Reportagem: Futebol brasileiro teve 2023 bélico, com mortes, violência e necessidade de ação urgente

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Reportagem: Futebol brasileiro teve 2023 bélico, com mortes, violência e necessidade de ação urgente
Polícia Militar do Paraná foi forçada a intervir numa confusão de adeptos de Coritiba e Cruzeiro
Polícia Militar do Paraná foi forçada a intervir numa confusão de adeptos de Coritiba e CruzeiroProfimedia
O futebol é a principal paixão desportiva do comum adepto brasileiro. Mas o que era para ser apenas uma diversão, entretenimento e festa, também pode transformar-se numa desenfreada escalada de violência e medo. O ano de 2023 ficou marcado por tristes episódios no desporto mais popular do país pentacampeão mundial.

Carlos Henrique e Eder Eliazar, no Rio de Janeiro, adeptos do Vasco; Ítalo Silva, em Fortaleza, adepto do Ceará; Rafael Merenciano, em Belém, adepto do Corinthians; Rodrigo Miguel de la Torre Machado Pereira, no Rio de Janeiro, adepto do Vasco; Lucas Gabriel, em Olinda, adepto do Santa Cruz; Gabriela Anelli, em São Paulo, adepta do Palmeiras.

Estes são os nomes de alguns adeptos que em 2023 perderam a vida por conta da onda de violência crescente no futebol brasileiro. O caso que ganhou mais repercussão na imprensa foi o de Gabriela Anelli, que antes do jogo entre Palmeiras e Flamengo, no Allianz Parque, acabou morta nas imediações no estádio palmeirense após ser atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa atirada durante um conflito entre adeptos.

Gabriel Anelli, a adepta do Palmeiras que morreu após ser atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa
Gabriel Anelli, a adepta do Palmeiras que morreu após ser atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafaReprodução/Redes Sociais

Naquele fatídico 8 de julho de 2023, o duelo válido pela 14.ª jornada do Brasileirão chegou a ser interrompido duas vezes no primeiro tempo porque jogadores e adeptos, já dentro do Allianz Parque, sentiram os efeitos do gás-pimenta utilizado pela Polícia Militar para dispersar a confusão que acontecia do lado de fora.

Foram seis minutos e meio de interrupção no primeiro tempo do confronto entre Palmeiras e Flamengo.

Ações simplistas

Num artigo publicado no Laboratório de Estudos em Media e Desporto (LEME) da Faculdade de Comunicação Social da UERJ, a pesquisadora Raquel Sousa analisa a forma simplista como é apresentada na media desportiva a violência no futebol brasileiro.

Claque organizada Mancha Verde, a principal do Palmeiras
Claque organizada Mancha Verde, a principal do PalmeirasProfimedia

Muitas das vezes, a solução para os conflitos é a realização de jogos com adeptos apenas de uma equipa, especialmente nos clássicos regionais, a proibição da comercialização de bebidas alcóolicas dentro dos estádios e também a adoção da suspensão das claques organizadas, apontadas como principais focos de violência.

Mas, de acordo com Raquel, a discussão é mais profunda e apresenta-se na forma de dois tipos de violência que atingem o adepto brasileiro e o seu direito básico como consumidor da indústria futebolística.

"Os casos de violência de vetor vertical são os casos em que os adeptos sofrem, das mais variadas ordens, por meio das imposições estatais e mercadológicas. São os bilhetes caros praticados pelos clubes, a violência que sofrem dos polícias, da atuação de órgãos como ministério público, com punições coletivas. Estas são lidas como violência institucional. Esse tipo de violência, muitas vezes, não é noticiada nem percebida enquanto uma das facetas da violência nos estádios", analisa Raquel, no artigo "Uma breve análise sobre a violência no futebol brasileiro e suas 'soluções' simplistas".

"Já os casos de vetor horizontal seriam aquelas interpessoais e intergrupais, que possuem maior concentração mediática. Elas são percebidas entre os adeptos do próprio clube ou de equipa adversária, podendo ser verbal ou física. Geralmente baseia-se em conceções de masculinidade e poder", acrescenta Raquel.

Mediante a isso, a pesquisadora apresenta cinco pilares que podem ser aplicados na discussão e proposta de ações para conter a desenfreada evolução dos casos de violência no futebol nacional.

I) Necessário criar um observatório para o acompanhamento real desses conflitos, com produção de dados confiáveis;

II) É preciso incentivar a colaboração entre clubes, adeptos, polícia, guarda municipal e outros órgãos públicos para construção do planeamento dos eventos desportivos;

III) As punições não podem recair sobre os adeptos; a responsabilização deve ser individual para aqueles que cometem crimes no ambiente desportivo;

IV) Incentivo à organização dos adeptos, enquanto movimentos sociais, na procura pelos seus direitos, em combate aos processos de elitização que os estádios sofreram nos últimos anos. Essa organização só será possível com a integração entre adeptos e a redução da lógica de poder e masculinidade que fomenta a violência interpessoal e intergrupal;

Protesto da Gaviões da Fiel, principal claque do Corinthians
Protesto da Gaviões da Fiel, principal claque do CorinthiansProfimedia

V) Estabelecer a criação de espaços culturais que possam ser ocupados por diferentes claques, promovendo a valorização da cultura do adepto; fomento de ações sociais em conjunto e discussão de temas como racismo, machismo e homofobia no ambiente desportivo.

