Entrevista a Courtney Dauwalter: uma ultra-maratonista excecional... sem treinador

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Entrevista a Courtney Dauwalter: uma ultra-maratonista excecional... sem treinador
Dauwalter, uma mulher feliz nas montanhas
Dauwalter, uma mulher feliz nas montanhas
AFP
Um leopardo numa rede, um cowboy com o seu laço na mão, ou mesmo centenas de gatinhos na pista? Durante uma corrida de mais de 300 quilómetros, quando não dormiu toda a noite, Courtney Dauwalter confessa que começa a ter alucinações.

"Faço novos amigos pelo caminho", brinca a ultra-maratonista. Aos 38 anos, a americana Courtney Dauwalter está no topo de um grupo de elite de ultra-maratonistas: pessoas que correm 80, 160 ou 320 quilómetros de uma só vez.

Usando calções até ao joelho e um enorme sorriso, Dauwalter entrou em cena há cerca de dez anos e rapidamente surpreendeu os seus concorrentes - homens e mulheres - ao bater os recordes existentes.

"Adoro-o por muitas razões", diz ela. "Adoro explorar. Adoro ir a sítios onde nunca se foi antes. Percorrer os percursos e não saber o que está ao virar da esquina, como será o topo ou como se vai lá chegar", explica.

Pizza e hambúrgueres

Dauwalter é uma contradição: é a melhor ultra-maratonista feminina do planeta e é venerada na comunidade de corrida extrema como algo próximo do sobrehumano. Mas não é a atleta de elite que é suposto ser: não tem um treinador.

"Prefiro ser eu a organizar as coisas", justifica.

Não segue uma dieta rigorosa: come pizzas, hambúrgueres e doces. E usa calções compridos, como os de basquetebol, pela simples razão de que os acha confortáveis.

O seu regime de treino não é orientado por marcas de desempenho ou métricas, mas pela forma como se sente quando acorda.

Dauwalter, façanha após façanha
CHANDAN KHANNA / AFP

"Não há um plano ou horário definido. Por isso, posso avaliar como está o meu corpo, como se sente o meu cérebro, como estou emocionalmente, e tudo isso determinará se me esforço mais ou se opto por um dia mais descontraído", assume. E funciona.

Nos últimos anos, conquistou os primeiros lugares para mulheres em corridas de alto nível em todo o mundo, incluindo a Transgrancanaria de 128 quilómetros em fevereiro, que completou em menos de 15 horas.

Também detém o recorde feminino na brutal Big Dog Backyard Ultra, uma corrida no Tennessee em que não há linha de chegada, apenas um loop interminável de 6,7 quilómetros por hora.

Em 2020, Dauwalter correu 68 vezes, quase três dias em que percorreu mais de 450 quilómetros.

Poça na estrada

Dauwalter tinha 20 e poucos anos quando tentou completar a sua primeira maratona.

"Tinha tanto medo que os 42 quilómetros destruíssem as minhas pernas e me transformassem numa poça na berma da estrada. E quando vi que não morri e que as minhas pernas não se partiram, perguntei-me o que mais haveria pelo caminho", lembra.

Isto levou-a à corrida radical.

"Fiquei maravilhada. Toda a gente queria ter uma aventura. E quando chegámos às estações de apoio, estávamos a encher os bolsos com bugigangas. E eu pensei: 'Este desporto é fantástico'", conta a atleta.

Dauwalter, um corredor de ultra-distância apaixonado
CHANDAN KHANNA / AFP

"Depois, todos se juntam e partilham as suas histórias do dia. Ninguém quer saber qual foi o seu lugar, o seu ritmo ou o seu tempo", acrescenta.

Em 2017, após uma série de sucessos, Dauwalter deixou o seu emprego de professora e começou a correr profissionalmente.

Agora, o patrocínio permite-lhe viajar pelo mundo e participar em algumas das mais prestigiadas ultramaratonas internacionais, que atravessam locais de uma beleza deslumbrante.

"A gruta da dor"

Enquanto corre, respirando o ar da montanha nos trilhos cobertos de neve à volta da sua casa em Leadville, Colorado, Dauwalter conversa alegremente e faz com que a sua corrida pareça fácil. Mas ele insiste que não é.

"Estas corridas de 100 ou 200 milhas assemelham-se mais a uma montanha-russa em que não se sabe exatamente quando vão chegar os momentos realmente difíceis. Tentamos aguentar-nos e esperar que os momentos baixos passem e continuar a resolver os problemas", explica.

Esses problemas podem ser tão fáceis de resolver como precisar de mais calorias, mas se a situação se complicar, a maratonista entra naquilo a que chama "a gruta da dor".

Do ensino aos ténis de corrida... como profissional
CHANDAN KHANNA / AFP

"É esta imagem que criei no meu cérebro de uma verdadeira gruta, onde entro com um cinzel e trabalho para tornar essa gruta maior", explica.

"Sempre que corro, quero lá chegar (...) porque é aí que o trabalho é realmente feito", diz.

Ainda assim, mesmo com a sua incrível força mental, há inevitavelmente alguns momentos muito difíceis. Foi o que aconteceu quando perdeu quase completamente a visão a 19 quilómetros da meta. Continuou a andar, tropeçando em pedras e raízes. "Estava a tropeçar em todo o lado", conta.

Felizmente, era um trilho que ela conhecia muito bem, pelo que se sentia confiante de que não ia cair de um penhasco.

Cérebros fortes

A ultramaratona é um desporto raro, em que homens e mulheres competem em igualdade de circunstâncias, especialmente em distâncias mais longas.

Para Dauwalter, isso acontece porque correr mais de 300 quilómetros não tem tanto a ver com o tamanho dos quadris ou com a capacidade pulmonar, mas sim com a capacidade de se manter acordado, concentrado ou simplesmente não vomitar a comida.

Embora para quem está de fora o desporto pareça um feito físico impossível, ela insiste que é muito mais mental.

Dauwalter continua a conquistar novos territórios
CHANDAN KHANNA / AFP

"O que aprendi ao longo dos anos foi a força do nosso cérebro e como, naqueles momentos em que o nosso corpo quer desistir, o nosso cérebro pode ajudar-nos a continuar", explica.

É difícil não se deixar cativar pelo entusiasmo irreprimível de Dauwalter, pela sua convicção contagiante de que, se um antigo professor de ciências, de traços desajeitados, se pode tornar num atleta profissional campeão do mundo, todos nós podemos conseguir um pouco mais.

Dauwalter não quer que as pessoas fiquem acordadas durante dias ou que corram 300 quilómetros, mas quer que dêem uma oportunidade ao seu desporto.

"É correr em trilhos com os amigos, trocar histórias e não saber o que se passa na próxima esquina. É surpreendermo-nos com as vistas e, no final, ficarmos surpreendidos com o que conseguimos fazer", partilha.