A despedida de João Paulo aos 42 anos: "Vir para as distritais foi a melhor decisão da carreira"

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A despedida de João Paulo aos 42 anos: "Vir para as distritais foi a melhor decisão da carreira"

João Paulo sagrou-se bicampeão nacional ao serviço do FC Porto
João Paulo sagrou-se bicampeão nacional ao serviço do FC PortoArquivo Pessoal
2023/24 marca o fim da carreira de João Paulo Andrade. Aos 42 anos, o central sente que está na hora de pendurar as chuteiras e dar início a uma nova vida. Os colegas do Castrense e a esposa não querem que isso aconteça, mas a decisão está tomada. Para trás fica uma viagem "incrível" com muitas estórias. A despedida é feita de viva voz em exclusivo ao Flashscore.

"Sinto que chegou a hora"

O tempo voa e mostra-nos que nada é eterno. O que antes era apenas um sonho torna-se realidade graças ao talento, a muito trabalho, e a uma enorme paixão. Os ingredientes parecem simples, mas nem todos conseguem alcançar o propósito. Pelo meio da jornada, a vida vai colocando pessoas no caminho que vão ajudando a traçar o nosso próprio trajeto e a meta, que parece bem distante, fica mais próxima do que nunca, num abrir e fechar de olhos.

Por muito que o coração dê força para continuar, a cabeça deixa um apelo à razão: "Está na hora". E que bonito que foi.

Mais de cinco centenas de jogos realizados, mais de meia centena de golos marcados, experiências inesquecíveis em Portugal e no estrangeiro e títulos conquistados. Um resumo muito simbólico daquilo que foi a "primeira vida" de um homem que deixou o exemplo máximo de integridade e humildade por onde passou. Também isso explica que tenha envergado a braçadeira de capitão em todos os clubes por onde passou, exceção feita à passagem fugaz pelo Sporting.

João Paulo despede-se aos 42 anos
João Paulo despede-se aos 42 anosArquivo Pessoal/Opta by Stats Perform

Sem mais rodeios, vamos à figura principal desta histórica. João Paulo Andrade tomou a decisão de pendurar as chuteiras aos 42 anos, a poucos dias de completar 43, sete anos depois de ter adiado essa mesma decisão para viver um dos capítulos mais bonitos da sua carreira: os campeonatos distritais. Admite que ainda havia combustível para mais, mas a promessa de não terminar a arrastar-se é para ser cumprida.

"Está a chegar ao fim uma primeira vida e a segunda está aí à porta. Acho que estou preparado para a nova etapa e digo acho porque tenho uma paixão muito grande pelo treino e pelo jogo. Sempre foi assim. Mas sinto que chegou a hora. O corpo já não está a responder da mesma forma e não quero que chegue o dia em que as pessoas olhem para mim e digam que eu me ando a arrastar", confessa João Paulo, em entrevista exclusiva ao Flashscore.

"Estou muito feliz pelo meu percurso, muito feliz pela carreira ter sido longa e ainda mais feliz por ter tido a capacidade e a humildade de não ter problemas em jogar nas distritais. Posso dizer que foi das melhores opções que tomei", acrescenta.

A opção passou por regressar a Portugal depois de quatro anos em Chipre e dizer "não" ao fim de carreira para viver sete anos "maravilhosos" nas distritais de Leiria e de Beja.

João Paulo vai despedir-se com as cores do Castrense
João Paulo vai despedir-se com as cores do CastrenseAssociação de Futebol de Beja

"Tinha convites para ficar em Chipre, mas regresso a Portugal devido a problemas de saúde da minha esposa. Apesar de ela insistir para eu continuar, eu achei muito mais importante acompanhá-la nesse período. Cheguei cá e pensei que era o fim da minha carreira. Quando vamos para países que não são tão visíveis, acabamos por cair no esquecimento e eu também já estava com uma idade avançada (36 anos), por isso os convites não apareceram", introduz o experiente central que também deu uns toques a... ponta-de-lança.

"Depois apareceu o convite do Marinhense, através de pessoas que eu conhecia pessoalmente, e que me fizeram ver que não seria justo abandonar o futebol. E a verdade é que eu também já estava farto de tomar banho em casa (risos). Acho que foi uma excelente opção, pois jogar nestes campeonatos foi espetacular", acrescenta.

