Entrevista Flashscore a Signorini, preparador físico de Maradona e Messi: "Os futebolistas de hoje são ovelhas, o negócio comeu a caça"

Publicidade
Publicidade
Publicidade
Mais
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Entrevista Flashscore a Signorini, preparador físico de Maradona e Messi: "Os futebolistas de hoje são ovelhas, o negócio comeu a caça"
Fernando Signorini com Diego Armando Maradona
Fernando Signorini com Diego Armando MaradonaProfimedia
Fernando Signorini, atualmente com 72 anos, foi preparador físico de Diego Armando Maradona, e treinou também Lionel Messi no Campeonato do Mundo de 2010. Em entrevista exclusiva ao Flashscore, explica como as muitas lesões antes do Mundial do Catar são consequência de um calendário apertado, num futebol que há muito se tornou "desumano".

Fernando Signorini viajou pelo Mundo graças aos seus profundos conhecimentos como preparador físico. Tornou-se amigo de Luis Cesar Menotti e de Diego Armando Maradona durante o seu tempo no Barcelona. El Profe, como é conhecido, passou do Barcelona para o Campeonato do Mundo dos Estados Unidos, em 1994, com uma passagem de sete anos no Nápoles. Construiu uma carreira única, enfatizando o seu papel como primeiro preparador físico de um futebolista, Maradona, e desenvolvendo espírito crítico sobre o esforço dos jogadores. Em entrevista exclusiva ao Flashscore, Signorini não se mostra surpreendido com as várias lesões de jogadores antes do Mundial-2022, no Catar.

- No seu livro, publicado em 2014, Football, a Call to Rebellion. A desumanização do desporto, aponta o dedo aos horários excessivamente preenchidos no futebol atual, que muitas vezes levam às lesões. 

- O negócio veio comer fora. E veio comer ao futebol. Atualmente, a qualidade de jogo já não importa tanto como a quantidade. Vencer é a única coisa que importa. O resto deixou de ter espaço. É uma abordagem cultural errada, que está a apodrecer o futebol, cada vez mais um produto e cada vez menos um desporto.

- No seu jodo de despedida, Diego Armando Maradona tinha proferido, em lágrimas, a célebre frase: La pelota no se mancha (a bola não fica manchada). Mas parece que aconteceu precisamente o oposto.

- Se os futebolistas não disserem nada... são eles que se lixam. São eles que têm de falar! O Diego, em 1986, foi o único a dizer o que pensava sobre o calendário apertado. E não tinha nada a ver com o que temos atualmente. Hoje em dia o único que falou contra a corrupção e as mortes no Catar foi Philipp Lahm... e esse já não joga há algum tempo. O problema é que os intervenientes estão a deixar-se instrumentalizar pelo negócio. 

- É preciso uma união internacional de jogadores?

- Mas ninguém fala, ninguém está a agir. Muitos jogadores são multimilionários e, no entanto, ninguém os ouve, não mostram qualquer solidariedade para com os colegas menos afortunados. Podiam ter um poder imenso e, no entanto, não o exercem. O futebol é um desporto coletivo mas os jogadores não foram educados dessa forma. Todos pensam apenas em si próprios, e acabam por se tornarem cada vez mais egoístas. Os futebolistas têm de se lembrar que sem eles não há espetáculo. Qual seria o impacto mediático de um sindicato de jogadores? É que nem a FIFA se podia opôr a isso. O futebol é um produto que vende muito, talvez até demasiado. E as pessoas continuam a consumir tudo. É tudo lixo! Ainda no outro dia assisti à final da Supertaça da Argentina com o meu vizinho. No final do jogo ele convidou-me para ir a sua casa ver o jogo da Argentina com a Arábia Saudita, às 7 da manhã. Disse-lhe logo: "Não contem comigo!"

- Qual a diferença de um Campeonato do Mundo no final da época e um, como este, a meio da temporada?

- No final da época os jogadores chegam muito melhor porque quando os campeonatos terminam os únicos atletas que foram forçados a um esforço suplementar foram aqueles que chegaram às meias-finais e à final da Liga dos Campeões. Agora, com um calendário tão apertado, tudo mudou... Para um Mundial havia sempre pelo menos duas semanas de preparação. Agora algumas seleções nem uma semana tiveram!

- O seu livro, publicado há oito anos, falava na desumanização do desporto...

- Era um título premonitório. Mas já nessa altura era evidente este processo de perda de humanidade no futebol, quando deveríamos, em vez disso, estar a trabalhar para recuperar a construção cultural das classes populares. Ninguém se preocupa com nada disto. Aqui, na Argentina, um rapaz de 18 anos suicidou-se porque ficou de fora de uma lista de convocados de uma equipa. E não é o primeiro caso desse género. O que é que os governos fazem?

