Mais

Opinião: Exigência de alto nível do futebol mundial coloca relvados brasileiros em xeque

A Arena Independência passa por trabalhos de manutenção
A Arena Independência passa por trabalhos de manutençãoYuri Laurindo - Comunicar Else

O futebol atual não dá mais margem para relvados abaixo do nível, com alguns deles a fazerem até parte do folclore do cenário brasileiro. Há anos que atuar em campos sem as mínimas condições tornou-se normal, até uma outra mentalidade aparecer. Uma visão mais profissional, que não permite espaços para algumas situações amadoras. Isto na teoria. Na prática...

A regra básica é que se precisa de um bom relvado para a prática do bom futebol. Trata-se do mínimo e obrigatório, com a responsabilidade a ser de clubes e arenas de Campeonato do Mundo, com alguns deles a não conseguirem atender aos padrões.

Este não é um privilégio do Brasil. O relvado do Santiago Bernabeu, do Real Madrid, recebeu críticas de Xavi Hernandez, técnico do Barcelona, no último mês de abril.

No golfe, se a relva não for boa, não se joga. No ténis, se chove, não se joga. Se a quadra estiver molhada quando Lebron salta, seca-se. No futebol, posso entrar com poças no campo. Quem beneficia com isso? Não me vou calar. A superfície, para mim e para o espetáculo, é fundamental. Então perguntamos por que os jovens não vêem uma partida completa. Se queremos espetáculo, vamos regar o campo. Não quero saber dos memes, não vou parar", argumentou.

Mineirão, Arena Castelão, Arena Grémio, Arena Independência e Maracanã são alguns dos que receberam diversas críticas nas últimas semanas por terem um campo de jogo que dececiona todos. De adeptos, jogadores, dirigentes e técnicos até a imprensa, com o papel de informar, fiscalizar e cobrar.

Relvado do Mineirão é um dos alvos de críticas
Relvado do Mineirão é um dos alvos de críticasPedro Souza / Atlético

"O campo do Mineirão, da forma que está, nem na época que eu jogava era assim. E olha que eu atuei no Mineirão muitas vezes com o campo mau. O campo era muito melhor do que hoje. Isso atrapalha, porque nós não estamos acostumados a ver jogos em campos maus". 

"Hoje é uma obrigação da equipa. Um estádio desses não merece ter um campo assim”, lamenta Vágner Mancini, técnico do América, que joga na Arena Independência. O estádio também recebe jogos de Atlético-MG e Cruzeiro.

O relvado do estádio foi apelidado de "mer**" pelo atacante Paulinho, do Atlético-MG, com outros colegas de equipa a irem na mesma direção das pesadas críticas. "Infelizmente, o campo prejudicou, está muito mau, em péssimas condições. Quando você finta o primeiro jogador e tenta arrancar, a bola fica muito viva, prejudica", disse o avançado Hulk após o duelo da Libertadores contra o Athletico-PR.

Horto revitalizado

A situação incómoda do relvado fez a direção do América-MG optar por não jogar na Arena Indepedência durante 17 dias para um trabalho de manutenção. O clube reforça que não se trata de uma troca de relvado e sim de um trabalho de suplementação. No dia 24, o estádio do Horto deve voltar a receber jogos do América.

“Com a chegada do inverno, a intervenção foi necessária. A relva entra em hibernação, o campo fica amarelado e perde a capacidade de se regenerar. Isso impede a devida recuperação entre os jogos”, explica o América. 

O relvado do Mineirão tem sofrido com o excesso de shows em 2023
O relvado do Mineirão tem sofrido com o excesso de shows em 2023Pedro Souza / Atlético

"Se não houver o respeito quanto ao pousio, ou seja, se muitos jogos ou eventos forem realizados em pouco tempo, nenhuma tecnologia pode ser aplicada para recuperar o relvado. A relva tolera ser pisada, mas quando a frequência e intensidade de uso ultrapassam o limite para cada condição de campo, as falhas começam a aparecer".

"O relvado é considerado uma cultura perene que precisa de ter excelência em todos os aspetos do cultivo, desde o preparo do solo e plantio, até ao manejo diário, principalmente no desporto", ensina Elka Fabiana Almeida, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais – Instituto de Ciências Agrárias).

Gigante da Pampulha

Excesso de jogos e eventos prejudicaram duas das maiores arenas do país. No caso do Maracanã, o uso por parte de até quatro clubes prejudica. O estádio do Mineirão, por sua vez, tem os diversos shows musicais como principal adversário, forçando também a mudança do local de jogos.

O clássico entre Cruzeiro e Atlético-MG, do Brasileirão, aconteceu em Uberlândia por indisponibilidade do estádio de Belo Horizonte. 

“A relva é um ser vivo e tem os seus efeitos negativos. Sofre stress, isso pode parar o seu crescimento e absorção nutricional. O trabalho de recuperação será maior. A forma fisiológica da planta vai responder ou não ao que é aplicado”, afirma Lucas Pedrosa, engenheiro agrónomo e diretor técnico da Greenleaf.

A empresa é responsável por 15 estádios de norte a sul do país.

“Os estádios que mais nos preocupam são os de maior uso, com mais de um clube a jogar neste relvado, além dos shows. Isso gera uma dificuldade de manutenção e recuperação do relvado”, reforça.

Lucas reforça que um fator que também não ajudou foi a sombra criada nas coberturas de sete dos 12 estádios do Campeonato do Mundo de 2014, com as variedades de relvas a não se desenvolverem nesta condição. 

Mancini ainda tenta entender a prioridade que se dá a um local construído para ser um estádio de futebol, prestes a receber o Mundial.