E tudo Vítor Pontes (e Mourinho) mudou

Entramos na máquina do tempo para puxar a fita atrás. Do fim iminente ao início da carreira. O seu Portomosense não se esquece, mas foi na União Desportiva de Leiria que aprendeu "tudo". Não só a nível profissional, mas também a nível pessoal. Uma lição de vida e uma história que podia ter sido bem diferente não fosse a mão de Vítor Pontes.

O menino João Paulo chamava a atenção nas camadas jovens do emblema do Liz e foi puxado pelo treinador Manuel José para os treinos da equipa principal, tendo feito a estreia a 12 de janeiro de 2000, em pleno Estádio José de Alvalade, como... extremo direito. "As pernas tremiam que nem varas verdes". Mas depois recebeu ordem para voltar aos juniores.

João Paulo destacou-se ao serviço da UD Leiria
João Paulo destacou-se ao serviço da UD LeiriaArquivo Pessoal

"Hoje em dia está tudo muito mais facilitado para os mais novos, mas na minha altura tinha muito respeito pelos mais velhos. Era o senhor Baptista, o senhor Bilro... Tinha medo de me sentar, quanto mais de falar (risos). Tinha de limpar as chuteiras, levar os cestos e correr por fora. Isso deu-me uma bagagem muito grande", recorda o central ao Flashscore, antes de avançar para o período mais conturbado do início da sua carreira no futebol sénior.

"Houve uma fase em que vivi sozinho em Leiria e deixei-me deslumbrar um bocadinho. Depois do Manuel José me ter lançado em Alvalade eu precisava de alguém que me agarrasse e dissesse qual era o caminho, mas não culpo ninguém, nem posso. Acabo por cometer alguns erros e há um treino em que o Vítor Pontes (adjunto) chega ao pé de mim e diz: 'O mister Manuel José disse que é para ires para os juniores e não voltas mais'. Caiu-me tudo", prossegue. 

No ano seguinte acaba emprestado ao União de Tomar e as coisas correm "muito, muito bem". João Paulo é o número 10 da equipa, bate cantos e livres e despede-se com um hat-trick que mudou a sua vida.

"No final do último jogo, o presidente do União de Tomar aparece no balneário e diz-me que tinha pessoas à minha espera. Era o Vítor Pontes, acompanhado pelo (José) Mourinho, que ia ser o treinador da UD Leiria. Recordo-me perfeitamente das palavras do Mourinho: 'Vens para a UD Leiria, ai de ti que eu saiba que andas na rua depois das 23:00. Queres continuar a carreira de futebolista ou não?'. Até tremi. A partir daí fiz tudo direitinho", completa.

O livro de memórias

I - Palavras de Pinto da Costa

A viagem pelas memórias não seguem uma sequência cronológica. O baú está recheado e aproveitamos algumas das fotografias mais marcantes para recordar com João Paulo algumas das etapas do caminho que fez dele muito daquilo que é hoje. Ponto de partida: FC Porto.

Após várias épocas de bom nível na UD Leiria, o central dá o salto para a cidade Invicta, onde é bicampeão nacional ao serviço do FC Porto, e recorda um "jogo fulcral" que mudou um pouco a história do que acredita que poderia ter sido a sua etapa nos azuis e brancos.

João Paulo defrontou o Liverpool
João Paulo defrontou o LiverpoolArquivo Pessoal

"Eu tinha entrado na equipa titular com a lesão do Pedro Emanuel e faço bons jogos - marco contra a UD Leiria (0-3) e apanho o Liverpool (1-1) do Fernando Torres -, até que vamos jogar a Fátima para a Taça. O mister Jesualdo vem falar comigo e pergunta-me se eu queria jogar, porque ia fazer descansar alguns jogadores do onze, e eu disse-lhe que sim, claro. Acabo por partir o nariz nesse jogo, num lance com o guarda-redes adversário (Pedro Duarte), que mais tarde até foi meu treinador no Marinhense. Ainda faço o jogo todo, mas acabo por ser operado e ficar de fora durante algum tempo. Eu queria treinar de máscara, pois sabia que o meu nome não era tão forte, e que podia perder a titularidade, mas os diretores não deixaram", explica.

