Reportagem: Futebol português conta com nonagenários para quem a idade é só um número

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Reportagem: Futebol português conta com nonagenários para quem a idade é só um número

Adelino Santos (92 anos) é um caso de longevidade no futebol português
Adelino Santos (92 anos) é um caso de longevidade no futebol portuguêsLUSA
O staff dos clubes de futebol não é eterno, mas, em alguns casos, parece, assim que se consultam as listas dos mais velhos filiados do país, com, pelo menos, quatro inscritos com mais de 90 anos.

Em 2022/23, segundo os dados disponibilizados à Lusa pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF), são quatro os nonagenários inscritos no organismo.

No topo desta hierarquia destaca-se Argentino Veríssimo, delegado do Grupo Desportivo Alfarim, com 95 anos.

Além do dirigente do clube de Sesimbra, esta lista conta ainda com delegados e massagistas, alguns ainda em atividade.

José Milagres, de 94 anos, e Adelino Santos, de 92, são dois desses casos, continuando a acompanhar as equipas das camadas jovens de Marítimo (AF Madeira) e Caldas (AF Leiria),

O madeirense "Txitxo" festeja o aniversário em 07 de janeiro, enquanto o beirão radicado no Oeste “senhor Adelino” celebrou o seu 92.º aniversário no dia 27 de setembro.

Ambos cumprem as suas missões semanalmente, com uma jovialidade que as nove décadas de vida não deixam transparecer, provavelmente rejuvenescidos pelo contato próximo com as mais jovens gerações de jogadores.

Também Manuel Fróis, de 90, está entre os mais velhos filiados na FPF, apesar de, tal como com Argentino Veríssimo, a sua presença ao Futebol Benfica já não tem a mesma assiduidade.

No entanto, segundo os seus clubes, os dois delegados nonagenários ainda estão disponíveis a acompanhar as equipas dos seus clubes do coração “sempre que é preciso”.

Neste ranking constam 13 dirigentes com mais de 85 anos, em vários pontos do país, com filiação na associações regionais ou distritais de Setúbal, três, de Lisboa e Porto, dois cada, e um na Madeira, em Leiria, em Viseu, em Évora, em Aveiro e Santarém.

A longevidade ainda permite a esta dezena manter a sua carolice e ligação aos clubes, como dirigentes, enfermeiros, massagistas ou meros colaboradores.

Adelino Santos contabiliza 37 anos ao serviço do Caldas
Adelino Santos contabiliza 37 anos ao serviço do CaldasLUSA

Adelino Santos (Caldas), 92 anos

Adelino Santos contabiliza 92 anos e 37 dos quais foram passados “ao serviço” do Caldas, clube no qual quer permanecer como massagista “até deixar de ser útil”.

“Ficarei enquanto o meu corpo deixar e enquanto sentir que posso ser útil”, atira o massagista do emblema de Caldas da Rainha, em entrevista à Lusa, momentos antes de ir “em missão”.

O massagista, o terceiro mais velho filiado na Federação Portuguesa de Futebol (FPF), entre dirigentes e treinadores, exerce a função nas camadas jovens do emblema das Caldas da Rainha e nunca descura os pormenores - a braçadeira no braço esquerdo, o saco de gelo, a bolsa de primeiros socorros –, neste caso para o jogo da equipa de sub-14 do clube, que assistiu desde o banco.

“Vamos à vitória, rapazes”, incentiva Adelino Santos antes de deixar o tradicional alerta: “troquem bem a bola e fujam aos choques”.

O Caldas viria a golear, em jogo referente à Taça distrital de iniciados de Leiria, e, por isso, o sorriso era rasgado no final. Até porque “felizmente, não foi preciso ir assistir nenhum jogador”.

Todavia, nem por isso Adelino Santos permaneceu sentado durante o encontro.

Quando o jogo estava interrompido era o nonagenário que, de pronto, pegava nas águas e se deslocava até aos atletas para que os mesmos se refrescassem, mas também para se certificar de que não havia nenhuma dor ou lesão.

Provavelmente, Adelino Santos é a figura mais emblemática do emblema de Caldas da Rainha. Chegou em 1986 – aliando a profissão de enfermeiro militar ao cargo de massagista – e, desde então, é pelo clube que tem trilhado o seu caminho. Depois de reformado, em “regime” de exclusividade.

