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França-Marrocos, o desporto entre duas margens: Abdelatif Benazzi, o gigante do Atlas

Abdelatif Benazzi chegou a França como um anónimo e saiu como uma lenda
Abdelatif Benazzi chegou a França como um anónimo e saiu como uma lendaAFP
Esta é história de um miúdo de Oujda, cidade na região oriental de Marrocos, que se tornou num dos maiores jogadores de râguebi de França dos anos 90. Abdelatif Benazzi, com uma ascensão meteórica, tornou-se capitão do XV de França e o grande símbolo dos laços entre os dois países. "Este França-Marrocos é como escolher entre a minha mãe e o meu pai", assume o próprio.

Abdelatif Benazzi é, antes de mais, alguém que teve de lutar para encontrar o seu lugar. Muitas vezes. Ainda em criança, o seu físico fora do comum valeu-lhe algumas alcunhas pouco lisonjeiras. Em Oujda, Marrocos, crescia uma criança complexada.

E, como muitas vezes acontece nestas situações, o desporto surgiu como escape para esses problemas. Aos 14 anos, Benazzi começou a jogar râguebi. E nunca mais parou. Em Marrocos, porém, o râguebi está longe de ser o desporto n.º1 da população. "O râguebi é um desporto desleal praticado por cavalheiros" é uma frase criada e muitas vezes ouvida no Atlas.

Foi um encontro com Reinhard Janik que mudou a história de vida de Benazzi. O alemão, que já faleceu, era professor de desporto em Oujda mas com olho para o talento. Já depois de Abdelatif Benazzi, que em quatro anos tornou-se no melhor jogador marroquino de râguebi, descobriu também Ladji Doucouré para o atletismo.

França, terra de hospitalidade?

É então o râguebi que leva Benazzi a atravessar o Mediterrâneo. Começou a jogar na segunda divisão, em Cahors, e em apenas uma época tornou-se no melhor marcador de todas as provas de competição. Inevitavelmente, todos os clubes da primeira divisão colocaram os olhos naquele talento.

Foi, então, o SU Agen que ganhou o dia, assinando com o gigante do Atletas. Encantado por se juntar a um grande clube francês, rapidamente Benazzi experimentaria o outro lado do sucesso. Num clube cheio de internacionais, os primeiros seis meses foram terríveis. Ninguém lhe diria a palavra e, confessou o próprio, chegou mesmo a receber cartas anónimas, de natureza racista. "Para mim, França era liberdade, igualdade e fraternidade", lembrava.

Em vez de tentar compreender as razões, Benazzi preferiu trabalhar para ganhar o seu lugar em campo. E as suas qualidades excecionais como jogador permitiram-lhe integrar a equipa vice-campeã nacional nessa época. E por ali esteve durante doze temporadas. Nunca foi campeão de França mas só no final da carreira saiu, tentando um último desafio em Inglaterra, no Saracens.

Seis meses, portanto, demorou Benazzi a silenciar dúvidas e comportamentos questionáveis. Um gigante de coração mole, que se tornaria unânime em todos os lugares por onde passava, especialmente no XV de França.

Um verdadeiro romance vestido de azul

Mais uma vez, terá sido o destino. Porque Benazzi poderia nunca ter sido sequer internacional francês. De facto, ele até tinha respondido favoravelmente a uma convocatória da seleção marroquina no início da sua carreira. Porém, os regulamentos internacionais naquela altura funcionaram a seu favor e ele pôde juntar-se ao XV de França.

O início na seleção francesa, tal como já tinha acontecido no clube, não foi nada fácil para Benazzi. Na sua primeira chamada detinha a terceira linha central mas só estaria 13 minutos em campo. E não devido a uma lesão. Benazzi foi apanhado a pisar um adversário no chão - outros tempos, outras regras - e foi expulso. Para alguns, poderia estar ali o fim de uma carreira internacional. Mas não para Benazzi.

Depois daquele jogo surgiram mais 77 internacionalizações e todo o tipo de reviravoltas. Às vezes um final feliz, como quando se tornou capitão de equipa, em 1996, conduzindo o XV de França ao Grand Slam em 1997, ou quando fez parte da equipa que, em 1999, alcançou o impensável em Twickenham: os bleus venceram os invencíveis All Blacks de Jonah Lomu e qualificaram-se para a final.

Houve, também, os finais infelizes, como a final dessa edição de 1999, quando a França perdeu contra a Austrália. Ou logo após esse Grand Slam, quando pagou as culpas da derrota contra a África do Sul e, além disso, lesionou-se no joelho.

Mandela, o ponto de viragem

Em 1993, Benazzi viajou para a África do Sul para uma série de jogos particulares da seleção francesa. E aí, o jogador marroquino conheceu um tal de... Nelson Mandela. E a história desse encontro emociona qualquer um.

"Assim que vi Nelson Mandela aproximar-se de mim, o meu corpo começou a tremer. Como se uma onda tivesse passado por mim. Trocámos um olhar, depois um aperto de mão. O encontro deve certamente ter sido, de facto, muito breve, mas para mim durou tanto tempo que não consigo esquecer o seu rosto e o seu sorriso. Ele iluminou aqueles que se aproximaram dele. Nelson Mandela era um homem realizado, descansado, sereno, o que é ainda mais espantoso quando se pensa no que ele passou. Estava em paz consigo mesmo e com os outros, e usava essa paz no seu rosto", lembrou Benazzi.

Dois anos mais tarde, a África do Sul recebia o Campeonato do Mundo de râguebi, com Nelson Mandela a liderar a nação rainbow. Uma memória amarga para França. Depois de uma competição perfeita, os bleus encontraram o país anfitrião nas meias-finais. E esse jogo está na história como um dos mais lendários da história.

Primeiro, a chuva era torrencial, de tal forma que chegou a pensar-se adiar o jogo. E foi um jogo... dantesco - ainda hoje pairam suspeitas sobre o que se passou, desde corrupção a intoxicações alimentares. E um lance em particular resumem Benazzi: a França perdia por quatro pontos quando recuperou uma bola, girou, avançou mas tropeçou num companheiro de equipa e caiu sobre a linha. Ponto? Tentativa? Para Derek Bevan, árbitro da partida, nada. Mas para Benazzi, ele tinha pontuado. 

"Sim, eu aplaudi na linha. Mas depois, no balneário, depois do jogo, disse aos meus companheiros para não caírem, para que não existisse frustração porque tínhamos de ganhar o jogo pelo terceiro e quarto lugares contra os ingleses, que não vencíamos há seis anos", afirmou Benazzi.

A camisola que utilizou nesse dia, Benazzi entregou à Fundação Mandela. Um símbolo da carreira do gigante do Atlas, que chegou a França como um anónimo e saiu como uma lenda.

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