"Lembro-me do presidente Pinto da Costa chegar ao pé de mim e dizer: 'João, já mostraste que és um jogador à Porto'. O Dr. Puga estava ao lado e disse: 'Aproveita que ele não diz isto a toda a gente'. São coisas que marcam. (...) Eu estava bem e sinto que esse momento marcou muito a minha passagem pelo FC Porto. E, atenção, nada a ver com o Pedro Emanuel, até porque somos mesmo muito amigos. É apenas o futebol (...) Depois saio para o Rapid", complementa.

II - Viver sozinho num prédio de 15 andares em Bucareste

No ano seguinte, o central acaba por seguir por empréstimo para os romenos do Rapid Bucareste e vive uma experiência inusitada à conta do excêntrico George Copos, o então proprietário milionário dos Feroviarii.

"Vou para o Rapid com o (José) Peseiro e sou considerado o melhor estrangeiro a jogar na Roménia. Foi espetacular! O Copos meteu-me a viver sozinho num prédio de 15 andares que tinha acabado de construir e disse que não ia vender nenhum apartamento enquanto eu lá estivesse. Então vivi sozinho e ainda tinha segurança (risos). Não fico lá porque o Rapid não pagava para contratar jogadores", explica.

João Paulo foi muito feliz com as cores do Rapid Bucareste
João Paulo foi muito feliz com as cores do Rapid BucaresteArquivo Pessoal

"Foi uma pena... Gostava muito de jogar no Rapid. É um clube fantástico e sentia-me muito bem lá. O Copos até tinha dito que se eu continuasse no ano seguinte colocava-me no último andar, em que o elevador entrava dentro do apartamento. Era tudo em ouro. Maçanetas, chuveiro... (risos)", remata.

III - Lágrimas de Grégory Cerdan em Le Mans

Não fica em Bucareste e assina em definitivo pelos franceses do Le Mans, onde reencontra Paulo Duarte, com quem tinha partilhado balneário em Leiria. Ainda houve a possibilidade de ir para o Standard Liège, fruto da boa relação do clube belga com o FC Porto, mas não houve acordo e acabou mesmo por seguir para o campeonato francês, que o surpreendeu pela positiva.

"É daqueles campeonatos que não seguimos muito (em Portugal) e nunca pensei jogar em França. As condições de trabalho eram fantásticas e não havia um estádio que não estivesse cheio. Surpreendeu-me muito pela positiva", introduz.

João Paulo ao lado de Paulo Duarte na apresentação no Le Mans
João Paulo ao lado de Paulo Duarte na apresentação no Le MansAFP

"Infelizmente descemos de divisão e no ano seguinte o clube teve de cortar nos salários a todos os jogadores. Mas recordo-me que na pré-época o (Grégory) Cerdan reuniu com os outros jogadores e foi pedir para eu ser o primeiro capitão. E quando me venho embora, estou a fazer a mala e está ele na cama a chorar. São coisas que marcam. Adorei jogar em França", assinala.

IV - Ronaldo e o arroz da Dona Dolores

Ainda antes dos títulos no FC Porto e das experiências na Roménia, França e Chipre, João Paulo teve uma passagem fugaz pelo Sporting, na segunda metade da temporada 2002/03. Os leões olharam para o jovem central leiriense para colmatar a ausência de Beto (lesionado), mas a passagem resume-se a sete jogos ao serviço do clube leonino.

"Não gosto muito de falar mal, mas se tivesse sido com outro treinador acho que as coisas podiam ter corrido melhor. Ainda era um miúdo e percebi mais tarde que fui uma contratação da direção e não do treinador. Depois também quando o treinador me queria meter a jogar ainda não estava inscrito e foi o Hugo que jogou. Ele fez um bom jogo e sabemos como é o futebol... Apanhei jogadores de grande gabarito e não me arrependo de nada", justifica.

João Paulo apanhou o início de Cristiano Ronaldo no Sporting
João Paulo apanhou o início de Cristiano Ronaldo no SportingAFP

No clube leonino apanha o início de afirmação de um tal de Cristiano Ronaldo, com quem ainda faz os Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004.