Adelino Santos ainda se sente muito útil aos 92 anos
Adelino Santos ainda se sente muito útil aos 92 anosLUSA

De manhã dedica-se à pequena horta que tem em casa – cuja colheita vai direta para os filhos e para os vizinhos – e, a partir das 17:00 é na Quinta da Boneca – recinto destinado aos escalões de formação dos pelicanos – que se encontra. De segunda a sexta-feira, no seu gabinete, trata das mazelas dos jovens da formação durante os treinos. Mas não só.

É que o massagista, natural do Sabugal, no distrito da Guarda, mas que rumou até Caldas da Rainha por consequência da vida militar, é também presença regular nos treinos e jogos da equipa principal, que milita na Liga 3, e na qual são, por vezes, necessários os seus requisitos.

Já ao fim de semana, não há manhã que não esteja junto dos “seus” meninos. Até porque é momento de competição e, por isso, os conhecimentos de Adelino Santos são imprescindíveis para colocar os jovens futebolistas na melhor condição física possível.

“Chego aqui às 09:00 e só vou para casa quando já não há mais jogos”, vinca. E mesmo nos dias em que está de folga, é nas redondezas da Quinta da Boneca ou do Campo da Mata que é visto, não fosse ser “um amor sem igual”.

“Ajudo no que for preciso. Seja nos seniores, seja nos miúdos”, acrescenta, reavivando a memória para destacar “os milhares” de jogadores que já passaram pela sua vida.

As várias gerações, algumas de várias famílias, que lhe passaram pelas mãos saúdam-no nas ruas: “Não sei o nome de todos, como é claro, mas reconheço a cara”.

“É o que levo do Caldas e desta vida”, sublinha o massagista, recordando o enorme carinho que sente por parte dos adeptos do clube e da população: “Sempre que entro em campo para assistir um atleta as pessoas aplaudem sempre muito”.

Para o senhor Adelino, esses “são momentos comoventes”.

O que não gosta mesmo, segundo diz, é “quando os jogadores fazem ronha. Isso não gosto, gosto que eles sejam respeitadores”, graceja o nonagenário que ainda tem uma agilidade física que lhe permite galgar dezenas de metros de relvado para desempenhar a sua missão.

Adelino é uma figura muito acarinhada no universo Caldas
Adelino é uma figura muito acarinhada no universo CaldasLUSA

No clube, “o senhor Adelino” representa para alguns atletas a figura de um avô e essa é uma realidade que muito orgulha o mais velho dirigente em funções no distrito de Leiria, que já mereceu a medalha municipal de mérito desportivo da Câmara Municipal de Caldas da Rainha.

“Tenho sido muito feliz aqui e as pessoas tratam-me muito bem”, assegura, sem querer elencar os melhores momentos que tem vivido no clube para não se esquecer de nenhum: “Já foram tantos”.

Incentivado a olhar para o futuro, Adelino Santos diz ter “forças para mais uns valentes anos no clube”. E, se possível, para assistir à concretização do sonho de ver o Caldas, de novo, na Liga.

Pela atividade, mas também pelo discurso, a idade, para Adelino Santos, é “apenas de um número”.

Depois de ter “servido” o país (chegou a estar preso na invasão da União Indiana a Goa), a missão do nonagenário é “servir” os jovens do Caldas, numa missão que, reiterou, “é uma das mais importantes que teve (e tem) em mãos”.

José Milagres trabalha no seu Marítimo
José Milagres trabalha no seu MarítimoLUSA

José Milagres (Marítimo), 95 anos

Aos 95 anos, José Milagres ainda é massagista do Marítimo, sendo um mais velhos filiados na Federação Portuguesa de Futebol (FPF), e conhecido, há mais de 40 anos nos madeirenses, pelos doces que oferece aos miúdos.

Quem acompanha o emblema verde rubro já ouviu falar de José Milagres, o massagista de 95 anos que acompanha os escalões jovens do clube madeirense há mais de 40 anos.

"Txitxo", como é chamado, é conhecido por ter sempre doces para oferecer aos jovens atletas, mas também a todos quantos se cruzam consigo.

