Todos os dias, um grupo de homens mais velhos dirige-se ao estádio Aspmyra, em Bodo, a norte do Círculo Polar Ártico, para tomar café, recordar histórias antigas e desfrutar da companhia uns dos outros.
Não se sabe ao certo quando começou a tradição da “mesa do café”, mas a maioria dos membros remonta-a a cerca de 60 anos, enquanto as histórias são recontadas e as memórias partilhadas entre dias de glória passados e mais recentes.
Pode parecer um cenário banal, mas não é. Cada membro deste grupo eternizou-se na história do futebol norueguês, pois todos fizeram parte do plantel do Bodo/Glimt que, contra todas as expectativas, venceu a final da Taça de 1975 frente ao Vard, quebrando antigos preconceitos e ideias erradas sobre o norte da Noruega.
A final da Taça de 1975 tornou-se um marco na história do futebol norueguês, já que Jacob Klette, Ivar Bakke, Harald Berg e outros membros do grupo da mesa do café conseguiram desafiar todas as convenções.
Os clubes do norte da Noruega, a cerca de 120 quilómetros dentro do Círculo Polar Ártico, só puderam participar na Taça da Noruega a partir de 1963.
Segundo o professor de história Steiner Aas, da Universidade de Bodo, o norte da Noruega estava, nessa altura, isolado do resto do país: não havia comboios, as estradas eram péssimas e viajar de Bodo para Tromso para um jogo demorava um dia e uma noite, tornando muito difícil para os adeptos acompanharem as suas equipas.
Ao mesmo tempo, as pessoas da região eram olhadas de lado e vistas como parentes pobres, dentro e fora do campo.
"Naquela altura, as pessoas do norte da Noruega eram literalmente odiadas, e a atitude geral para connosco era vergonhosa," diz Klette, que fez quase 400 jogos por uma equipa que mudou as relações culturais entre o norte e o sul, ao Flashscore: "Era normal que as pessoas do norte até falassem como as do sul, tal era o desprezo pela nossa cultura. Mesmo quando vivi em Oslo no final dos anos 60, via anúncios de apartamentos para alugar, mas não para pessoas do norte. Fiquei revoltado com isso."
A promoção à principal divisão só foi possível para equipas do norte em 1972 e, enquanto o Bodo/Glimt ainda jogava na segunda divisão, lançou uma campanha na Taça da Noruega em 1975 que teria implicações monumentais para o futebol e a cultura norueguesa.
"O Bodo defrontou uma das forças dominantes do futebol norueguês, o Viking, nos quartos de final. Um ano antes, encontrámo-los em Stavanger e perdemos por larga margem, mas desta vez vencemos. Foi uma surpresa para todos que nós, vindos da segunda divisão, conseguíssemos jogar tão bem como o Viking, que liderava a primeira divisão na altura," afirma Steiner Aas.

Kleppe tornou-se o herói do dia, ao marcar o golo da vitória frente aos favoritos de Stavanger.
"Lembro-me como se fosse ontem," diz Klette, que trabalhava como óptico no negócio da família em Bodo, ao mesmo tempo que jogava como amador.
"Depois do jogo, toda a gente invadiu o relvado e as crianças rodearam-me." O Bodo/Glimt viria a vencer o Stark de Kristiansund, que era segundo na primeira divisão, nas meias-finais, antes de defrontar o Vard, outra grande equipa da segunda divisão, na final.
"Na final em Oslo, cerca de 35.000 espectadores passaram pelas bancadas, e metade deles veio do norte da Noruega. Por isso, quando entrámos em campo e vimos todos os nossos adeptos nas bancadas, soubemos logo que íamos fazer algo especial," recorda Klette.
De cabeça, o norte entra na nação
E assim foi, já que a equipa pouco reconhecida do Círculo Polar Ártico celebrou uma gloriosa vitória por 2-0, graças, entre outros, a Sturle Solhaug, que ficou famoso como o jogador que “deu de cabeça o norte à nação”, segundo Steiner Aas.
A improvável vitória na final da Taça da Noruega deu ao Bodo um bilhete para a Taça dos Vencedores das Taças, onde enfrentou o Nápoles na primeira ronda. Depois de perderem a primeira mão em casa por 2-0, os noruegueses tinham uma tarefa difícil para a segunda mão.
"Jogámos contra eles no Stadio San Paolo (hoje Estádio Diego Maradona) perante 50.000 espectadores, que vaiaram os seus próprios jogadores porque dominámos o jogo e tivemos três oportunidades incríveis para marcar. Perdemos 1-0, mas isso deu-nos ainda mais confiança nas nossas capacidades," explica Kleppe.
Hoje, há oito campeões desse ano à volta da famosa mesa do café no estádio Aspmyra, onde as jovens estrelas da atual equipa do Bodo, que colocou a Noruega no mapa do futebol mundial ao qualificar-se para a Liga dos Campeões, todos os dias cumprimentam os heróis de 1975, numa passagem de testemunho para a nova geração.
Um deles é Harald Berg, avô do atual capitão, Patrick Berg, que hoje é considerado o Erling Braut Haaland dos anos 70.
Berg jogou como profissional no FC Den Haag, nos Países Baixos, nos anos 70, durante o auge do domínio do Ajax. Assim, Berg fez parte da era de Cruyff e Neeskens no futebol neerlandês e chegou mesmo a ser o melhor marcador da Eredivisie no início da década.

Berg teve um papel fundamental na equipa do Bodo que conquistou a Taça em 1975, segundo Kleppe: "Ele fez-nos acreditar que tudo era possível e que não devíamos ter demasiado respeito pelos adversários. Quando o Harald Berg regressou a casa em 1974, mudou completamente a mentalidade dos nossos jogadores."
A confiança nas próprias capacidades tornou-se essencial para o Bodo e para a região do Círculo Polar Ártico, já que uma forte identidade e orgulho nortista se formaram após o triunfo na Taça de 1975.
"Nunca imaginámos o quão importante seria esta vitória para as pessoas do norte da Noruega. A importância cultural deste triunfo não deve ser subestimada. A atitude para connosco mudou completamente depois dessa vitória na final da taça. Basta ver como éramos tratados na altura e como somos tratados hoje," acrescenta Kleppe.
Apesar da evolução do futebol, e do Bodo/Glimt ter vindo a desafiar algumas das melhores equipas da Europa, é difícil encontrar algo que se compare à final da Taça da Noruega de 1975, diz Steiner Aas.
"Hoje em dia, posso viajar por toda a Europa a ver o Bodo/Glimt jogar na Liga Europa e agora na Liga dos Campeões. É incrível; há uns anos seria impensável.
"Mas é difícil comparar com a final da Taça de 1975. Esse momento foi determinante na história do clube e do país, mesmo que hoje, com a globalização do futebol, muitos já não considerem as finais das taças nacionais tão importantes."
