bruno Ferreira joga na 1.ª divisão da AF PortoAD Carvalhosa

Na opinião de Bruno Ferreira, é na 1.ª Divisão que se encontram os verdadeiros apaixonados pelo futebol.

“Penso que podemos afirmar que é na 1.ª Divisão que estão os jogadores que jogam verdadeiramente por amor à camisola. São aqueles dispostos a representar um clube sem pedir nada em troca, movidos apenas pelo gosto e pela paixão de jogar na distrital. É o jogo puro, o jogo sem interesses, que ultrapassa todas as adversidades - o ambiente de balneário, as amizades que se criam, tudo tem um valor especial", defende.

"Acho que aqui tudo tem um toque diferente. Até a bancada é especial, porque quem assiste aos jogos são os nossos amigos, as nossas famílias e os miúdos da formação. Isso é realmente incrível. Há dérbis separados por um ou dois quilómetros, a bifaninha e o fino no final do jogo... Tudo aqui tem uma magia própria. Sou muito grato por isso e espero continuar durante muito tempo", confidencia.

Da Hyundai Liga Pro à 1.ª Divisão, o futebol distrital do Porto é uma história contada em quatro capítulos. É suor, amizade, rivalidade e pertença. Não há VAR, não há milhões, mas há paixão. E é ela que mantém este jogo vivo.

Reportagem Flashscore, onde o futebol é mais do que um jogo. É, simplesmente, amor.