Foi a caminho de um jogo de futsal, no complexo desportivo maritimista, que José Milagres foi explicando como surgiu a alcunha "Txitxo", entre as várias paragens para cumprimentar atletas, ex-atletas e adeptos, que faziam questão de sublinhar a “grande figura do clube".

“Sinceramente já não me recordo de quando começou o Txitxo, na altura que o Marítimo fazia casa no 1.º de Maio já era assim. Chamo Txitxo aos jogadores e eles a mim. Até parece que sempre foi assim”, explicou José Milagres, adiantando que assim se tornou mais fácil em vez de decorar todos os nomes.

As guloseimas são outra tradição, mas também um incentivo para os mais novos.

“Gosto de andar sempre com doces para dar aos miúdos e eles já estão à espera. Já o faço há muitos anos mesmo. Primeiro, deixo o treinador falar e, depois, peço autorização. Aviso-os que vão receber o prémio antes do jogo e distribuo sempre três doces, um de cada, a todos os jogadores”, conta.

Aos pais já explicou várias vezes que é por causa destas crianças que com a idade que tem ainda se apresenta bem, garantindo que os jovens lhe trazem felicidade e lhe dão vida.

José Milagres é um dos mais velhos filiados na Federação Portuguesa de Futebol
José Milagres é um dos mais velhos filiados na Federação Portuguesa de FutebolLUSA

Nascido em 09, de outubro de 1928, desempenhou a profissão de maquinista, na Empresa de Eletricidade da Madeira, durante 36 anos. As mazelas, sobretudo na visão e na audição, levaram-no à reforma antecipada para, posteriormente, chegar ao emblema do Almirante Reis, como massagista, no qual permanece há mais de 40 anos.

Sócio verde rubro desde 1994, mas adepto já muito antes, José Milagres viu o emblema insular crescer, tendo acompanhado a construção do estádio, inaugurado em 05 de maio de 1957, mas, apenas cedido ao Marítimo pelo Governo Regional em 13 de setembro de 2007, mas também a mais recente renovação, em 2016, e, agora, com o complexo desportivo.

“Foi muito gratificante ver esta evolução. São lembranças que vou guardar até ao fim dos meus dias”, garantiu o massagista de profissão, adiantando que já trabalhou para quatro presidentes, “seis anos com o António Henriques, com o Rui Fontes duas vezes, 24 anos com o Carlos Pereira e, agora, com o Carlos André Gomes”.

O sócio de mérito, distinção que recebeu em 2018, já viu passa várias gerações por si, lembrando a alegria que sente ao ver ex-atletas que chegam aos treinos para deixar os filhos e os netos.

"Já vi passar muitas gerações por aqui. Fico tão feliz por ver jogadores que passaram aqui pelo clube chegarem com os seus filhos e até netos. Todos me cumprimentam e fazem-me uma festa. Enche-me o coração poder acompanhar parte da vida deles”, enaltece.

Atualmente trabalha apenas aos fins de semana, ou quando é mesmo preciso durante a semana, mas adianta que ainda permanece no ativo com 95 anos, porque se sente bem no “ambiente, no desporto, que sempre foi uma parte muito importante na vida”.

Levado a contar o momento mais marcante, adianta que surgiu no meio das lágrimas, primeiro de felicidade, depois de tristeza.

Em 11 de junho último, festejou, como já muitas vezes o fez, a conquista do título em sub-14, mas no final do encontro rodeado de jogadores entre festejos começou a chorar.

José Milagres é sócio do Marítimo desde 1994
José Milagres é sócio do Marítimo desde 1994LUSA

“Nunca tinha acontecido, já presenciei centenas de conquistas, mas nunca me tinham levado às lágrimas”, recorda.

Menos feliz foi o que se seguiu: “No mesmo dia fui ver o plantel principal disputar o jogo do play-off da Liga, frente ao Estrela da Amadora, e voltei a chorar, mas desta vez de tristeza, porque o Marítimo tinha descido de divisão, 38 anos depois”.

“Este dia vai marcar-me até ao dia que morrer”, admite, ambicionando, celebrar, “nem que seja com lágrimas”, o regresso dos madeirenses à Liga.