Perfil de Vingegaard: o que ganhou em confiança não perdeu em timidez

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Perfil de Vingegaard: o que ganhou em confiança não perdeu em timidez
Jonas Vingegaard conquitou 110.ª edição do Tour
Jonas Vingegaard conquitou 110.ª edição do TourAFP
Jonas Vingegaard cresceu em confiança para dominar a Volta a França, com a atitude cada vez mais ‘agressiva’ na estrada a contrastar com o hermetismo e a simplicidade que não perdeu, apesar do ‘crescente’ estatuto no pelotão.

Entusiasmante e espetacular na bicicleta, o dinamarquês de 26 anos é monótono, repetitivo e extremamente introvertido fora dela, num contraste gritante com o exuberante Tadej Pogacar (UAE Emirates), o seu ‘vice’ pelo segundo ano consecutivo e o grande favorito dos adeptos da modalidade, ‘apaixonados’ pela espontaneidade do esloveno.

No entanto, nada há a apontar ao ciclista da Jumbo-Visma, que, apesar de não gostar da exposição a que os dois triunfos do Tour o ‘obrigaram’, é, no contacto direto, como a Lusa testemunhou no Gran Camiño (a corrida que escolheu para iniciar a temporada e que ganhou), uma pessoa extremamente educada, humilde e até sensível.

Jonas Vingegaard é um mistério: profundamente familiar – gravita em torno da mulher e da filha – e dependente da sua equipa, a quem confia cegamente o seu destino, sem hesitar (ou questionar), transfigura-se na estrada, onde, nesta Volta a França, demonstrou um instinto ‘canibal’ e evidenciou uma confiança não antes vista, embora, nos bastidores, se tivesse mantido tão discreto e hermético como sempre.

É nas montanhas, e não nos compromissos mediáticos ou nas redes sociais (‘palco’ predileto dos ciclistas da sua geração), que o delgado dinamarquês se sente bem, embora só as tenha descoberto tarde, numas férias familiares nos Alpes franceses, durante as quais chegou a aventurar-se no temível Galibier.

Descobri a minha primeira subida aos 16 anos. Depois disso, percebi que não era nada mau”, contou.

Nascido em 10 de dezembro de 1996 em Hillerslev, uma pequena aldeia piscatória de apenas 370 habitantes, inserida numa zona rural de gente humilde e trabalhadora na costa do Mar do Norte, o corredor da Jumbo-Visma experimentou várias modalidades antes de descobrir a bicicleta: andebol, natação, badminton e até futebol, mas a sua estatura diminuta ‘impediu-o’ de fazer carreira naquele desporto.

Fervoroso adepto do Liverpool – o site especializado CyclingWeekly conta que já foi ‘apanhado’ várias vezes em Anfield -, o miúdo louro e franzino descobriu a paixão pelo ciclismo aos 10 anos, quando a Volta à Dinamarca passou à sua porta.

Embora tenha sobressaído imediatamente num teste organizado pelo clube local para um grupo de crianças, e semanas depois tenha conquistado o primeiro pódio numa corrida, Vingegaard teve dificuldades em afirmar-se no panorama velocipédico nacional, porque o seu ‘peso pluma’ (tem 1,75 metros e 60 quilos) era incompatível com as ventosas planícies dinamarquesas.

A ColoQuick CULT, uma equipa continental, reparou no seu potencial e contratou-o como ‘estagiário’ em 2016, oferecendo-lhe, graças aos consistentes resultados, um contrato para a temporada seguinte. Mas a progressão de Vingegaard foi interrompida em maio de 2017, quando partiu o fémur numa queda grave na Volta aos Fiordes.

Sem poder andar de bicicleta, decidiu começar a trabalhar numa fábrica de processamento de peixe de Hanstholm, o porto dinamarquês que espreita o Báltico e de onde via partir os ‘ferries’ para as Ilhas Faroé.

