Reportagem Flashscore: o dilema do futebol russo preso entre as paredes da FIFA, UEFA e AFC

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Reportagem Flashscore: o dilema do futebol russo preso entre as paredes da FIFA, UEFA e AFC
Reportagem Flashscore: o dilema do futebol russo preso entre as paredes da FIFA, UEFA e AFC
Reportagem Flashscore: o dilema do futebol russo preso entre as paredes da FIFA, UEFA e AFCRFU
A invasão da Ucrânia fez com que a FIFA suspendesse a Rússia de participar em competições internacionais de seleções e clubes, o que levou os responsáveis a considerar uma mudança da UEFA para a Confederação Asiática (AFC). O Flashscore chegou à conversa com Joel Amorim, tradutor e professor, apaixonado pelo futebol russo e colaborador habitual de publicações desportivas nas quais faz a antevisão das jornadas da Liga russa.

Depois de adiar a decisão no início da semana passada, na última sexta-feira (30 de dezembro de 2022) a União de Futebol da Rússia (RFU) declarou a intenção de permanecer na UEFA, mas deixou de sobreaviso a possibilidade de se mudar para a confederação asiática. Os russos, juntamente com a UEFA e a FIFA, criaram um grupo de trabalho que vai explorar as possibilidades de se manterem a competir na Europa.

"A decisão (de sexta-feira) mostra que há, porventura, uma vontade da Rússia em continuar na UEFA. Dyukov afirmou que a maioria dos membros do Comité Executivo optou por resolver o impasse atual em conjunto com a UEFA, a FIFA e o Comité Olímpico Internacional (COI). A RFU tem 3 meses para resolver o problema", reagiu o especialista em futebol russo.

Alexandar Dyukov é presidente da RFU, CEO da Gazprom e ex-presidente do Zenit
Alexandar Dyukov é presidente da RFU, CEO da Gazprom e ex-presidente do ZenitRFU

Para Joel Amorim, trata-se de um "caso bastante sensível e complicado" em que é difícil fazer "futurologia". No início da semana, parecia que tudo estava inclinado para a adesão à AFC, segundo as palavras do presidente da União de Futebol Russo, Alexander Dyukov, mas o revés de sexta-feira baralhou as contas. Até porque "há muitas posições contra e a favor" dentro do país.

"Caso a resposta ocidental continue a ser negativa acredito que a Rússia pondere a mudança para a AFC. No fundo, a decisão foi um pouco ao encontro daquela que foi, desde cedo, a vontade da RFU: ficar na UEFA. A decisão da FIFA tem contornos políticos, vamos ver até quando os intervenientes vão continuar a permitir que a política se misture e condicione o futebol", prosseguiu.

Autodidata no que toca à língua russa, o matosinhense de 41 anos concluiu recentemente o nível A1 - com o objetivo de chegar ao A2 -, e tem a facilidade de chegar aos recantos das páginas e publicações russas, aproveitando para contar histórias e destaques na sua página ou nas redes sociais. Entre as suas colaborações destacam-se a WhoScored e a Tactical Room.

Indecisão e confusão

Sobre a possível mudança de confederações, apontou para alguma confusão por parte dos decisores russos. 

"Não está muito bem explicado, as pessoas não têm noção da burocracia que esta mudança envolve. Há dois lados: a posição de "mais vale ir para a Ásia e poder jogar" ou então de que "essa mudança é um passo atrás". Acredito que dentro do Comité Executivo da RFU ou da própria RFU as pessoas não têm noção do que acarreta a mudança", começou por explicar o especialista em futebol russo.

Ex-jogador Valery Karpin acumula cargo de treinador do Rostov e seleção russa
Ex-jogador Valery Karpin acumula cargo de treinador do Rostov e seleção russaRFU

A questão principal é se a FIFA vai ou não levantar a suspensão imposta aos atletas, clubes e seleções da Rússia e da Bielorrússia. Mesmo que a mudança ocorra, se a suspensão se mantiver em vigor "não adianta de grande coisa" e não tem qualquer vantagem.

"Se a RFU tem uma ideia concebida para uma mudança, é conveniente que tenha já tratado de falar com as partes envolvidas. Convém já terem o aval da FIFA e a certeza que essa mudança será aceite pelo Comité Executivo da AFC e os países membros. Neste momento, das auscultações que foram feitas, entre os 47 membros da AFC há alguns que são contra. Da parte da AFC, penso que não haverá problema porque as decisões são aprovadas por uma maioria simples no Comité Executivo. Dessa parte a mudança está quase garantida, agora da parte da FIFA...".