Hooliganismo brasileiro

Em 1989, o futebol britânico passou por uma intensa reforma após a tragédia de Hillsborough, com a elaboração do Relatório Taylor e a firme intervenção do estado para conter a violência nos estádios da Inglaterra.

Na década de 1980, o futebol inglês chegou a ser punido pela UEFA com a proibição de jogar competições oficiais da entidade por cinco temporadas após a tragédia de Heysel na final da Taça dos Campeões da Europa entre Liverpool e Juventus.

O Brasil, a cada ano, vive o seu próprio hooliganismo. Os conflitos têm atingido diretamente adeptos, clubes, atletas, técnicos, dirigentes, ou seja, todo o ambiente do futebol, instaurando um clima de medo e insegurança. Acompanhar jogos de futebol no país tornou-se uma aventura, com riscos iminentes.

Os casos acumulam-se. O quase centenário estádio de São Januário ficou interditado por meses após virar palco de conflitos a envolver a claque do Vasco para o Goiás no Campeonato Brasileiro. Dentro do estádio, adeptos atiraram objetos para o relvado, cometeram atos de vandalismo e houve tentativa de invasão. No lado de fora, protestos, desacatos e... violência. A Polícia Militar precisou de intervir.

A Vila Belmiro e as suas imediações viveram cenas de terror no Brasileirão 2023. Objetos foram arremessados para o relvado na vitória do Santos sobre o Grêmio, pela 20.ª rodada da Série A do Brasileirão. O clube chegou a ser punido com a realização de jogos à porta fechada após decisão do STJD. Isso porque na derrota para o Corinthians, cenas lamentáveis já tinham ocorrido.

Já na última jornada do Brasileirão, com a derrota para o Fortaleza e a confirmação da despromoção à segunda divisão, adeptos do Peixe revoltaram-se dentro do estádio, com atos de vandalismo, e também fora da Vila Belmiro, incediando veículos, um deles do jogador santista Mendoza.

No Brasileirão 2023, adeptos de Coritiba e Cruzeiro entraram em confronto dentro do relvado da Vila Capanema. Uma verdadeira batalha campal que já tinha sido "desenhada" dias antes, quando a Máfia Azul, claque organizada do Cruzeiro, havia ameaçado os jogadores e os seus familiares devido à má fase da equipa.

Longe do seu melhor futebol no Corinthians, o avançado Luan foi perseguido e agredido por adeptos do clube num motel de São Paulo. O jogador acabou por regressar ao Grémio e vem, aos poucos, tentando regressar ao futebol que o fez ser eleito o Rei da América em 2018.

Para além das provas internas

Além dos casos domésticos, a violência no futebol brasileiro ganhou contornos bélicos nos dias que antecederam a final da Libertadores entre Fluminense e Boca Juniors no Maracanã, com inúmeros casos de agressão, roubos, arrastões e acusações de racismo nas ruas do Rio de Janeiro entre adeptos argentinos e brasileiros.

Dias depois, o mesmo estádio recebeu o clássico entre Brasil e Argentina pelas Eliminatórias, com a partida a ter oseu início atrasado devido a uma confusão generalizada entre adeptos argentinos, brasileiros, a Polícia Militar e, até mesmo, os jogadores da seleção argentina, que tentavam dissuadir o conflito que se desenrolava nas cadeiras do Maracanã.

Quem tem a solução? 

Além da intervenção do Estado, o problema precisa ser discutido pelos agentes que promovem o futebol. Jogadores, técnicos e dirigentes precisam de se unir para evitar que tragédias como as presenciadas em 2023 continuem a acontecer de forma desenfreada. Porque, no fim, o que mais vale é a vida.

"Sei que os sindicatos de jogadores no Brasil pouco funcionam e, às vezes, são até explorados por algumas poucas pessoas, mas deveriam pensar seriamente em paralisar o futebol por aqui enquanto este cenário persistir. Os dirigentes deveriam reunir-se e fazer um pacto pela paz, evitando declarações ácidas contra os adversários, promovendo mais respeito e cortando relação com as claques organizadas", apontou o jornalista Rodrigo Bueno, da ESPN Brasil.

"Há muitas coisas importantes que precisam ser feitas, inclusive pelo Estado, e há tantas coisas simples que podem ser feitas por qualquer um de nós. E o resultado disso tudo tende a ser muito mais do que positivo, pode ser incalculável: o valor de uma vida", finalizou Bueno.