Gostava daquele trabalho mesmo tendo de acordar às cinco da manhã. Era relaxante e não tinha de pensar muito. Apenas tinha de anotar as encomendas de linguado e bacalhau, tratar dos recibos e das licitações. Não precisava de trabalhar, mas ainda não sabia se iria tornar-me ciclista profissional”, explicou numa entrevista ao diário desportivo italiano Gazzetta dello Sport.

Mesmo quando recuperou da lesão, Vingegaard continuou a trabalhar na fábrica. “Não é fácil madrugar para ir para a fábrica, passar oito horas sem descanso e, de tarde, outras quatro ou cinco sobre a bicicleta. Isso molda o caráter”, notou.

O agora bicampeão da Volta a França ‘absorveu’ dessa experiência e das origens humildes os seus principais traços de personalidade, aos quais se junta uma bondade reconhecida por colegas e adversários, como Pogacar, que o define como “um grande tipo”.

Cerebral como poucos – na estrada, nunca se desvia do ‘plano’ traçado para si pela Jumbo-Visma -, escolheu a dedo o seu calendário esta época (participou apenas em quatro provas antes do Tour e venceu três, perdendo apenas o Paris-Nice para o esloveno da UAE Emirates), é devoto às suas duas ‘meninas’, que o acompanharam todos os dias nesta ‘Grande Boucle’.

Trine Hansen, que conheceu na ColoQuick CULT (era a responsável pelo marketing) e com quem casou em 2019, e Frida, a filha de quase três anos, são “tudo” para o dinamarquês, com a companheira a desempenhar um papel fundamental na sua carreira, que ‘descolou’ quando foi descoberto pela Jumbo-Visma, depois de uma temporada de 2018 na qual venceu o contrarrelógio da Volta a França do Futuro, acumulou vários resultados no ‘top 10’ do escalão sub-23 e estabeleceu um novo recorde da ascensão ao Col de Rates durante um estágio.

Jonas tem tendência para esconder as emoções, trabalhamos juntos para que ele se abra mais e para que não seja sempre eu a tomar as decisões”, reconheceu a mulher responsável pela ‘gestão de ansiedade’ do camisola amarela, uma missão que divide com a Jumbo-Visma.

A equipa neerlandesa soube que tinha de ‘agir’ quando Vingegaard cedeu à pressão na Volta a Polónia de 2019, um dia depois de se ter estreado a vencer no WorldTour e de ter subido à liderança da prova, na véspera da última etapa.

Não estava preparado para a pressão, tanto da parte da equipa como de todo o ambiente e da imprensa”, reconheceu após ter ‘bloqueado’ mentalmente e caído 25 lugares na derradeira tirada.

A Jumbo-Visma trabalhou o ‘psicológico’ de Vingegaard, deu-lhe tempo para crescer, levando à Vuelta2020 para trabalhar para Primoz Roglic, de quem é amigo pessoal, e em 2021 viu a paciência retribuída com uma vitória numa etapa da Volta aos Emirados Árabes Unidos, logo no início da época, duas etapas e o triunfo na geral da Settimana Coppi e Bartali e o espantoso segundo lugar no Tour, ao qual chegou depois da ‘retirada temporal’ de Tom Dumoulin.

Esse ‘fantasma’ pareceu regressar quando o corredor simplesmente ‘desapareceu’, após a primeira vitória na Volta a França, com as notícias sobre uma possível depressão, desmentida pelo próprio, a multiplicarem-se durante meses.

Neste Tour, contudo, notou-se que a autoconfiança do dinamarquês, que é fã de Alberto Contador e dos irmãos Schleck, cresceu exponencialmente, tanto que até vai arriscar tentar uma surpreendente ‘dobradinha’, ao alinhar na Vuelta, entre 26 de agosto e 17 de setembro.

Estou mais confiante e relaxado nesta situação e penso que essa é a maior diferença (em relação a 2022)”, declarou hoje, antes de iniciar a última etapa da 110.ª edição da Volta a França, aquela que o conduziria até à segunda amarela final em Paris.