Se o adiamento de terça-feira foi "curioso", a decisão de criar um grupo de trabalho para continuar na UEFA foi, no mínimo, surpreendente. Isto porque há um prazo de tempo para que estas questões sejam resolvidas e a Rússia possa participar nas qualificações para o Mundial-2026, visto que, em setembro, já tinha admitido ficar fora do Euro-2024.

Jogo de preparação em casa do Tajiquistão, antiga república soviética
Jogo de preparação em casa do Tajiquistão, antiga república soviéticaRFU

"A transição (para a AFC) só é possível mediante uma carta da UEFA para a FIFA a dizer que não se opõe à mudança. Essa carta depende apenas do presidente da UEFA, não é preciso reunir nenhum Comité, não é público se isso já aconteceu ou há conversações nesse sentido. É bem possível que haja aqui uma hesitação em relação à posição da FIFA e do levantamento da suspensão".

"A FIFA está numa posição periclitante. A Rússia está suspensa das competições internacionais tanto clubes como seleções e agora só por mudar de confederação deixa de haver risco de segurança? Qual é a justificação? A FIFA vai ter de gerir bem essa situação", apontou.

As consequências para o futebol russo... e europeu

No meio de tanta incerteza pelo menos uma coisa é certa: se a Rússia se mudar para a AFC, os milhões de euros em patrocínios gastos por empresas como a Gazprom seguem o mesmo caminho. 

"É de todo o interesse de países como a China ou a Índia, que se têm mostrado favoráveis a esta mudança, que esse patrocínio vá parar à Ásia. Porque vai valorizar monetariamente as competições. Para os clubes russos pode ser uma situação algo estranha. É quase um regresso ao futebol soviético, iriam encontrar adversários de outras repúblicas que pertenceram à URSS e reviver um passado recente. Em termos de atrair jogadores reconhecidos para jogar nessas competições, isso pode causar alguns problemas aos clubes russos, principalmente aos tradicionalmente europeus. O Zenit tem neste momento o Malcom, o Claudinho, o Wilmar Barrios, o Wendel, é difícil que sejam atraídos para jogarem na AFC Cup. É difícil convencê-los, a não ser pela parte monetária", especulou.

A nível interno, Joel Amorim não vê grandes mudanças. Até porque "a Rússia tem atualmente uma das melhores gerações das camadas jovens". Até ao momento que foi suspensa, a seleção russa de sub21 estava em primeiro lugar do grupo de qualificação para o Euro-2023 e tinha vencido a Espanha. Por outro lado, a seleção principal só fez três jogos de preparação em 2022: com o Usbequistão (0-0), Tajiquistão (0-0) e Quirguistão (vitória por 2-1).

Arsen Zhakaryan é um dos jovens valores dos russos
Arsen Zhakaryan é um dos jovens valores dos russosRFU

"Há muita qualidade nas camadas jovens da Rússia e muitos deles já estão nas equipas principais porque há muitos poucos russos a jogarem fora do país. A parte de atrair jogadores estrangeiros torna-se mais complicada. Neste momento continuam a haver muitos estrangeiros, principalmente sul-americanos e dos Balcãs. Se inicialmente houve muitos jogadores estrangeiros que aproveitaram a moratória da FIFA – que lhes permitiu sair dos clubes ou suspender o contrato –, isso agora deixou de acontecer".

"Até começaram a chegar novos jogadores, mesmo para equipas sem grandes aspirações europeias. Por exemplo, o Orenburg é uma equipa sem essas aspirações, mas consegue atrair estrangeiros. Há outras equipas, como o Rostov que optou por jogar pelo seguro e não tem nenhum estrangeiro. Não impede que a equipa esteja bem classificada, estão nos três primeiros. O Rostov acautelou-se para o que poderia acontecer, na eventualidade dos estrangeiros pedirem para sair. Construíram um onze com russos para poder reverter essa situação".