"Comi muito arroz da Dona Dolores (mãe de Cristiano Ronaldo). Eu, o Ronaldo e o Quaresma andávamos muito juntos e a mãe do Cristiano cozinhava muito bem. (...) Nessa altura ninguém diria que o Ronaldo ia ser melhor do que o Quaresma. O homem da trivela é que estava em grande. Mas o Cristiano quis muito evoluir. Recordo que ele tinha algumas debilidades no jogo aéreo e no final dos treinos pedia a um dos treinadores para ir para a linha e cruzar bolas para ele cabecear. Depois agarrava na bola, ia para dentro e chutava. Quis evoluir e o que é hoje é mérito de todo o seu trabalho. Eu devia ter feito como ele (risos)", elogia.

Agradecimentos e... a segunda vida

Ao longo de todo o percurso várias foram as figuras marcantes. E quando o adeus se aproxima a passos largos, nada melhor do que retribuir através de palavras a quem lhe deu tanto no plano desportivo.

"O Sr. Fred ensinou-me tudo, desde a formação até chegar a sénior! Depois tive um Deus que foi o Vítor Pontes, que agarrou no Mourinho e disse-lhe que não podiam desperdiçar o miúdo. É com o Mourinho que faço a estreia na Liga, depois é com o Vítor Pontes que faço os primeiros 90 minutos, no Estádio da Luz. Inevitável falar no Manuel José, pela oportunidade que me deu, e impossível não falar no JJ (Jorge Jesus). Chegou ao pé de mim e disse-me: 'Vou meter-te a trinco e vou fazer de ti um grande central' (risos). A verdade é que faço uma época a trinco e saio para o FC Porto a central", agradece.

João Paulo sagrou-se bicampeão nacional ao serviço do FC Porto
João Paulo sagrou-se bicampeão nacional ao serviço do FC PortoArquivo Pessoal

"A minha relação com o JJ é fantástica. Ele cumprimenta-me com um beijo na testa. Em termos táticos, Mourinho e JJ foram os que mais me ensinaram. O JJ é fora do normal. (...) Mas teria de falar de muitos", completa.

Sobre o passo seguinte, João Paulo confessa que tem falado muito com Pedro Emanuel sobre a ideia que tem de seguir o caminho de "treinador-adjunto", até porque não se imagina como principal -"não seria um treinador muito fácil de aturar" -, mas admite que o próximo ano até poderá ser de pausa, embora a realidade ainda seja difícil para alguns.

"Tenho um balneário super triste e a pedir para não o fazer. Tentei ajudar sempre toda a gente com a minha experiência. Mesmo os adversários perguntavam-me como é que eu conseguia, como é que continuava com esta paixão... Só posso agradecer a todos por me terem recebido tão bem no futebol distrital. (...) Eu sou de grupo, sou de família, mas sou consciente das coisas. Chegou a hora de dar a oportunidade aos mais jovens", diz.

"Não sei se estou preparado para tomar banho todos os dias em casa, mas o presidente já me disse que a porta vais estar sempre aberta (risos). Portanto quando sentir falta, vão deixar-me entrar no balneário e isso já vai dar para matar o bichinho", sublinha.

João Paulo termina capítulo no FC Castrense
João Paulo termina capítulo no FC CastrenseFutebol Clube Castrense

"Tenho pessoas também muito chateadas aqui em casa, a minha esposa está triste, pois não queria que eu abandonasse. Mas houve um jogo em que tive um pequeno problema no joelho e não gostei muito do que o médico me disse depois de ver os exames. Eu se calhar ainda suportava a dor, mas podia estar a meter-me em problemas futuros. Está na hora. Estes últimos anos foram fantásticos e acabo no clube da terra da minha esposa, onde as pessoas são maravilhosas, pessoas que eu respeito e onde sou muito respeitado. É a cereja no topo do bolo", remata.

Que venha então esse bolo para assinalar esta carreira fantástica. Muitos parabéns e obrigado, João Paulo!

Entrevista de Rodrigo Coimbra
Entrevista de Rodrigo CoimbraFlashscore