- Tudo se descontrolou, aparentemente...

- É um circo! É como a arena, só que em vez de teres os leões contra os gladiadores, tens as pessoas a desafiarem-se umas às outras. E o futebol anda ali, de mãos dadas com isso. É um negócio tão grande que não pode ser parado em momento algum.

- Acompanhou Maradona nos Campeonatos do Mundo de 1986 e 1990. Quais foram as grandes mudanças para quando, 20 anos depois, foi preparador físico de toda a seleção da Argentina, com Messi incluído, quando Maradona era já selecionador?

- Sem dúvida o tempo de preparação. Na África do Sul, em 2010, já foi muito curto. Tivemos um campo de treino durante apenas nove dias. Em comparação basta pensarmos que em 1978 Cesar Menotti iniciou a preparação para o Mundial quatro meses antes. Os jogadores que ele tinha estavam todos a jogar no campeonato argentino, à exceção de Mario Alberto Kempes. Em 1986, por exemplo, tivemos quarenta dias de preparação.

- Acompanhou o processo de recuperação física de Maradona, depois de ter fraturado o tornozelo. É um dado adquirido que uma lesão articular é mais prejudicial que uma lesão muscular, agora a mais comum entre as lesões que temos visto antes do Mundial?

- Sim, mas tudo depende do grau da lesão. E não há apenas o problema da recuperação física, temos também a recuperação mental. Uma lesão coloca sempre muitas dúvidas na cabeça de um jogador. Na Argentina dizemos: "Aquele que se queima com leite, assim que vê uma vaca chora." Muitas pessoas reduzem uma lesão à recuperação física mas o problema central é a recuperação mental.

- Lembra-se de alguns exemplos de casos desses?

- Em 1978 o Cesar Menotti já tinha convocado o Ricardo Bochini para o Campeonato do Mundo. Mas ele estava convencido que tinha cancro. Afinal, não tinha nada. No entanto, ele foi tão influenciado por isso que durante os treinos nada demonstrou. Foi tão dececionante que acabou mesmo por ficar fora dos convocados para o Mundial. O aspeto emocional é decisivo e atualmente parece que ninguém o tem em conta.

- A Argentina está entre os favoritos ao título mas tem jogadores a regressar de lesão, como Angel Di Maria e Paulo Dybala. Parecem ainda condicionados mas a sedução de jogar um Mundial é mais forte...

- É esse forcing que me incomoda muito. Os jogadores são a última roda do carro quando, na realidade, deviam estar ao volante! Imagine juntarem-se os Messis, Benzemas, De Bruynes, Salahs... nem havia medo algum por uma audiência no Tribunal de Haia. Como é que é possível que eles não se façam ouvir? 

- Será que todo este circo está realmente a pôr em risco o espetáculo de um jogo de futebol?

- Logicamente. Imagine a hipótese de haver jogos com prolongamento no Mundial, jogamos naquelas temperaturas. São trinta minutos a mais de trabalho pesado. Mas porque é que, de facto, se fazem essas horas extraordinárias? Porque são mais 30 minutos de publicidade. E quanto é que custa um minuto de publicidade num Mundial? Além disso, estarão a publicitar um espetáculo pobre. Quantas equipas podem realmente chegar até ao fim na plenitude das suas capacidades? Até lhe digo mais: para mim deviam jogar dez seleções, no formato de todos contra todos. Ponto final. Porque com a fórmula atual não é o melhor que ganha mas sim quem eles querem que ganhe. E às vezes até com o fator sorte.

- Na Argentina, porém, este Mundial está a gerar grande entusiasmo, parcialmente justificado por ser o último Campeonato do Mundo de Lionel Messi.

-Não tenho a certeza se será o último Mundial de Messi. Até diria que pode continuar a jogar muitos mais anos, talvez a jogar um pouco mais atrás ou não sendo titular. Estamos a falar de um génio, de alguém que nasce de tempos em tempos. O Messi, por puro milagre, chegou pouco tempo depois de Maradona. Mas foi uma pura coincidência. Além disso, digo-lhe já uma coisa: vão oferecer tanto dinheiro ao Messi para o impedir de acabar a carreira que tudo pode acontecer...

- O ostracismo em relação ao Campeonato do Mundo do Catar é evidente. Ainda assim, gostaria de ver a Argentina campeã do Mundo?

- Ficaria feliz pelos jogadores e pela estrutura técnica. E também para o povo argentino, sem recursos económicos, cuja única alegria é ver os seus ídolos triunfarem. Mas para mais ninguém.