Brian Mansilla, Lucas Vera e César Florentin (dir.) são alguns dos americanos no Orenburg
Brian Mansilla, Lucas Vera e César Florentin (dir.) são alguns dos americanos no OrenburgOrenburg

"A hipocrisia da FIFA"

Joel Amorim acusou a FIFA de hipocrisia no que toca à decisão da suspensão das competições, já que em décadas anteriores se recusou a intrometer em situações políticas e tem ainda um historial de promiscuidade com regimes autoritários ou que não respeitam os direitos humanos - conforme comprovado pelas duas últimas edições do Campeonato do Mundo (Rússia e Catar).

"A Rússia neste momento acaba por estar “refém” tanto de uma decisão da UEFA como da FIFA. Porque é uma decisão política – apesar de alegarem questões de segurança – e é curioso porque tem o mesmo interveniente de 1973, quando a União Soviética (URSS) se recusou a jogar no Estádio Nacional do Chile, na segunda mão do play-off de qualificação para o Mundial de 1974, à conta da ditadura do Pinochet (que transformou o estádio num campo de concentração, ndr)".

Imagem dos presos sob o olhar e a arma de um militar
Imagem dos presos sob o olhar e a arma de um militarTwitter

Na altura, os dirigentes do futebol soviético alegaram que não podiam jogar num estádio "salpicado com o sangue dos patriotas chilenos". Estima-se que cerca de 45.000 pessoas tenham estado detidas no local, algumas das quais vítimas de tortura e fuzilamentos. A FIFA reuniu uma comissão técnica para visitar o estádio e, segundo os relatos, viu os prisioneiros e deu o seu parecer: "é possível jogar".

"Apesar de haver provas gritantes do que estava a acontecer, a FIFA permitiu que o jogo fosse realizado, a URSS faltou e foi penalizada com 2-0 (sobejamente conhecido como "o jogo fantasma", ndr). Aí a FIFA optou por julgar as coisas de forma diferente. Mas o princípio é o mesmo. Em 2022, a decisão foi diferente, agora a FIFA pode continuar agarrada a essa decisão, não levantar a suspensão e permitir a mudança da AFC. Ou se levantar a suspensão caso passem para a AFC, vai ter de explicar a decisão aos outros membros. É uma questão um pouco estranha. Imaginemos que uma equipa russa ganha a Liga dos Campeões Asiática e vai ao Mundial de clubes (jogar contra clubes europeus)... A FIFA tem muito a explicar".

Renovação do estádio manteve a bancada onde os presos estavam detidos
Renovação do estádio manteve a bancada onde os presos estavam detidosTwitter

Para o analista de futebol russo, uma coisa é quererem manter a política fora do futebol. Mas não da forma como o organismo fez no Mundial-2022, "em que ameaçou as seleções que se expressaram a favor dos direitos humanos". Outra coisa é acabar por "tomar uma decisão política de suspender a Rússia". Sendo que, além disso, não houve assim tantas mudanças no que toca ao conflito armado, que parece estar para durar. Portanto, como é que a FIFA poderia justificar o levantamento da suspensão?

"O Comité Olímpico Internacional parece começar a ver as coisas de outra forma. Não são os atletas que mudam grande coisa, como também não são as equipas e a seleção russa. O poder político das equipas de futebol, dos atletas olímpicos é nenhum. Não é com eles suspensos que se vai mudar alguma coisa (no conflito). É uma bota difícil de descalçar", prosseguiu.

Internacionais russos à procura do próximo destino
Internacionais russos à procura do próximo destinoRFU

tudo um pouco à volta de hipocrisia essa história das razões de segurança, há outras seleções que nunca poderiam jogar umas com as outras. Há o exemplo da Arménia e do Azerbaijão, mas há também os Balcãs. Israel está na UEFA, mas pode acontecer também jogar com o Egito ou Irão. Recentemente, a Sérvia jogou com a Albânia (em 2014). Nesses casos, em que ponto ficaríamos em relação às razões de segurança? Ainda pior que isso, a parte da recusa das outras seleções pode realmente ser uma situação de difícil resolução. Porque se a FIFA aceitou que os europeus não jogassem com a Rússia, terá de aceitar obrigatoriamente se uma seleção asiática o fizer também".

"Qual é o caminho? Continuar na UEFA e esperar que a suspensão termine? Se a guerra acabar, a Rússia pode jogar na UEFA? Se calhar não. É uma situação muito difícil que vai ficar no currículo do Alexander Dyukov, como presidente da RFU", finalizou.

As dúvidas são muitas e certeza só há uma: a Rússia, a FIFA e a UEFA têm uma dura questão para resolver até março. Até lá, muita tinta há-de correr.