“Recentemente, fizemos um Campeonato do Mundo no Brasil e a história que nos foi contada não foi essa. Ao contrário da arena do Palmeiras, para outros fins, o Mineirão não foi. Sinceramente gostaria de saber qual a dificuldade em administrar um estádio de futebol. Não é rentável? Se formos danificar um campo para que sejam feitos shows, então que seja um relvado artificial", pondera o treinador americano, que externou a sua revolta após o coelho jogar no Mineirão.

O Mineirão recebe jogos de Atlético e Cruzeiro
O Mineirão recebe jogos de Atlético e CruzeiroStaff Images / Cruzeiro

Maracanã

O Maracanã, com expetativa de receber um mínimo de 71 jogos em 2023, foi alvo de críticas recentes de Jorge Sampaoli, técnico do Flamengo e de jogadores. Gabigol brincou ao citar “beach soccer”, pela dificuldade da bola rolar.

“No Brasileirão, a única coisa que não melhorou desde que eu saí foi o relvado. Há os melhores jogadores, estádios sempre cheios. Tem que se ter um relvado à altura do futebol brasileiro. Tenho muito respeito pelo futebol brasileiro e o maior respeito é o relvado", afirmou.

O relvado carioca também passa por mudanças de 10 dias, fazendo com que o jogo entre Fluminense e Atlético-MG, no próximo dia 21, seja alterado para Volta Redonda. Semeou-se sementes de inverno, aproveitando a data FIFA e o período sem jogos de torneios nacionais.

O Maracanã recebe jogos de Vasco, Flamengo e Fluminense
O Maracanã recebe jogos de Vasco, Flamengo e FluminenseMailson Santana - Fluminense

"Antecipando-se aos problemas que acometem o Maracanã nesta época do ano (temperaturas mais baixas e menor incidência de luz solar no campo), a gestão contratou uma consultoria há um mês que diagnosticou justamente que haveria um maior desgaste no relvado na primeira quinzena de junho. Vale a pena lembrar que até ao momento já foram disputados 39 jogos no Maracanã este ano, uma média de um jogo a cada dois dias", informa a gestão do estádio.

A Arena do Grémio recebe críticas frequentes do técnico Renato Portaluppi
A Arena do Grémio recebe críticas frequentes do técnico Renato PortaluppiLucas Uebel - Grêmio

A bola não rola

A comparação com as melhores Ligas do mundo é inevitável quando se convive com este cenário, que não avança como desejado. Por lá, os estádios costumam receber cerca de 33 jogos por ano, com apenas um clube a atuar em cada relvado. Os números no Brasil chegam a ser o dobro.

A imagem do produto perde valor, afetando a imagem que será passada para quem acompanha os jogos em todo o mundo. “Se os estádios de Mundial não têm um relvado bom, imagine os outros?”. Será um pensamento recorrente.

“Enquanto houver relvados ruins, o futebol brasileiro não será vendido. Mesmo com muitos bons jogadores. Esta não é a melhor forma de se ver um produto. Imagine chegar numa loja, mesmo com boas peças, mas ela estar cheia de buracos? Um bom relvado é decisivo na prática do futebol. Não teremos jogos bons com relvado ruins”, analisa Luís Castro, técnico do Botafogo, em entrevista ao Futcast, podcast do Flashscore Brasil.

Prejudicados

Quem participa diretamente no espetáculo é quem mais sofre, trabalhando em condições desfavoráveis para mostrar o seu melhor desempenho. Uma bola que não rola como deveria é um desafio a mais para os jogadores.

“Depois do jogador, a principal coisa no futebol é o relvado. Ele deixa o espetáculo bem melhor, é algo que já devia ter sido debatido com mais frequência para melhorar a situação. Estádios de grande tradição, que deveriam ter os melhores relvado, dececionam e oferecem muita dificuldade”, conta o médio Alê, do América.

O seu ex-companheiro Ademir, atacante do Bahia, vai na mesma linha. “Um mau relvado deixa tudo mais complicado, a qualidade do jogo vai cair. Também há a questão de se prevenir as lesões, é preciso ter atenção especial para nos protegermos”, detalha o jogador.

Solução

Torna-se inevitável não olhar para as principais Ligas do mundo, que proíbem o relvado artificial e contam com “tapetes”, que fazem logo surgir uma comparação com a realidade brasileira.

No Brasil, relvados artificiais estão presentes nos estádios de Palmeiras, Athletico-PR e Botafogo, gerando reclamações de jogadores e clubes. Um dos motivos é a maior probabilidade de lesões.

Por outro lado, ter um relvado sintético é motivo de um relvado sem as oscilações do modelo natural, com o Fortaleza, por exemplo, a considerar ter esta opção artificial na próxima temporada.

O relvado do Independência passa por manutenção
O relvado do Independência passa por manutençãoMourão Panda / América

Em países com o inverno como um item a mais para se considerar, o estado dos relvados é perfeito, de encher os olhos. Seria isso uma utopia no Brasil?

O sistema híbrido tem sido bastante usado no Velho Mundo como alternativa que tem funcionado. “Diria que 80% dos relvados das principais Ligas são híbridos, com mais segurança e resistência, suportando melhor as chuteiras".

“Maracanã e Itaquerão são híbridos, mas não é a solução dos problemas. Dependendo da frequência e do uso, será exposto aos danos da relvado natural. O relvado de um campo de futebol precisa de ser bem trabalhado desde a base. A variedade da relva entre jogos e eventos também ajuda. Isso faz a relva “respirar, comer e beber”, conseguindo um relvado 100% natural”, sugere Pedrosa. "Não existe maus relvados e sim campos sem a devida manutenção”, finaliza.